segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Que falta de sol na tua pele vítrea

O sudário rápido da treva, a subida brusca do frio pela pedra - parque de mão dada, antes do almoço. Seios miúdos. Na desordem das nuvens claras há uma vaga sensação de espanto - e os figurinos insólitos e habituais tocam-se, e desfazem os nervos, pouco a pouco - houve um tempo de alvorada em que fui intimo dos pássaros e do trigo - e pressentem o pórtico soberbo da loucura onde uma água de ouro lhes chega aos joelhos - uma praia onde já estivemos, a areia ruiva, e o cântico muito azul da maré vaza. Tu beijaste-me as pálpebras, as dunas são feitas de luz branca - e as árvores quase humanas vão cair à beira da estrada - as minhas mãos apreensivas arquivam a noite, a vibração das tuas pestanas - e a tristeza do adeus no vento da tarde é pior que o ranger de vidro, e riem os laranjais dourados dos campos de há muito.

Exílio




A hora do Sol em pó sobre as relvas macias
A noite a introduzir-se nos arbustos
No monte branco centelhas de escuridão
Uivam cães ao crescente, uma corneta afiada
Marcial, no vale como pétalas azuis que caem -

O rapaz de rosto a terra e sangue
Preenchia o espaço turbilhonante da insónia
Em que o seu corpo se desponderaliza e rola por abismos
Selvagens.

Até tu, daqui to digo, até tu partiste
Para a Alemanha.

E não ficaste,
Abandonaste estas correntes com patas de centopeia
E espigões

Sh. Onde a minha casa não tem jardins o som desfaz-se.
Estrelas viscosas lambem os joelhos do rapaz,
Desse animal de vidro a apertar as ameijoas dos olhos
Com tanta força.

Deixemos agora de falar e que o relógio não domine
Sh, e inventa o Sol, resiste, vai beber nos lírios
Uma luz incerta vai pelo ar e sacode a angústia
Vês?


André Consciência

domingo, 30 de dezembro de 2012

Naquele Descampado O Chão Eram Lençóis

André Consciência



Ganhava a vida a atascar o braço na vulva das vacas
Doíam-lhe os calos, as botas, os pés inchados,
E cortava o cabelo com as unhas grossas e duras
Sem querer saber para nada de Lisboa nem do estrangeiro
A amar a terra indivisa e fecunda, para além da própria vida
Que fecunda e indivisa se fazia.

Grosso e escarlatino, grande,
Meio monstro e meio bobo ia a Lisboa
Quando muito a Évora, e deitava ao leito
Uma ou outra menina, que as visse
Pintadas de bucólicas rosinhas azuis.

Mas na cidade as camas eram sempre estreitas e fracas
Para ele, e só então reconhecia na sua nobre consciência
A sua monstruosidade, já o corpo agigantado e espesso
Se separava dele e no outro lado do mundo as mulheres choravam
Mas ele estava noutro planeta, todo cravado
De dores, um poço sem feitio.

O tempo era parado, desumano,
Quando tinha pena -
Um animal doente e nefasto,
Aliás, nunca pensava nele.

Levava-as para aquela rua mais pobre
Onde as casas nem sequer tinham janelas,
Depois, com ondulações de mar nos flancos
Morriam, doce e resignadamente, com uns olhos de água
E de amor, e pouco a pouco emudeciam, bracejantes
Naquele tapete verde-amarelo do crepúsculo.

Como eram decentes a morrer!

Metia-as lá fora, o Sol a escaldar,
Mulheres velhas e novas também,
Todas agora sem idade.
Que Sol! Que caras de fome!
Minguadas, raquiticas, cosidas com rugas,
Todas em tempos a alimentarem-se de violetas
E a urinarem prata.

Um dia também vi um querubim de cinco anos
A esmigalhar ranhoso a cabeça de um gatito
Tranquilamente entre duas pedras.


Horned Wolf

A Devorar O Fumo




Primeiro foi um gato, um gato vivo como a plumagem de uma ave exótica:
O volume macabro de um feixe de gritos fechado num círculo de luz.
Depois o homem que ria, com um grande risco cósmico, medonho e azul,

Meio insultante, meio condoído,
Ou o negrume do quarto.

Evanescente, o homem pássaro, sem rosto,
A mexer na alba incerta de um sacrifício.

A revolta crepitante viria visitá-la,
A ela, amarrada ao seu carrasco bestial e sagrado,
A ela, ensanguentada, metade cio e orgulho, metade
Nuvem cor-de-rosa.

"A vida é uma puta sem nenhuma recordação incontaminada?"
Perguntava a si própria, lutando em vão para expulsar os olhos:
Aqueles monstros absurdos que lhe forçavam as represas
Do eu profundo e movediço da enxurrada escura da insónia.

Deixa-me ser, rompida aos gritos, liberta de toda a cautela,
De todo o pudor.


Horned Wolf

Aquele Vento Aguilhoante




Há um deserto que se fecha sobre mim
Sem drama, sem grito, sem motivo,
E todos os dias são domingo, todos os dias
São domingo.

As tuas mãos fantasma mostram as ruas
Brancas de um Junho paralítico, de cal
E de noite luarenta:

As raparigas morenas atravessam-na
Estralejam risos, em bandos,
Pelas coxas, a saia a sair do joelho,
A afiar as orelhas nas discotecas
Consumidas nos biocos à meia porta.

Eram os tristes e os pobres, sem
Amanhã, mas a folgar como cigarras
Eu, porém, cada vez mais branco
De cal e de noite luarenta,
Branco de Junho, das ruas longas
Dos almocreves e dos barbeiros.

Choviam plumas de sangue
E dentes de fogo,
E haviam leões à solta
No jardim dos tuberculosos
Tão acesos de cores e de gritos

Perdidos em colecções de amorios
Até ao fastio, entre seios de meninas
Radiofónicas,

Mas agora só jorrava lá fora
Um vento desencontrado
Dos sementeiros do céu
E do luar envenenado

E haviam fantasmas à solta
No jardim da vigília
Estava fria a cama e a botija
Eu branco de ti a aturar-me
Cigarro na mão, estiraçada na cama
De sexo rico e onde eu nunca
Penetrara, de ancas arqueadas
E lareira funda, de pedra à vista
Não alisada, carcomida numa imagem
Mais simplória, a esvoaçar entre cortinas
Com desenhos gordos de anjinhos
A puxarem também lume a um cigarro
Entre crochet, e eu sorria
A fazer-me de interessante,
Com a luz do sorriso a esfarelar-se
Na boca, dissolvido em confusa
Humilhação, a cabeça fina e frágil
A pender de nojo para os tijolos
Lavados.

André Consciência

sábado, 29 de dezembro de 2012

Léguas de Desalento





O verme do fastio
Nos modos e nas frases mais inocentes,

As espumas na janela estremeceram
E o avantesma a sumir-se num cotovelo amachucado
Da rua, então

Um medo sobre-humano mergulhou-me
Nos gelos do fim do mundo.


