segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Que falta de sol na tua pele vítrea

O sudário rápido da treva, a subida brusca do frio pela pedra - parque de mão dada, antes do almoço. Seios miúdos. Na desordem das nuvens claras há uma vaga sensação de espanto - e os figurinos insólitos e habituais tocam-se, e desfazem os nervos, pouco a pouco - houve um tempo de alvorada em que fui intimo dos pássaros e do trigo - e pressentem o pórtico soberbo da loucura onde uma água de ouro lhes chega aos joelhos - uma praia onde já estivemos, a areia ruiva, e o cântico muito azul da maré vaza. Tu beijaste-me as pálpebras, as dunas são feitas de luz branca - e as árvores quase humanas vão cair à beira da estrada - as minhas mãos apreensivas arquivam a noite, a vibração das tuas pestanas - e a tristeza do adeus no vento da tarde é pior que o ranger de vidro, e riem os laranjais dourados dos campos de há muito.

Exílio




A hora do Sol em pó sobre as relvas macias
A noite a introduzir-se nos arbustos
No monte branco centelhas de escuridão
Uivam cães ao crescente, uma corneta afiada
Marcial, no vale como pétalas azuis que caem -

O rapaz de rosto a terra e sangue
Preenchia o espaço turbilhonante da insónia
Em que o seu corpo se desponderaliza e rola por abismos
Selvagens.

Até tu, daqui to digo, até tu partiste
Para a Alemanha.

E não ficaste,
Abandonaste estas correntes com patas de centopeia
E espigões

Sh. Onde a minha casa não tem jardins o som desfaz-se.
Estrelas viscosas lambem os joelhos do rapaz,
Desse animal de vidro a apertar as ameijoas dos olhos
Com tanta força.

Deixemos agora de falar e que o relógio não domine
Sh, e inventa o Sol, resiste, vai beber nos lírios
Uma luz incerta vai pelo ar e sacode a angústia
Vês?


André Consciência

domingo, 30 de dezembro de 2012

Naquele Descampado O Chão Eram Lençóis

André Consciência



Ganhava a vida a atascar o braço na vulva das vacas
Doíam-lhe os calos, as botas, os pés inchados,
E cortava o cabelo com as unhas grossas e duras
Sem querer saber para nada de Lisboa nem do estrangeiro
A amar a terra indivisa e fecunda, para além da própria vida
Que fecunda e indivisa se fazia.

Grosso e escarlatino, grande,
Meio monstro e meio bobo ia a Lisboa
Quando muito a Évora, e deitava ao leito
Uma ou outra menina, que as visse
Pintadas de bucólicas rosinhas azuis.

Mas na cidade as camas eram sempre estreitas e fracas
Para ele, e só então reconhecia na sua nobre consciência
A sua monstruosidade, já o corpo agigantado e espesso
Se separava dele e no outro lado do mundo as mulheres choravam
Mas ele estava noutro planeta, todo cravado
De dores, um poço sem feitio.

O tempo era parado, desumano,
Quando tinha pena -
Um animal doente e nefasto,
Aliás, nunca pensava nele.

Levava-as para aquela rua mais pobre
Onde as casas nem sequer tinham janelas,
Depois, com ondulações de mar nos flancos
Morriam, doce e resignadamente, com uns olhos de água
E de amor, e pouco a pouco emudeciam, bracejantes
Naquele tapete verde-amarelo do crepúsculo.

Como eram decentes a morrer!

Metia-as lá fora, o Sol a escaldar,
Mulheres velhas e novas também,
Todas agora sem idade.
Que Sol! Que caras de fome!
Minguadas, raquiticas, cosidas com rugas,
Todas em tempos a alimentarem-se de violetas
E a urinarem prata.

Um dia também vi um querubim de cinco anos
A esmigalhar ranhoso a cabeça de um gatito
Tranquilamente entre duas pedras.


Horned Wolf

A Devorar O Fumo




Primeiro foi um gato, um gato vivo como a plumagem de uma ave exótica:
O volume macabro de um feixe de gritos fechado num círculo de luz.
Depois o homem que ria, com um grande risco cósmico, medonho e azul,

Meio insultante, meio condoído,
Ou o negrume do quarto.

Evanescente, o homem pássaro, sem rosto,
A mexer na alba incerta de um sacrifício.

A revolta crepitante viria visitá-la,
A ela, amarrada ao seu carrasco bestial e sagrado,
A ela, ensanguentada, metade cio e orgulho, metade
Nuvem cor-de-rosa.

