quarta-feira, 4 de março de 2009

Violino Sem Cordas




Um beijo. Sonolento, arrebatado pela doçura, um beijo. O silencio. Não bebi sangue. Foi um beijo, atrever-me-ia a dizer um beijo como qualquer outro. Ao Sol, os corrimões amarelos e a vista da praia de Sesimbra. O azul. Ele estava perto da máquina de escrever. As cortinas de céu. Os lábios de homem, ásperos e com feridas. Os meus lábios de rapaz. O vermelho incandescente dos pés da escrivaninha, um incêndio. A ausência de sangue e a velhice eterna. O cheiro de sovacos. O fim das noites, de todas as noites desde então, gravado no meu rosto.

Os seus dedos já não tocavam piano. Incapazes de tocar piano. As pombas acumulam-se dentro da casa. Cortaram a luz. O ruído surdo das asas. A lentidão das penas.

A boca trémula e os lábios que se afundaram nos lábios. Os lábios que se derrocaram nas gengivas. O ruído vivo da dor. Só conheço os meus olhos fechados. As pombas morrem. A casa inteira-se de esqueletos de pomba. O ruído seco do chilreio de pardais, como agulhas. As mãos brancas na minha saia. Nas minhas pernas de rapaz.

O nosso sangue é o silêncio. O som surdo do rapazito. Devorado em sucessivas pausas movimentadas. Não haviam manchas no cadeirão. Carne podre. Fria. Fecho os olhos. O rosto de todos os fins a procriar mais um. Foram felizes.

A boca é a secura onde morrem as chamas. O estalido do silêncio. Observo nos espelhos. Ela chora. São tantas as vozes. Ela chora. Muitos os lamentos. Ninguém escuta todas as suas vozes. Os seus dedos tocam piano. O silêncio das teclas. O silêncio do desejo. O silêncio do desejo de ouvir a melodia. A madeira surda do piano. Alegria. Peso absurdo. Imóvel. A surdina dos lábios esfarelados. A boca esfarelada nos seus dedos débeis. Tentei ser gigante e pedra e estrela. Cinzento. Uma explosão branca de cinzento. Pés. Pernas. Coxas. Um cadeado em redor do pescoço do rapaz. Ela move-se sem som. Diz, se ele pergunta, que o seduz e nada se ouve. Silêncio. Azul e magenta. Encaixados. Um cadeado em redor do pescoço do rapaz. Fechado. Completo. Ranhura na cintura. Observo nos orifícios. Os meus olhos são covas abertas. Observo. Branco. Sem o sossego negro das vestes. Tornaram-se cinza. Ele odeia-a. O rapazito. Odeia-a. Quer come-la. Ela. Abre os lábios e geme e o som invade a casa e desfaço-me contra as paredes mudas. As estrelas. Riem-se de mim. Apatia. Os dedos dele. As suculências húmidas. Procuram. Serpentes sem sangue. A mão. A mão do rapazito. Cheia de cabelos. Cheia de cabelos do rapazito. Já não tocavam piano. Incapazes de tocar piano. As pombas acumulam-se dentro da casa.

4 comentários:

  1. Já li três vezes. Seguidas. De um fôlego só. Mas as palavras cravaram-se-me na carne e emudeceram-me a voz. Voltei às cordas quebradas do violino. Ao silêncio de sempre.

    Um beijo*



    PS: Não agradeço. Seria demasiado banal. E cinzento. Porque nunca encontraria as palavras que desejo. Por isso é que te deixo apenas um beijo.

    PPS: Já agora... Desculpa a possível incoerência do comentário. Acho que estou numa espécie de estado de choque.

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  2. Voltei. Para te deixar umas palavras que escrevi há tempos. Queria deixá-las aqui. Soam-me bem junto com essas, que me deste. E com outras, anteriores, mas filhas da mesma sede. Ou da mesma secura.

    "Não vais acreditar mas só hoje me apercebi que estou a envelhecer. O espelho tem-me enganado bem: os cabelos mantêm-se negros e não adivinho rugas no meu rosto, como sei que ainda as não tens no teu. E no entanto, hoje olhei para as minhas mãos e vi-as velhas. Enrugadas e enegrecidas. Já não tenho mais os dedos longos que gostavas de elogiar. Mãos de pianista, dizias…
    Gostava de saber o que dirias se as visses agora."

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  3. Mãos de pianista... sabes que é o que toda a gente me diz? E de facto toco piano.

    Agradeço o teu excerto e gostei de o ler, da pureza que emanas quando escreves. Mas no caso de te sentires mesmo a ficar velha, e de o achares desolador, lembra-te da mentalidade dos xamãs e da forma como eles viviam a idade: "A inocência é a experiência." Não dizem os católicos: "do pó viemos e para o pó voltaremos"? (e isso é que é gótico) Mas diria "das crianças viemos e para crianças retornaremos".

    Agora vou-me arriscar, Frankie, arriscar muito, a fazer uma coisa que muita boa gente considera pirosa. Vou colocar aqui um escrito do que considero ser uma boa alma lusitana e um poeta digno, o Pedro Abrunhosa:

    Hoje acordei, e senti-me sozinho
    Um barco sem vela, um corpo sem ritmo
    Amanheci e vesti-me de preto
    Um gesto cansado, um olhar no deserto

    Adormeci, sem te ter a meu lado
    Um corpo sem alma, guitarra sem fado
    Um sonho na noite e olhei-me ao espelho
    Umas mãos de criança num rosto de velho

    Eu não quero ser
    A luz que já não sou;
    Não quero ser primeiro,
    Sou o tempo que acabou.
    Eu não quero ser
    As lágrimas que ves;
    Não quero ser primeiro,
    Sou um barco nas marés.

    Quando todos vão dormir
    É mais facil desistir
    Quando a noite está a chegar
    É dificil não chorar

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  4. Frankie disse...
    É... Mãos de pianista... Talvez seja por isso que emana uma musicalidade tão grande das palavras que com elas desenhas.
    Sabes?! Eu não tenho mãos de pianista; tenho mãos de criança, como no poema que me deixaste. E, não, não achei piroso (gosto do Abrunhosa -tem poemas que são bem a minha cara-), embora entenda porque assumiste esse gesto como um "risco".

    Quanto às palavritas que te deixei, fazem parte de um texto me é especial e que foi escrito para uma pessoa igualmente especial, embora carregasse uma visão muito desencantada da vida e/ou do amor.
    A "velhice" de que falo, é esse desencanto.
    Quanto a mim...acredita que já me senti uma "velha desencantada", embora ainda tenha rosto de criança -uma das maldições que carrego, mas isso, enfim, são outras histórias-.
    Mas não hoje; não agora... Já me deixei envelhecer demais... Tanto que, num determinado ponto do caminho, senti que precisava de renascer... É nisso que ando a trabalhar neste momento ;)

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