Horned Wolf

domingo, 23 de dezembro de 2012

Ventre Vazio de Portugal


Penteado - André Consciência




Um homem só possuía de si as mãos
Mas a estrada: a poeira do tempo
A terra fulva das cidadezinhas esmagadas
O céu cru do trigo e das ovelhas
O Sol queima o rosto magro de um povo inteiro
Como uma máscara dourada

A Espanha com a sua ilusão socialista
A grande ilusão burguesa entre-duas-guerras
Com as cores do Alentejo
Elevando um cântico despojado,
A universalidade da diferença
A solidão do pensamento a criar
A partilhada história

Chiu, cala-te ó mundo revolto
Que Portugal parou! E de Lisboa
Ao Alentejo, viam-me a cavar um fosso
Incansável como a raiz do mal
Que ao medo se amarra e que os homens
Arremessam em punhados de miséria

Cala-te e olha para mim
Vê se também eu que cavo para preencher
Com palavras a terra no plúmbeo amanhecer
Não sou um camponês, com o meu rosto escondido
De ferida e estrela
E se não tenho o meu direito
Sobre esta terra sem limites
Sobre as sombras que me não entendem
Eu, um bastardo da luz directa
E me arranco daqui, do poema, de ti!
Apenas deixando as obscuridades emanadas
Da social-mitologia!

Sofri sobre ti, sobre ti amei e sofri
Com a violência primitiva do espírito
Que te esculpirá um corpo, e tenho direito
E cala-te porque quer a arte ter palavra
Expressiva e não didáctica e para lá
Das colinas! ou das ruas árabes
Ou do que foi mais antigo no mundo
E na espada erguido Eros
Rompa então a sujeição
Ao pai obscuro!

Bastardo da luz directa numa vila
Da província, abro a porta sobre a treva infinda
Nomeio um novo ser, um abismo humano
A partir do mundo condenado, esse, de dignidade e liberdade
Impregnado.


André Consciência

sábado, 8 de dezembro de 2012

Invasão



Para lá das muralhas estavas, como uma aldeia coberta de branco.

Ao longo dos anos a tua luz batia-me, e de fortaleza fazia-me
Reluzente vidro e mármore.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Um milhão de anos a dormir





A Lua ergue-se
A brilhar alto
E veste uma prece
A cantar no planalto
O tolo cantar
Do sonho que sonha
Pende
E a sonhar, a lágrima que acabou de passar
E que à espiral no topo do choro
Veio aquietar
Um amanhã mortiço
A passear-se movediço
Sem passar
E deixa-me falar
No meu quarto contigo
O amanhã redistorcido.


Corvo Cego

sábado, 10 de novembro de 2012

Um rapaz é a vontade do vento

The Wick Effect - Rebecca Massey



Bailava à beira das rochas
As poças deixadas pela maré baixa,
Os olhos saltitavam a espreitar debaixo da falésia
A luz lampejava um borrifo de ondas
E o cabelo do Sol esvoaçava ao vento.

Trovoada acima das ilhotas no horizonte:
A mágoa dos marinheiros erguia-se no céu
E batia na base do pináculo rochoso.

Enquanto passava entre as poças
Senti o vento fresco a ficar mais frio
E húmido.


André Consciência

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A Lua Corria Com O Penhasco Branco





E se o vento morresse?
O sinal luminoso na torre
É a única parte visível
Da cidadela. Lembro-me
De falares o idioma do Verão?
Um manto de penas cobriam a terra
Enquanto o cisne era amarrado.
Os mestres cinzentos cobrem-no
Com livros para vender. Tu eras
Um labirinto, e eu não tinha tempo
Para me perder: o dia estava húmido.
Senti olhos em mim, observando-me de dentro
De soleiras escurecidas. No Inverno andávamos
Pelos baixios a apanhar rãs, os teus seios duas
Esfinges altas, um ribeiro de faces rosadas corria
Por perto deles. Um salão de chão de pedra e altas
Janelas arqueadas, eu um homem de cara chupada, corvos
Patrulhavam as ameias em vez de arqueiros.

Ouviam-se batimentos de asas e murmúrios,
E aqui e ali um grito irritado,
No topo dos degraus um jovem com idade de ouro
Cujo olho direito saia de uma vela. Olhava
Para a chama do seu olho à procura de mulheres
Nuas para ir ver o Mago; os leviatãs eram cinzentos.

Toda a feitiçaria provém do sangue ou do fogo
E há sangue de certos homens, que é como o sangue
Das estrelas.

Do lado de lá da janela estava a escurecer.


Horned Wolf

sábado, 3 de novembro de 2012

Coroa de ferro negro suportada por dois corvos




 Campos carbonizados e aldeias queimadas surgiam nas margens, e os baixios e bancos de areia estavam semeados de navios quebrados. A enseada enchia-se de murmúrios e um cisne branco continuava a avançar, começou a colidir com os cadáveres que eram empurrados pela corrente para o mar. Alguns dos corpos transportavam tripulações de corvos, que se erguiam no ar, protestando ruidosamente, quando o cisne perturbava as suas jangadas grotescamente inchadas. Delineada contra as estrelas do princípio da noite, era neve, caindo. O pátio estava coberto por um fino manto branco, que se ia tornando mais espesso e voltava a subir em silêncio. Não haveria mais plantações, nenhuma esperança de uma colheita. Na costa, assassinos de capuzes brancos tinham-se tornado de novo em crianças sob o frio feitiço branco, e travavam uma guerra de bolas de neve pelo pátio e ao longo das ameias.

André Consciência

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A coroa tem uma necessidade desesperada

Tomas Rucker



Riso ébrio de uma mulher
Paira no ar
Com a toada de uma harpa
A azul voz de um cantor
A cantar

Quando o Sol nascer
Que me não encontre
No acampamento.


Tinha os pés negros da lama seca,
As pernas nuas
Lábios estalados
A companhia de uma rameira de cabelo de palha
Tão bêbada quanto eu
Os seios a jorrar do vestido
E grandes mamilos castanhos

Quando o Sol nascer
Que me não encontre
No acampamento.


Empoleirado sobre a sua cabeça
Martelei-lhe um aro de bronze
Gravado com runas e espadas negras

Quando o Sol nascer
Que me não encontre
No acampamento.


O vinho e a cebola
Subia aos seus olhos pequenos
E caia do queixo carnudo
Com perfumes

Quando o Sol nascer
Que me não encontre
No acampamento.


Horned Wolf

sábado, 20 de outubro de 2012

violet and a warm and a cool brown thrown in

The Legend of the Selkie - Bryce Cameron Liston




A sereia e eu, fiel,
Partilhamos um ensinamento
No bardo azul cantado
Do fundo do mistérico
Mar

Um polvo ilusório levanta-se
A deslizar o coral enquanto sobrevoa
O debaixo azul do reino náutico

Olho para as mãos
Com ofertas marinhas
E lembro-me do tempo
Que saia do limite oceânico
Uma largura de paz

Elegante e graciosa
É a sereia
Como música a soprar
As águas
Mostramos os tesouros
Se fosse rebentação
Aves de pesca e brisas de sal
Colocando-nos debaixo da cachoeira
De Lua a escorrer. A sereia
Adorna-se com pianos:

Dorme tranquila e pacifica
A rebentação é um sossegado
Pensamento,

A descansar no chão do abismo
A vagar um oceano de sonhos.


André Consciência

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Junto do portão de lama para se despedirem



O dia frio
Cinzento e
Húmido.

A manhã inteira a chover
Mesmo depois da chuva parar.

Não chegaram a ver o Sol
Na arcada das donzelas
Ouviram o Bardo Azul cantar.


