segunda-feira, 31 de março de 2014

Ossian Cego


Ossian IX - Calum Colvin


Estou nu, despido pelos deuses, e guardo o nome no bolso.
Com a pedra só, com o vazio verde. Com a cabeça cheia de musgo,
Conto todas as estrelas que se apagaram
No céu, as montanhas tornam-se quedas de água, e libertam-se
Musas que se haviam afogado.

Sob a pressão do néon negro, leio um jornal de páginas em branco
E as árvores não desistiram de furar o solo. É aqui que tu moras,
Com as tuas conchas sonoras? Com barcos de guerra que são memórias?
Com o deleite das canções sem som? Com o farol apagado que guia.

O céu limpo troveja sem eco e todo este tempo vos guardei
Uma grande esfera quadrada, mantas brancas que, estendidas
Ao vento, soam os chifres de reis que nunca nasceram, e que acordam,
Os antílopes que vivem dentro da rocha, os bosques em forma de flecha,
Os meus olhos vermelhos de cansaço, o fogo no ventre da minha gravidez
De ser uma lança qualquer que um herói pregou ao chão.


André Consciência

Materialização




O clarão da bandeira a existir estranhamente leve, um Sol que torna os homens pesados sob o calor. Depois calei-me, para que os marinheiros voltassem a fitar o mar. Mas já ninguém o via. Agora a embarcação prosseguia, as velas desfaziam-se, apáticas. Até os enigmas se fizeram sóbrios, toda a luz era escura e completa. Agora, os precipícios não tinham nada que enganar. Os predadores que comigo seguiam tornaram-se, ao meu silêncio, transparentes, suaves, entreabrindo os lábios em preguiçosa volúpia. O Sol nunca mais retornaria a pôr-se. Pensavam-me terra em pleno mar.

André Consciência

A Ti Que A Morte Levou




Levantavas da tua caixa favorita
Flores que eram flocos de neve
Chuvas matinais, de olhos velados.

Dizias-me, que os papagaios eram luz
As flores jorrarem das janelas abertas
Por teres partido, e no chão pousarem
Como um Sol enfraquecido.

De um fogo que é mulher, antiga
Do outro lado, o amor escondido,
Os sobreiros de mãos na cabeça
O choro que congela o frio
E abre as janelas.


André Consciência

domingo, 30 de março de 2014

Retrato Preto e Branco

Retrato Preto e Branco - Inês Xavier

I

O rio começou a estremecer e os dias
Escuros,
A senhora com as rosas não traçou a curva
Na noite seguida.

O mar devorou tudo, ficou a procura
E há cartas com saliva de beijos, que se lembram
Do sangue das facas nas mãos unidas, disse:
“Segura-me a mão que a esmague”, venenos
E ocasionais despedidas cheias de soluções.

Irás acompanhado toda a morte
De raízes estendidas no ar
E um corpo de madeira, uma casa
Onde o meio-dia é, também, escuridão.


II

As duas vezes que brilhaste fora da água
Enrolam-se num lençol de pálpebras perfumadas
E os rios atravessam as pontes, na cidade.

É rápida a queda
Mas nem mesmo os homens acabam-
A sanidade chove como uma febre delirante
E a branca mão que apaga rosto e feição
Daquele que o túmulo desprezou, como a vida.


III

Fecho as mãos de coleccionador de borboletas
E depeno um corvo sem alma.
Vejo-me ao espelho e quebro este lado
Por acreditar em tudo o que nunca me dirão.


André Consciência

sábado, 29 de março de 2014

Retrato Branco e Preto

Sem Título - Rui Gusmão


Desprezo os poemas,
As paredes de céu e os meus sapatos,
As sílabas perdidas
À prisão dos sofás com vista
Para ti
Coberta de hera, coragem e paixão,
E um fogo natural faz bela a coisa interna
E somente deixa o verso que grita ou cala
O gelo escuro sem imagem
Que a noite possui ossos.
Cai o cigarro,
E fica só o brilho, o justo mal.


André Consciência

segunda-feira, 24 de março de 2014

Amendoeiras Em Flor


Amendoeira - Sofia Costa Figueiredo


Montado na relâmpago,
Às majestosas portas de Carmona.

Desmonto e sinto um punhado de areia na mão,

Que atiro ao vento. O rio Eufrates passa à minha frente,
Um sorriso tranquilo como o ruivo Pôr-do-Sol,
Enquanto a fogueira aos mugidos me lembra o correr do tempo.