"A vida é uma puta sem nenhuma recordação incontaminada?"
Perguntava a si própria, lutando em vão para expulsar os olhos:
Aqueles monstros absurdos que lhe forçavam as represas
Do eu profundo e movediço da enxurrada escura da insónia.

Deixa-me ser, rompida aos gritos, liberta de toda a cautela,
De todo o pudor.


Horned Wolf

Aquele Vento Aguilhoante




Há um deserto que se fecha sobre mim
Sem drama, sem grito, sem motivo,
E todos os dias são domingo, todos os dias
São domingo.

As tuas mãos fantasma mostram as ruas
Brancas de um Junho paralítico, de cal
E de noite luarenta:

As raparigas morenas atravessam-na
Estralejam risos, em bandos,
Pelas coxas, a saia a sair do joelho,
A afiar as orelhas nas discotecas
Consumidas nos biocos à meia porta.

Eram os tristes e os pobres, sem
Amanhã, mas a folgar como cigarras
Eu, porém, cada vez mais branco
De cal e de noite luarenta,
Branco de Junho, das ruas longas
Dos almocreves e dos barbeiros.

Choviam plumas de sangue
E dentes de fogo,
E haviam leões à solta
No jardim dos tuberculosos
Tão acesos de cores e de gritos

Perdidos em colecções de amorios
Até ao fastio, entre seios de meninas
Radiofónicas,

Mas agora só jorrava lá fora
Um vento desencontrado
Dos sementeiros do céu
E do luar envenenado

E haviam fantasmas à solta
No jardim da vigília
Estava fria a cama e a botija
Eu branco de ti a aturar-me
Cigarro na mão, estiraçada na cama
De sexo rico e onde eu nunca
Penetrara, de ancas arqueadas
E lareira funda, de pedra à vista
Não alisada, carcomida numa imagem
Mais simplória, a esvoaçar entre cortinas
Com desenhos gordos de anjinhos
A puxarem também lume a um cigarro
Entre crochet, e eu sorria
A fazer-me de interessante,
Com a luz do sorriso a esfarelar-se
Na boca, dissolvido em confusa
Humilhação, a cabeça fina e frágil
A pender de nojo para os tijolos
Lavados.

André Consciência

sábado, 29 de dezembro de 2012

Léguas de Desalento





O verme do fastio
Nos modos e nas frases mais inocentes,

As espumas na janela estremeceram
E o avantesma a sumir-se num cotovelo amachucado
Da rua, então

Um medo sobre-humano mergulhou-me
Nos gelos do fim do mundo.


Horned Wolf

domingo, 23 de dezembro de 2012

Ventre Vazio de Portugal


Penteado - André Consciência




Um homem só possuía de si as mãos
Mas a estrada: a poeira do tempo
A terra fulva das cidadezinhas esmagadas
O céu cru do trigo e das ovelhas
O Sol queima o rosto magro de um povo inteiro
Como uma máscara dourada

A Espanha com a sua ilusão socialista
A grande ilusão burguesa entre-duas-guerras
Com as cores do Alentejo
Elevando um cântico despojado,
A universalidade da diferença
A solidão do pensamento a criar
A partilhada história

Chiu, cala-te ó mundo revolto
Que Portugal parou! E de Lisboa
Ao Alentejo, viam-me a cavar um fosso
Incansável como a raiz do mal
Que ao medo se amarra e que os homens
Arremessam em punhados de miséria

Cala-te e olha para mim
Vê se também eu que cavo para preencher
Com palavras a terra no plúmbeo amanhecer
Não sou um camponês, com o meu rosto escondido
De ferida e estrela
E se não tenho o meu direito
Sobre esta terra sem limites
Sobre as sombras que me não entendem
Eu, um bastardo da luz directa
E me arranco daqui, do poema, de ti!
Apenas deixando as obscuridades emanadas
Da social-mitologia!

Sofri sobre ti, sobre ti amei e sofri
Com a violência primitiva do espírito
Que te esculpirá um corpo, e tenho direito
E cala-te porque quer a arte ter palavra
Expressiva e não didáctica e para lá
Das colinas! ou das ruas árabes
Ou do que foi mais antigo no mundo
E na espada erguido Eros
Rompa então a sujeição
Ao pai obscuro!

Bastardo da luz directa numa vila
Da província, abro a porta sobre a treva infinda
Nomeio um novo ser, um abismo humano
A partir do mundo condenado, esse, de dignidade e liberdade
Impregnado.


André Consciência

sábado, 8 de dezembro de 2012

Invasão



Para lá das muralhas estavas, como uma aldeia coberta de branco.

Ao longo dos anos a tua luz batia-me, e de fortaleza fazia-me
Reluzente vidro e mármore.