Horned Wolf

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A Dualidade Persistente

Hans Arnold



Peculiar, que a esperança e desespero
Venham a ser
Como destroços em beleza

Mas há mais a seguir
E o ego a persistir -

Assim ergue o que resta
Destes troféus em ruínas
Lança mais um fósforo ao amontoado
De ramos embebidos em vinho

O ego resiste e insiste --

Como se abandonado
Entre flores que murcham de um
Jardim ao Norte voltado
E todavia o frio e a penumbra
Sem incomodar jamais
Deste ponto o lar é vista
De onde estou, até os tijolos
Vibram com conquista.

De vez em quando
A janela aberta atravessando
Ouço vir música


Mermaid (R.I.P.)
Tradução André Consciência

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Templo No Cume da Noite

The Siege and Relief of Leiden - Erwin Olaf



Imensos arcos cinzentos do rio doce ladeavam-no. O som da sua língua reverberava pela lagoa e pelas enormes torres quadradas, atenuado pela distância, mas ainda suficientemente forte para abalar as cidades adormecidas. "Aprende três coisas novas antes de voltares", dizia aos seus visitantes. Eles faziam-no sempre, por vezes não passavam de três palavras novas sem língua, histórias que não haviam encontrado ninguém para as contar, ou maravilhosos e estranhos acontecimentos do vasto mundo que se estendia para lá do homem amável: chuvas, guerras, sapos a eclodir. Adivinhas, truques de mágico, anedotas, segredos. A cada segredo que lhe contavam o homem amável enchia-se de mais nevoeiro, uma nova máscara aparecia numa nova parte do corpo, e novos suspiros assolavam os velhos ossos. A rapariga que era a sua visitante no presente sabia-lhe um rasto que datava um século, embora o homem afirmasse que eram três os que tinha em si. Este surgira do ventre de escravas, prostitutas e sémen de ladrões, era um filho bastardo que escapava. Viera de meia centena de terras até ali em busca de refúgio, meia centena de deuses vieram com ele e todos eles estrangeiros. Por vezes aparecia como uma cabra preta, com um leão cuja pelugem era a noite. "Toda a humanidade me pertence. Caso contrário, algures no mundo haveria um povo que viveria para sempre. Conheces algum povo que viva para sempre?" Perguntava à rapariga e a rapariga ficava a sonhar com o dia em que a névoa dos segredos revelados o escondesse. 

Horned Wolf

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A longa sombra farpada

Jose Del Nido


Quatro irmãos jantam em quatro longas mesas. As mesas estão decoradas de três diferentes tipos de peixe, caranguejo guisado, mel vindo das colmeias, barro cheio de manteiga, pães de forno. Proferiram uma prece antes da comida ser servida, e tocaram harpa vertical, enchendo a sala de sons suaves e doces, o alimento intocado, só para os anjos.

Lá fora, quando as chamas morreram, uma pobre mulher havia sido violado uma dúzia de vezes, os seus seios tinham sido rasgados, mastigados e comidos.


Horned Wolf 

A mulher dos moinhos de vento

Jose Del Nido


Uma veste cinzenta adejava em volta das suas pernas descarnadas, pele enegrecida mostrava os locais onde as chamas a haviam lambido, mas o tempo e a chuva extinguiam essas marcas. Leões, fumados com cinza e azul, perfilhavam o pavilhão, de olhos carrancudos. As paredes continuam despidas, e ela também. Espero um dia cobri-la com tapeçarias, cenas de piedade e devoção. A nossa janela dá para o bosque sagrado. Lágrimas rolavam-lhe dos olhos castanhos como o bosque e a Serva Branca ladeava-a sem dormir há uma quinzena, durante a qual os cavaleiros vagueavam pela mata de chuva lá fora. A Serva branca era uma mulher que usava só um olho, coberta por manto e capuz. O olho que lhe restava era terrível de contemplar, e as suas faces rasgadas e cheias de cicatrizes. A mulher dragão enrolou uma trança no dedo, estava a corar por baixo das lágrimas. Os criados estavam a trazer um prato de peixe, um lúcio cozido numa crosta de ervas e nozes moídas. Dela, os dedos pálidos acariciaram o ar enquanto na arena, os infiéis eram devorados por areias movediças e lagartos-leões. O resto é ossos e cinzas, uma vila inteira. Cães acesos como archotes corriam-na sem cessa. Eu estava descalço, vestido com uma túnica simples de lã não tingida que me fazia assemelhar-me mais a um pedinte do que a um lorde. Lá fora não haviam pardais, só árvores nuas a cismar, com os ramos negros a elevarem-se no telhado vítreo do céu. Um tapete de folhas mortas rangia sobre a minha cabeça. Sempre que fitava a mulher, recordava que as vidas são como chamas de vela, qualquer aragem vadia as pode cessar.  

Horned Wolf

Fazei soar os campos

Jose del Nido


O seu olhar foi atraído para a donzela sem boca com o cabelo soprado pelo vento e braços ao peito. Um homem de lábios azuis e sem nenhum olho tinha uma rapariga bonita e roliça de dezasseis ou dezassete anos ao colo, descalça e desgrenhada, com os braços envolta do seu pescoço. Sentiu o cheiro do mar que entrava pela janela aberta, embora o quarto fedesse a vinho, sangue e sexo. O vento entrava em rajadas pela nudez. A sombra da tarde caia, como um licor que fosse preparado por magos. Os homens são carne, e a carne come a carne. Descobrirei uma mulher dragão, a mais bela mulher do mundo, para mim.


Horned Wolf

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Animula Vagula - A NOITE EM QUE A ALMA DO VERBO VAGA


André Consciência, autor português de "À Beira-Lua" e "Espinhos Sem Morte" interpreta teatralmente poemas exclusivos com ilustração sonora da sua própria autoria sob o nome de Babalith.


"As asas feriam-me o corpo, não paravam de crescer
Em tantos lugares, as asas, arrastavam-me pelo chão,
Nos lugares do vento, contra mulheres despidas e homens
Desarmados."


Andréia Carvalho, poetisa brasileira, autora dos livros "A Cortesã do Infinito Transparente" e "Camafeu Escarlate" encarnará os seus feéricos poemas fazendo-se acompanhar da sua contagiante videoarte.

"quando soror noite apócrifa, inúteis o credo e o terço.
em coma ilusória,
quiróptera, lua de hóstia:
nigroresplandeço"



Entrada:
5 Euros

Cruz Redentora



As ratazanas infiltram-se
Nas mãos, nos olhares
Nas arestas do amor
E as pessoas agitam-se
E gemem em volúpia por tudo
Se perder.

Horned Wolf

sábado, 29 de setembro de 2012

Formas de Ferro




No dia do meu desapontamento

Havia rosas num mar de ferro
Não significávamos nada
E as nossas memórias sido mijadas
No topo, por mulheres furadas, e,

Com formas de leitão.


Horned Wolf

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Todas as luzes são as últimas


Last Lights - Tomabw




Visitava palácios de duendes, corais de musas, catedrais de anjos.
Há três formas de ser poeta, e nenhuma delas - existe.
Se via uma pessoa a caminhar na minha rua de palha e árvores
Pedras e cobrinhas, permanecia quieto como o mar antes
De ser mar
Sentia que o amor - ali chovia com força
E derrotava o facto da pessoa ser pessoa
Pele sem limites, quente com alma.