“Deus seja louvado por ter colocado um mar entre nós!”,

Uma, de tez diferente e raça distinguida.
Bela, como uma Lua que o Sol banhou e cuidou durante a noite eterna,
Um creme, um leite das estrelas entre as peles escurecidas de assassinos.
O caixão dourado dos desejos que a sua mordedura selou
Sobre os tornozelos decorados, torna o sangue como um vinho servido por astros,
A morte como uma doçura jorrada dos peitos negros da noite.
Como é bela e se movem as suas pálpebras, entre a matança,
E com elas desnuda, prisioneira, a mãos de mulher, os exércitos,
E rasga com a fúria das espadas a carne e beija com a fragrância doce das flores
Os campos azuis da alma… Eclipso-me e, vazio, visto-a como coroa.

Numa nostalgia das brancuras do norte empalideço até ao fim da minha luz

E o óleo da minha alma extingue-se.
A Primavera desperta um festival de amendoeiras, agora,
Pousada sobre um ninho de albinas rosas selvagens, ela,
O azul da lua perdido no jardim das estrelas.



André Consciência

domingo, 23 de março de 2014

Fruto do deus secreto


Fruit of the Secret God - John Santerineross


O desejo limpa também a prata
Horas a passar sobre a trepadeira.
Com as moradas a serem, pois, extensões da rua que volta.

Apertamos as mãos dormentes, entrelaçamos os rios,
Avançamos como portas dos fundos, e etéreos
Desmoronamos as cidades da memória.

Está calor, nada nos pertence.


André Consciência

Estátua da Liberdade




A lembrança não conhece a sequência. Cada momento está parado, para sempre, sem lugar para mais nenhum. Mas as coisas movimentam-se. As pessoas. Nós estamos no espaço entre elas. As cores. Os ponteiros que soluçam sem alterar o mundo, e o ar. A areia. A linha das tuas ancas: não há sorte ou caminho. Estátuas, o que são as lembranças. Eu, um homem duplo, porque não tenho imagem no espelho. Se vestisse rosto, não saberia ver o Sol a bater no mar, ou o teu lábio trémulo. Havia destroços na praia. Havia destroços na praia desde o início. Havia destroços na praia desde o início das praias. Também o caranguejo na minha mão, o caranguejo na minha mão não ser mais do que posso ver, do que me pode esconder.


André Consciência

sábado, 22 de março de 2014

A tua casa



O Vampiro, Philip Burne-Jones, 1897
Como um Vampiro, Mão Morta, 2010


Fiquei sozinho e a roer o tempo sem ossos.
Era uma manhã cheia de erva seca e sangue e mãos que se transformam naquilo que as rodeia.
Era uma noite feérica no Inferno em que as feridas se lavam, como quando gememos, a dormir.
A vidraça chovia contra o vento, disso me lembro, e as persianas que se escancaravam para além dos seus limites, em tua casa.
A metamorfose do saber, descobri, era, naquela luzente geometria, uma pantera com asas de morcego, proibida de passar à frente de olhos tal como era. Por isso, coleccionávamos filmes pornográficos com ministros escancarados.
Passavam por cima dos móveis e das emanações, deixando pegadas de paixões, enquanto o meu olhar rasgava o jornal e a minha mão reconstruía o pénis.
Sentei-me no teu sofá com almofadas da Monroe e morto, apodreci, as mãos enterravam-se e eu escrevia não chegar ninguém a tua casa sem ninguém. Por trás dos muros da cidade, alimentava-me dos povos.
Feliz da idade em que o sangue das civilizações pulsa por esgotos e as suas canalizações.


André Consciência


* Santo Agostinho escreveu que os demónios tinham “imortalidade corporal e paixões como seres humanos", mas não podiam produzir sémen. São Clemente testemunha que os demónios possuem paixões humanas mas "não órgãos, assim eles voltam-se para os humanos para usar os seus órgãos. Uma vez exercendo controlo sobre esses órgãos, podem obter o que querem".

sexta-feira, 21 de março de 2014

Palha ao vento e o Sol acima


Sol de Palha - João Costa


Nada há de especialmente belo no bravio perfume,
Chuva que me faça estar aqui,

O teu rosto acende-se, seco e cadavérico. Não há poemas.
Eu estou aqui porque está frio. Porque o teu rosto recorda o pó
Que os meus anos acumulam em segredo. E a pele
De estar frio.

Esta terra que piso sem emoção, lavou-me as meninas
E sinto que fui eu a mata-las, sem pena ou remorso,
Mesmo enquanto dançavam o festival dos lírios,
E a Coroa do Sol girava.