Se toquei a primeira alma fiquei noite
O amor procura o mundo para ser calor
Mas eu não sou do mundo. Fora do mundo
O amor é gelo que preserva o Anjo.

As minhas mãos acenderam-se: nas pessoas
As mãos são a parte da alma que está no mundo
Não existe nada sobre os sentidos
Que possa ser verificado.

O meu rosto mentia sobre tudo
Mas a culpa nunca foi minha
É a natureza dos rostos expressar-se.

Fiquei quieto, muito tempo, mesmo muito tempo
As mãos mexiam-se no vento, no baloiço
Da trepadeira, no coração apaixonado das meninas
Que ainda se apaixonam a fingir a sua própria
Crença, na videira das manhãs que roubam
O toxicodependente da loucura
E arrastam os filhos das mulheres
Aos pesadelos sem solução.

Quase desejava não ter rosto
Que me tocassem no gelo
Mesmo que morressem
Porque o frio não morre.


André Consciência

O mundo sem um mundo






O silêncio aumenta com os dias, dentro da neve.
A boca dos lobos, pendente e morta.
A pele macia da tua presença sorve a voz
Para brilhar o alto.
As memórias pairam sobre o chão moscado
As almas vertem-se na bacia dos vendavais
Do esquecimento.

Ergue-te, coisa amorfa
Do que foi confiança
No meu dissemelhante:
O coração um corvo cego
Na cabeça um martelo.

A eternidade é um machado
Que corta a vida
Do seu outro lado
E não restarão então banheiras
Para arrefecer a tosse
De estar vivo.

Os outros, que caiam
Como maçãs, surdamente
Na neve muda: os milagres
São um cântico
Ao contrário.


Horned Wolf

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Malak IX



Quantos dias passaram? Aqui as noites são da cor da uva, os dias são como um pôr do Sol em constante chuveiro, são muito amarelos. Passaram-se alguns dias, como punhados de décadas. Vi as primeiras gerações crescerem no Reino, todos me tratavam como pai e irmão, eram uma família, e eu distante, diferente. Não sei porquê. Depois na longa marquise vidrada vi chegar um pássaro brilhante como a estrela prateada. Foi igual a ver chegar a minha alma. Abri as janelas quanto pude mas tarde demais. Não voltei a falar desde esse dia. Quando me senti imóvel como uma raiz pus-me em viagem e nunca comia muito. As  auroras boreais de Outono perseguiam-me ao longo de todo o mar estreito. Por vezes subiam do Sul, numa fúria de relâmpagos e névoas verdes que levavam dias a cair. Por vezes desciam do norte, frias e graciosas, com ventos selváticos que trespassavam as tábuas. Uma vez ficara tão frio que quando acordei encontrara todo o navio coberto de luz, gelado, branco como uma pérola. Outro dia encontrara-me a sonhar aos pés de pedra de um senhor do céu qualquer, há muito morto, vejo uma estrela vermelha a sangrar no céu. Ainda me lembro do vermelho. E a ave voltou a mim, não cantava. Nunca cantava mas tínhamos uma aliança silenciosa e compreensiva. Quando notei em mim: conversava. Voltei a fazer famílias. E uma daquelas noites em que os clarões violeta pairam no ar com preguiça, a ave abriu o bico, como tantas vezes fazia, mas desta vez cantando. Uma implosão fez-me lembrar de tudo. Nunca fui humano, sempre o soube, mas construí uma muralha entre a solidão e o ser, e a principio fiquei em nenhuma das fronteiras. Agora a ave cantava e o seu cântico era a minha morte. O meu corpo sangrava azul e a multidão foi buscar paus e navalhas. 


André Consciência

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Eterno Crepúsculo



A escuridão caia sobre a cidade e, ferida, arrastava-se por mim, pelas vielas, pelos canais, agarrava-se às habitações. Há duas noites, estava em pé junto à janela, não sabia se devia praguejar ou chorar enquanto via a última luz do Sol desaparecer atrás de seios bicudos. Mas há muitos anos, nesta mesma orla de cidade onde repousa a lagoa, uma agonia repleta de luar ouviu-me cantar, sobre uma cortesã, e recompensara-me com um beijo, um estrondo oco ecoou sobre os telhados, um trovão distante. Depois, todas as pessoas se tornavam velas, mas nenhum fogo me queimava. 


André Consciência

Peixe-Lua



Uma ave desce na chuva, o dilúvio que o decora, decora-me. Eu, que sou um desejo tão antigo que se esqueceu por quem. Lá fora os homens e as mulheres de cio, iluminados pelas feras nocturnas, não me conhecem. Na praia, rompiam-se as neblinas altas dos abismos e falei-te, tu ouviste-me, quando falaste fiquei a ouvir-te: e com esta loucura julgam os deuses perder a razão, mas quando o fundo purpúreo da terra com todas as suas estrelas em cor de cereja se erguer, uma e outra vez, arrastando a noite à queda, e as magias onde vivo me deslumbrarem uma vez mais, tudo o que é sólido será ainda mais sólido, evaporado, e é dessa paixão que a madrugada acende as brasas todas do mundo, e eu ainda não me lembro. É manhã.

A terra tinha o teu sabor e bebia-me os olhos.
O tempo passa como uma neve cinzenta nos nossos cabelos.
A dor ilumina-se, a fingir uma luz que resgata.
Inicias um labor nos meus ossos, mais velho que eles.
Tudo se evapora, excepto o coração do homem morto,
...e como ele ama...
Terás sido talvez alguém que me procurou encontrando
Os meus pertences de defunto
Enquanto para mim uma fundura térrea se abre de tu seres
E não se queda jamais.

As minhas mãos têm entre os dedos
Líquenes que brilham
Luminescentes como uma vigília no sono
Não terão sido sempre sós.

Havemos de fumar um cigarro e olhar o mar.


André Consciência

sábado, 8 de setembro de 2012

Além-bismo




Dentro da casca que não se parte por estar quente
As estrelas guardam as suas premonições:

Existe uma esperança interna às coisas simples
Mas o sangue diz-nos que somos em todos os momentos
Como se a esperança fosse os momentos que já são.

Abandonado o rio, caímos como pássaros finalmente vivos,
Como a areia, voamos em círculos.

Onde está a escuridão penetrante das auroras mortas
Olho para esses momentos, o rosa dourado...

Soraya Moon & André Consciência

quinta-feira, 30 de agosto de 2012



Respiro cores quando me visito
mas visitar-me tornou-se ousado
Expandi, enlouquecendo
estou afogada em luz, já não vivo aqui
sorrio com todo o meu corpo
visitaram-me
e tudo se tornou real em mim
não preciso mais procurar os meus olhos
Mil pássaros me voam
para onde vou não há forma de compreender


Soraya Moon

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Praça do Bocage




Conversam sobre a vida
E a vida parece assim
Ligeiro assunto
Mas conhecem, todos,
A eternidade passageira
A alma em retalhos.

No conforto do lar
Reflicto depois, abrindo a asa
Que me sobra da outra asa
Nada importa,
Nem se a vida surge viva
Ou morta:

Tudo o que há
É o que passa
E o que passa
Fica, como uma praça
Onde conversam sobre a vida
E a vida parece
Que amanhece.


André Consciência

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

And Death Shall Have No Dominion





Defuntos nus fundir-se-ão
Com a lua a poente e o homem do vento;
Quando os seus ossos forem limpos e os limpos ossos varridos,
Haverão estrelas onde haviam pés e cotovelos;
Ainda que enlouqueçam serão sãos,
Ainda que se afundem no mar deverão emergir;
Ainda que se percam amantes não se perderá o amor;
E a morte não dominará.

E a morte não dominará.
Sob as dobras do mar
Aqueles que há muito jazem não perecerão ao vento;
Contorcendo-se desesperadamente enquanto sem romperem
Acorrentados a uma roda, os tendões cedem;
A fé nas suas mãos fender-se-á,
E os males unicórnios atropelam;
Em todas as extremidades rachadas estão ainda intactos;
E a morte não dominará.

E a morte não dominará.
As gaivotas não tornarão a chorar aos seus ouvidos
Ou as ondas a quebrar alto nas costas;
Onde uma flor desabrochou nenhuma outra flor
Erguerá a cabeça às investidas da chuva;
Ainda que estejam enlouquecidas e mortas como pregos,
As suas cabeças martelarão as margaridas;
Irrompem ao Sol até que o Sol se rompa,
E a morte não dominará.


Dylan Thomas
Traduzido por André Consciência

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Dentro do Fim

I

A vida acaba cedo
E prolonga-se tarde demais
Gostava de viver noutro tempo
Noutra terra, partir de outro cais
Onde o teu nome gravado
Não fosse um nunca mais...


II

É de manhã
Tive de vender o carro
Por 150 euros.

Lembras-te das nuvens
Como eram
Nas outras manhãs
Perfilhadas como corredores brancos
Por dentro do teu carro
Com bancos recolhidos
Onde nos deitávamos sobre nós
Com mais que sentidos?


III

Dói-me existir
Sem a dignidade possível
Dos primeiros momentos.

Os pássaros voam sobre as carcaças translúcidas
Das nossas almas pouco lúcidas
Que se lavam nas margens de beijos,
Ou de mulheres abertas com filhos
E homens que choram em brilhos.


IV


As luzes na penumbra dos aguaceiros deixam-me morrer menos sozinho.

Ninguém me lembre, tudo o que eu fui não foi caminho.


André Consciência

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Pós-Sonho




Todas as janelas se tornaram negras
O fedor da morte estava
A ficar mais forte
O Sol pusera-se de vez
Asas pretas batiam contra o ar
Da noite enquanto procuravam
Uma forma de entrar
Conseguia ver a ténue luz
De estrelas distantes
Como um noivo a caminho da cama
Um corvo jantava um rei
Pelas portas da Mãe marcharam mulheres brancas.


Horned Wolf

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Os Homens Ocos

I

Somos vazios
Homens de palha
Inclinamo-nos juntos
Elmos com cerradura. Ei-las!
As nossas vozes secas, no momento
Em que juntos sussurramos
Estão quietas e obsoletas
Como vento na erva morta
Ou passos de rato sobre vidro partido
No nosso abafado sótão 

Contorno sem forma, mancha sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento;

Aqueles que passaram
De olhos directos, para o Reino outro da morte
Recordem-nos - se de todo - não como almas
Perdidas e violentas, mas apenas
Como os homens ocos
E empalhados.



II

Olhos que temo ver em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Ali, os olhos são
Sol na coluna quebrada
Ali, uma árvore que balança
E vozes são
Na canção do vento
Mais distantes e mais solenes
Que a estrela desvanecente.

Que demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
E que vista
Enganos mui deliberados
Casacos de rato, pele de corvo, estacas cruzadas
Num campo
A comportar-me como o vento
E não mais -

Não aquele último encontro
No reino do crepúsculo.



III

Eis a terra morta
Eis a terra dos cactos
Aqui as imagens de pedra
São erguidas, aqui recebem
A suplica da mão de um morto
Sob a radiância de uma estrela moribunda.

É assim
No reino outro da morte
Acordar sós
Na hora em que nós
Trememos de ternura
Lábios que beijariam
Formam preces à pedra quebrada.


IV

Os olhos não estão cá
Cá, não há olhos
Neste vale de estrelas a morrer
Neste vale oco
Esta mandíbula estilhaçada dos nossos reinos perdidos
Neste último dos lugares de encontro
Tacteamos juntos
A evitar discurso
Reunidos nesta praia do rio túrgido

Cegos, a não ser
Que olhos ressurjam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino crepuscular da morte
A esperança apenas
De homens ocos.


V

Aqui rondamos a figueira-brava
Brava figueira brava figueira
Aqui rondamos a figueira-brava
Ás cinco da manhã
Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E o acto
Cai a Sombra
Pois Vosso é o Reino
Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a resposta
Cai a Sombra
A vida é muito longa
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descida
Cai a Sombra
Pois Vosso é o Reino
Pois Vosso é
A vida é
Pois Vosso é

É assim que o mundo acaba
É assim que o mundo acaba
É assim que o mundo acaba
Não com um estrondo, com um suspiro.


T. S. Elliot
Tradução de André Consciência

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Vénus Desarma Cúpido



Não sabia o que desejar, tal como não sabia o que esperava sob aquela luz distante. Os flocos pairavam com a suavidade e o silêncio da memória, cobrindo a erva, salpicando de branco os arbustos e as estátuas e inclinando os ramos das árvores. A neve doía-lhe naquela manhã. Partira com os flocos a turbilhonar à sua volta para ver o grande e vasto mundo. Da mesma forma, a esposa deixou as portadas abertas enquanto se despia. Despiu um manto de raposa branca, luvas de couro, botas atadas a nível do joelho, dois pares de meias para as pernas, o vestido de lã azul, e a roupa interior de seda e linho, quando a neve começou a entrar pela janela. Sustive a respiração, sem desejar perturbar uma beleza tão perfeita. O silêncio fantasmagórico caía e caía, e acumulava-se numa camada grossa e contínua no chão. O mundo tinha fugido de todas as cores. Era finalmente negro, cinzento e branco. Um mundo puro. Flocos de neve roçavam o rosto da estátua da Mulher Chorosa no centro do jardim, com a leveza dos beijos de um amante. Viraram o olhar para o céu e sentiram a neve nas pestanas, saborearam-na nos lábios.

Horned Wolf

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Aneis de Vénus

Venus Disarming Cupid - Parmigianino

Prato 1

Vénus, com um lampião numa mão, uma rosa na outra, uma espada na terceira e uma foice na quarta brame para o sacerdote do fogo secreto - mero aspirante, neste caso -, que foi da luz e depois vendado pois de outro modo os seus olhos consumiriam o mundo:

«O segredo desta porta é ser em oposição a ter»

O aspirante pôs-se a pensar, demorando-se.

Vénus: 

«Estávamos a conversar, mas deixaste de me olhar»

O aspirante:

«Se não pondero movo-me no mundo como uma besta, e sou apenas o que me dá o universo a ser. Sem a razão o homem cai num buraco do qual não poderá sair mais tarde - nisto os escolares não estavam errados, arrisca a condenação que dura sempre»

O anjo que mencionamos sob o nome de Vénus:

«Muitas vezes confunde o profano a vigilância com o pensamento vago e vagueante onde se perde e se faz distraído - esta é que é a tentação do ter. Fecha os olhos longamente, no escuro, não te movas e fita a chama do teu fundo, sob pretexto desta questão. O que vedes?»