Não tenho nome, o que tinha não era meu e depois esqueci-me
Quando o tempo se cansou das coisas, e retirou içando a bagagem
Das esperanças. Ainda me dói a fome, ou que a vegetação
Volte a crescer no meu mármore. Oh mãe, que engoliste até
As sepulturas, as carícias maternais, os sonhos, as lonjuras,
Se agora mato, que se regue o céu com a ancestral palavra.


André Consciência

Lugar onde existe barro



Barreiro - Ricardo Almeida

Livre. É o asfalto que se solta quando largo a confusão pacífica do andamento do carril. Sinto a pressão do calor a comprimir-me e a espalhar-me também pelas paredes da estação. De vez em quando, fico agarrado aos outros, como uma consciência pegajosa, ou emano deles se suam. Não hoje. Há um casebre abandonado que graffitis coloridos insistem amar sempre que eu olhe ou que ninguém esteja atento, e que cada vez mais parecem vir a perder, sem pressa, o significado de se moverem ao fim da noite. As fábricas murmuram ao longe, e lembro-me de como não gostas do campo, de como te é mais fácil a ligadura cinzenta dos fumos: um pardal saltitante que adormece ao som das linhas de montagem e escreve a independência do amor a dormir. Duas baratas que se aprimoram perto das botas que passeio. O rato junto ao lago e a tua presença na cadeira metálica do café. Os pássaros movem-se com uma animalidade que sinto, agora que o Sol se pôs. Um alarmismo imperioso e sereno. E de noite enches-te, como a tua terra, de copas de árvores amarelas como lâmpadas torradas, ou da esquadra da polícia mesmo ao lado da Igreja com paredes por pintar, da escuridão do pontão que o rio murmura com um ou dois pescadores enterrados no outro lado do tempo. Olho para dentro das habitações brumosas. No Barreiro Velho, a negritude é sempre um Sol tostado. O teu sorriso também é as ruas.


André Consciência

terça-feira, 18 de março de 2014

Mariposas



Si Sedes Non Is, Vitriol, 2005


Uma sombria mulher
Com a sua suavidade vermelha
É gravidade
De dois homicidas, a leveza lúgubre e distante
Do sexo. Seus pés lavarei.

Homem de garganta dourada onde o Sol põe o corpo,
E o ouvido do vento.
E onde verter de minha poesia um cipreste de gelo,
Quando um ar frio acabe e conclua a carne
Então calarei,
Então calarei a cabisbaixa tristeza da vida.


André Consciência

sexta-feira, 14 de março de 2014

Um Anoitecer Primaveril



Vem anoitecer, amigo, que a minha fronte beijas com escuridão
A deslizar na suavidade verde da semeadura.
E solenemente e calmamente acenam os chorões;
Uma voz amada a sussurrar pelos ramos.
O vento, pachorrento, faz flutuar as coisas belas
De algures até aqui e o perfume do narciso
Com toque de prata te toca.
No bosque de aveleiras troteia o melro -
Responde a canção do pastor pelos pinheiros.
Quão longamente desaparecera o pequeno habitáculo
Onde agora crescem tiras de vidoeiro;
A lagoa porta uma constelação solitária -
As sombras rondam em silêncio dourado!
E o tempo é milagroso tanto,
Que em humanos relances se procuram anjos
Inocente e deleitada brincadeira.
Sim! O tempo é milagroso.

Georg Trakl
traduzido por André Consciência

segunda-feira, 3 de março de 2014

A Pedra Planta


Dolmen Music, Meredith Monk, 1979 (interpretado por The M6, 2008)


Acabou-se a luz, onde as flores começaram,
E o perfume a pedra soletra-se
Amanhecido nos frutos dos deuses:
Escuta, que um lago imenso arrasta os fogos.

Deixa, os peixes espalhados na relva
E os javalis da floresta, em carne-lua
E os dedos das mãos e dos pés
De Albion,

São como as pontas soltas da História.

Moves-te um musgo desperto, eu dou-te
Um colar de rosas, a tua garganta atemoriza
Todo o machado: as tuas asas de pardal pousam
Nos pináculos da hera.

Há suicidas a quem abres a porta,
Lobos pelados e outros vazios
Como astros apagados a acender
O negro, o céu: o chilrear
Das aranhas.

O lago atravessa-me e leva a morte
Os passarinhos descobriram o teu nome
Abrem a boca para beijar.


André Consciência