O aspirante:

«Um homem. Ficou cego. Ficou cego por muito tempo e os seus olhos tornaram-se estrelas. Este homem vê dois mastins a combaterem no Inferno»

O anjo:

«E atrás desse véu?»

O aspirante:

«Um homem ficou cego por muito tempo até perder o medo da escuridão, e quando perdeu o medo os seus olhos tornaram-se estrelas. Um dia este homem viu uma mulher cuja pele era branca como a Lua e os olhos dois astros azuis. Porque não tinha medo, combateu-a e amou-a. Com ela deu à luz filhos e gerou vida, apesar da mulher ser a morte»

O anjo:

«E atrás desse véu?»

O aspirante:

«Um rei construiu uma muralha para preservar a civilização. Emparedou-se na parte externa a vigiar para fora, de forma que só aqueles sem motivos para temer a luz do rei fizessem estadia no seu reino»

O anjo:

O anjo calou-se.




Horned Wolf

quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Ver Estrelas Cadentes




A muralha chorou e o Sol atravessou lentamente um céu de um azul forte, perto do cair da noite. As sombras estendiam-se negras e bem definidas por todo o castelo. O ocidente tomara a cor de uma nódoa negra, mas o céu por cima da sua cabeça mostrava-se azul cobalto, aprofundando-se até ao púrpura, e as estrelas começavam a surgir. Sentou-se entre melros, apenas com um espantalho como companhia, e observou-a a galopar pelo céu acima, com uma seta entre os seios. Os cristais de gelo tinham pousado no seu rosto, e, ao luar, parecia que estava a usar uma máscara cintilante de prata.   

Horned Wolf

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sete Céus





I


Atravessando casinhas, pavilhões e torres pequenas, rosáceas e arabescos esculpidos no gelo, fizemos amor nas varandas de balaustradas finas como teias de aranha... Diante de nós a majestosa catedral, cuja porta de gelo tem gravado um pássaro com as asas abertas estendidas para o céu. Fico a olhar para ti, um órgão de gelo escassamente iluminado por raios de luz, sem fazer a mínima ideia de como se toca. Um Gigante da Geada esconde-se atrás de uns rochedos, lá em baixo no vale. Disparas uma saraivada de esferazinhas cor de pérola, que me explodem em cima com efeitos mágicos muito agradáveis. Ouve-se um suspiro fundo e dolorido pelos subterrâneos. As tuas ancas ganham vida e emitem agora um azul da cor do céu. A tua pele está fria, sem ser gelada, e não se derrete. Lá fora, as montanhas continuam até perder de vista, cortadas ao longe por um planalto. O vento faz rodopiar os flocos de neve. O céu está tão claro e azul como nunca vi e os raios do Sol de Inverno reflectem-se intensamente na neve, quase a cegar-nos. Atrás da varanda e das janelas cobertas de geada, a porta dá para uma cela onde jaz um homem acorrentado de pés e mãos à parede de pedra preta e lisa.



II

O Terror dá lugar ao alívio, o Pássaro de Gelo canta outra vez e os duendes fazem coro com ele numa polifonia harmoniosa cujos ecos chegam aos cantos mais recônditos da Catedral. Um grande mocho branco desce a meio da noite, em tom reprovador. Ela é toda uma chuva luminosa de partículas douradas que me enregelam e me oferecem vitalidade. Pego nas chaves de gelo e penduro-as ao lado do órgão. As botas rangem na neve endurecida, quando atravesso casinhas, pavilhões e torres pequenas. Desemboco num cemitério todo salpicado de neve. Algo absolutamente selvático andou a abrir as tuas sepulturas, deixando espalhados fragmentos de gelo e os teus corpos amortalhados em fases diferentes. Sente-se no ar o teu desassossego. Crepita ainda um fogo frio já muito fraco. O pior é que o nosso pequeno quarto está vazio, apenas tapado por uma camada de pó. Talvez fosse imaginação minha, mas era capaz de jurar que ouvi risos ainda há pouco... 



III

A rir, corres para uma das paredes de gelo e dissolves-te nela. Fugiste com uma das minhas coisas! O brinquedo que colocavas à cintura está a desfazer-se por causa do frio e da humidade. Ao entardecer, avisto um alce a comer líquenes nuns rochedos. Uma nuvem de neve está a descer a encosta. As pessoas estão a vestir uma espécie de arreios, após o que saltam para os céus numa espécie de arco. Ao maravilhoso canto do pássaro, as enormes portas de gelo abrem-se de par em par. Continuo na direcção do coro e do órgão. Sobre o teclado está suspenso um enorme anjo de gelo. Parece mentira, mas o bonito pássaro conseguiu sobreviver no meio do calor e da humidade deste lugar infernal. Abre as asas e levanta voo! As tuas feições contraem-se num esgar de espanto e de amor, mas logo lanças para o ar uma magia que faz explodir a ave em mil fragmentos. O problema é que, no vale, a neve é muito espessa e temos de andar constantemente às voltas para nos desviarmos dos montões brancos. De manhã, comemos outra vez, faço-te uma boa massagem nos músculos doridos das pernas e retomamos a caminhada. Soltas um risinho abafado e disparas uma saraivada de beijos. O teu corpo cor de cobre invisível é encimado por duas enormes cabeças de dragão. A força e a bondade que irradias quase me paralisam de pavor. O Pássaro de Gelo endireita a cabeça e começa a cantar. Entoa uns acordes de forma magnífica e, depois, volta a esconder a cabeça debaixo da asa. 



IV

Cheira a queimado e a enxofre. Com a garganta irritada e os olhos a arder, abraço-te. Partimos em direcção ao norte, rezando para que a criatura que por aqui sobrevoa não me veja. Desamarramos a manta de peles no meio do pinhal e preparamo-nos para dormir. É óbvio que as salas foram todas saqueadas. As portas estão arrombadas e as esculturas e decorações de gelo feitas em pedaços. De tempos a tempos, ouço-te gemer do lado de lá da porta. É assim: o coração da Torre está no centro, atrás da Parede Preta. Pus-te no dedo um anel de prata muito simples. O dia está a acabar. A tarde passa devagar... Das tuas mãos sai um perfume, rosado e bem cheiroso, que me bate em cheio na cara. Lá de cima caem flocos de neve, que ficam suspensos a meia altura e rodopiam em torno da tua forma coberta de pingentes de gelo. O Sol põe-se no horizonte e sopra uma nortada agreste.  A tua voz é liquido dourado com reflexos azuis. Tenho uma noite cheia de sonhos estranhos com castelos e torres de gelo no meio de uma planície gélida e sem sombra de vida. Acordo. Subo a escadaria e abro a porta. As paredes da sala estão tapadas de baixos-relevos e esculturas de uma qualidade impressionante. Colunas de gelo com veios de cores delicadas elevam-se em formas sinuosas até ao tecto; a um dos lados, vejo o que me parece ser um órgão. 


V

Fazes uma vénia e conduzes-me à câmara principal, depois, desapareces com as tuas vestimentas. Um pouco receoso, avanço para a luz. E na manhã seguinte também. Os cães começam a ganir e afastam-se da beira do planalto. Caminho quase todo o dia até ficar exausto e com os olhos a arder por causa dos reflexos do Sol na neve. De manhã, comes uma refeição e vais lá para fora esticar as pernas, olhando para o céu azul pulvilhado de nuvens. És como uma forma alada no céu, para sul. Salta à vista que roubaram tudo o que havia de valor no quarto. Um molho de chaves e a tua túnica é tudo o que resta. Ficámos a ver o alce pastar, todo satisfeito. De repente, sinto-me alto e com porte de rei. Mal o dia nasce, comes uma refeição e partes rumo a leste. Ao princípio da tarde, chegámos a uma escarpa plana, sobranceira a um grande vale. Lá ao longe pasta um rebanho de alces. O Sol brilha no azul pálido do céu, mas os seus raios são completamente desprovidos de calor. As tuas cores cintilam ao Sol de Inverno. É que há coisas ainda piores que a morte. A porta dá para lá da cela, onde jaz um homem algemado e acorrentado, ofereço-lhe um livro castanho com apenas cinco parágrafos. «Isto alegra-me o coração e dá-me forças!», diz baixinho. A tua túnica é a última a saltar no espaço. A beleza do cântico em coro polifónico, que soa à distância, é de cortar a respiração. Bem que gostaria de ficar ali a ouvir. Não se pode separar o livro castanho do Pássaro de Gelo, porque a lombada do livro está presa à pata do pássaro. Ao fim do dia encontrei o teu corpo na neve preso numa armadilha. Na altura ainda estavas quente. Ainda irradiavas uma luz tão intensa, que mal podia distinguir os traços do teu rosto bondoso e afável.


André Consciência

Silêncio das Espadas





Á luz azul prateada das espadas
As lâminas criavam pequenas ilhas
A  rapariga parecia pálida e feroz
Envolta em silêncio e couraçada de neve
O rapaz ardia com uma luz fria
Branca, vermelha, escura
Deram por si no meio da escuridão estrelada
No interior de um grupo de árvores
O luar cintilava, pálido
Sobre o toco no qual descansaram a cabeça
O musgo cobria-os de tal forma
Que antes não notara que a carne estava
Branca.

Entrei numa sala vazia e vi uma cadeira vazia.

O meio-dia arrasta um castelo que se debruça sobre o lago.


Horned Wolf

terça-feira, 17 de julho de 2012

Deserto




Cavalguei até de madrugada enquanto as estrelas olhavam para baixo como se fossem olhos, e os dias que vivi são tão incontáveis quanto as há no céu. Gostava de dormir no salão arruinado, sob a lua e sob as estrelas, apertava-me à pele de leão e sempre que regressava trazia uma nova canção. Gostava de penetrar um circulo no meu coração, ver as últimas luzes que desapareciam a ocidente e as tempestades que se enfureciam para norte, mas o peito estava acima das chuvas: não, não acima do vento, que se faz sentir como se alguém nos puxasse pelo manto: é que o coração, e isto é quanto mais alto é, está assombrado: olha para as profundezas das chamas como se nada mais existisse no mundo inteiro. Hoje, o cabelo cai-me às mãos-cheias, ninguém me beija há mil anos, e não gosto das chamas pois o carvalho sonha a bolota e a bolota sonha o carvalho e o fogo é tudo aquilo que separa a vida da vida. Puxei o capuz do manto para cima da cabeça, e encolhi-me, empapado e a tremer de calor, sem jamais esmorecer. Os cascos do cavalo faziam sons de sucção ao libertarem-se da lama. Cavalgava para Sul, a fim de defender um castelo vazio, uma aldeia queimada entregue ao archote anos atrás, casebres enegrecidos e sem telhados, ervas daninhas que me davam pela cintura.            


Horned Wolf 

Último Dia




A vida, com os seus comprimentos e pináculos, elevando-se sobre as pequenas grandes coisas. Quebramos correntes, destruímos a maldade e com ela a cor do olhar, o eixo das mãos fraternas, o amor intermitente da paixão intemporal, zangamo-nos com a perda, a traição, o afastamento, ficamos mais atentos e mais apáticos, tudo se torna cada vez mais gigante mas já não nos assustaria o maior gigante. Olha, como trilhamos o pó, como navegamos na espuma dos nossos sonhos à semelhança da brancura fugaz sobre as ondas. Hoje é o último dia, o vento sopra igual sobre o dourado do campo e o vermelho das folhas, a água sussurra nitidamente como quando eu era ainda um pequeno mago de ouvidos limpos. Mas olha, tudo o que eu fiz brilha. No último dia fica a gratidão e uma enorme saudade. Porque aqueles que se partilham nunca se zangam, o que se zanga é outra coisa, uma coisa que nunca venceu a vida mas que só a morte pode derrotar. É o último dia. Por favor. Seja o último dia.



André Consciência

Outono



Milhas de campos e pomares enegrecidos
Ribeiros cheios pelas chuvas do Outono
As noites fremiam com os uivos de lobos
A Donzela montava um salmão vermelho
Flutuava sobre o castelo na sua colina

Um punhado de cães selvagens
Três corvos levantaram voo
Cinco raparigas mergulharam
Na lagoa da nascente

O verde começou a regressar
Meia milha mais à frente.


Horned Wolf

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Ruína em pé entre as ruínas

Thorton Oakley



Fora de tom o mundo gira, a inocência dói
As promessas apelam com cantos de mãe e caiem
Sem saber o que fazer os mares modificam-se.

As páginas mudam, mas eu não.
Todos os homens dormem em vão, porém
Nesta câmara e de pulmões cheios de água
Fito o espaço, e não chamo ninguém
E ninguém segue ninguém.


André Consciência

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Alaúde Revolto





Caminhava descalço e nu na neve, dedilhando o seu alaúde e enchendo a noite com uma música estranha e selvagem. Tinha subido aos ermos e desolados colmilhos de gelo em busca de uma canção terrível o suficiente para derrubar a muralha que separa o mundo do mundo.  O vento estava a soprar neve para os seus olhos. Viu o cavalo morto, estatelado no sopé do monte, meio enterrado na brancura espessa. Viu os outros, todos os outros, com as extremidades retorcidas de um modo grotesco e os olhos cegos fixos na morte, os corvos a esvoaçar de um para o outro. Virara-se ao ouvir o súbito som de asas. Que a pedra o lembrasse, ao último dos homens, ao pai do primeiro silêncio.


Horned Wolf 

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Rotura de Águas





Havia um terraço, amplo, e a sua vista larga, e a minha vista larga e ampla.
Havia um terraço. O Sol batia. O Terraço, a grande liberdade. Era o teu corpo
No nosso corpo. E o Sol, resplandecente, batia, e apertava-nos e embalava-nos
Num sufoco amarelo, e dourado, e num sufoco envenenado. Eu ficava todo penas
Se te tocava, todo asa, tu toda voo. Imaginávamos por isso saltar os limites
Do Terraço, e fazer do mundo o nosso terraço.

E depois do primeiro pôr do Sol, não voltei a ver-te
O nascer do Sol era uma consequência sem causa
As asas feriam-me o corpo, não paravam de crescer
Em tantos lugares, as asas, arrastavam-me pelo chão,
Nos lugares do vento, contra mulheres despidas e homens
Desarmados.

André Consciência

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Goths




I

O ocaso já se espalhava pela floresta
Os cães ganiam quando o Sol se escondia
Quando o Sol se escondia, podiamos encontrar sozinhos
Os nossos festins



II

Porque vou morrer, eu visto-me de preto
Como uma espada na escuridão, ou um fogo que arde
Contra o frio, ou uma luz que precede
A alvorada, ou a trombeta sobre os rostos
Dos que dormem;

E quando o vento dedilhar a muralha
Ou as chamas estremecerem com frio
O fogo nas minhas vestes será apenas
Como um súbito silêncio.


III

Soprei-lhe o cabelo suave e perfumado
Para ouvir as aves a cantar, e sentir-me
Como o rio a correr debaixo do barco.



IV

Os homens olhavam-me com olhos mortiços
Um carvalho morto cheio de mulheres vivas
A cheirar a chuva.


Horned Wolf

sábado, 16 de junho de 2012

Noite, Lisboa




Vislumbro o meu rosto, no vidro baço, o meu corpo, exulto em sombra. Os demónios nocturnos da cidade uivam e guincham e não abafam risos de hiena, por vezes, derrubam também um contentor. Eu lembro-me de que nunca fico assim, mas quando uivo, e uivo melhor que os lobos, não é para as ratazanas. Contraponho a minha embriaguez de fogo com esta corrente de urina. De vez em quando, a passos silenciosos e quietos, dou a volta ao quarteirão, outras permaneço exactamente imóvel nos  bancos cinzentos do palco de cinza ao lado da montra do "Amo-te Chiado", que é desenhada com um coração vermelho de vidro. Movo só a cigarrilha ou a chama que há na cigarrilha, quando puxo. Se passam reparam já muito perto, em mim, e os demónios enchem-se de um horror calado e voltam a tornar-se ruidosos só no topo das escadas. São quatro e meia da manhã. Não estive sempre aqui, mas muitos becos cheiravam a mijo. Penso que poderia estar a escrever, se tivesse papel. Ás cinco,enviei uma mensagem, ouvia-se o ruído electrónico das teclas ecoar em toda Lisboa. Hoje, Os Bardo Cego, projecto de música/teatro improvisado, que mentorizei e onde actuava, foram censurados, tendo assustado, e recordei-me só no barco às seis da manhã, do caso de Artaud. 


"O Caos é uma Ordem por decifrar", diz a parede no Campo de Cebolas, uma frase que cintila na restante treva da pseudo-filosofia dos dois edifícios colados e decadentes. Os Santos Populares foram há não muito, existe uma esplanada montada perto dos táxis que permanece activa, os bêbados e as bêbadas trocavam piropos, as bêbadas, com roupas populares, olhavam-me por baixo das luzes populares, e os homens, pensavam em pedir-me um cigarro que, apesar disso, não pediam. Ao passar pelo arco no terreiro do paço, houve um grande curto circuito a um metro e meio de mim, os sinais de trânsito foram interrompidos. A seguir havia muita polícia, e o Continente montava, na penumbra das não-testemunhas da noite, um estaminé de palha e madeira, que, como sempre, me impede de caminhar a direito, ocupando espaço e silêncio. Agora estou sentado com a única cerveja que bebi, no Campo das Cebolas, e, depois do ruidoso acelera que a rasou, observo a mulher polícia que foi colocada sozinha no cruzamento.  Esta, observa-me reciprocamente, numa conversa indiferente. Levanto-me a passos demorados, há-de haver um barco.

Neste momento e neste país sou relativamente reconhecido, os grandes pedem-me favores, mas eu, que mal tenho de comer, e não tenho como pagar aos meus artistas - que me nutrem ainda assim uma esquisita admiração - sou um porteiro, à margem da "civilização". Hoje perdi grande parte do que me resta: quando vislumbrei o meu rosto, no vidro baço, e o meu corpo exulto em sombra, senti-me, como é hábito, forte e duro como as rochas, e desejei ter poder para acabar com o meu corpo de montanha e a minha alma de céu, mas sou pequeno como o pardal nas estações das quais é Deus e ignorante.

Um amarelo torrado rompe o céu a meio-Tejo, uma miríade de anestesias e estimulantes diferentes racha-me a consciência, e tudo está parado.


André Consciência

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Em Busca da Origem do Nilo


sen benim zamanımsın


Agora,  para onde quer que olhássemos
Víamos grandes árvores
Com vastos espaços verdes entre os fantásticos
Troncos, à distância, monumentos
De granito cinzento
Nas planícies de erva amarela
À sombra frondosa dos bosques
De acácias, começaram a mover-se.

André Consciência

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Arquivo

I

Pela espuma da manhã, passam,
Nus, os teus membros.

Saúdo-te, os teus seios pintados
Num poema que do corpo não fala
Nem descreve a sombra alta
Do teu vulto na manhã.



II

A espuma do crepúsculo rende-me
E o corpo,
Despido e vencido
Debaixo daquela manhã
Descreve-te horas a fio com vento
Que me passa na pele, no cabelo,
No papel.


André Consciência

sábado, 12 de maio de 2012

Albatroz Errante




As estrelas na carência.

Eu, também, um dia
Fui de Sol, sentia-me a nascer
A luz quente de enternecer.

Morremos, se morremos,
E gloriosa a chama há
Dessa incumbência
A latência da latência
De um dia matar
A solidão de todos
Os outros dias.

Nada passa, nada consome
Mas contra a costa um barco
Enfurece, e tudo em nós
Se torna cântico de nenhuma voz,
Que só ouve... o albatroz.


André Consciência





É alto mar, por vezes, a marinhagem cai
E caça um albatroz, ave enorme e feroz,
Que num voo triunfal, numa carreira assaz
Faz seguir pelo azul a viajante embarcação.

Mas quando o albatroz preso, e suspendido
Nas tábuas do convés, - pobre rei em vão temido!
Que dó nos traz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para os pés!

Rei do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Desproporcional e gentil, ei-lo grotesco e imbecil!...
Ao bico um leva o fumo do cachimbo
Outro mutila a pata da ave inerme.

O poeta é como esta marinha águia
Que desdenha a bússola, e afronta os vendavais;
Exilado em terra, entre escarninha plebe
Não o deixam caminhar as asas infernais!


Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de André Consciência

domingo, 6 de maio de 2012

Since 1985


Deste ponto a ponto distinto
César vive e espalha a sua rede
De pescar espíritos.

Nos anos trinta, a Queda do Homem,
Na altura eu e tu comíamos pizza
- Em Leiria -
E na televisão os coros apostólicos
Rodavam as nossas cabeças com
Canais da MEO.

Nos anos subterrâneos era tudo
A Palestina, com os super heróis
Mitológico-americanos
A rir-se debaixo da Lua
Dos monhés armados,
Eu fumava na banheira
O cigarro que tu também
Experimentavas em mim o bâton
Que nunca usaste em ti
E com água nos dedos
Lavavas-me lábios.

Nos anos 40, a Casa Branca mudara-se
Para o fundo do oceano, e ali escondia
As suas mentiras; à superfície
As habitações ardiam.

Era a Noite dos Mortos
Eu estava desesperadamente só
E o telemóvel, que me não deixava
Paz.


André Consciência

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Seal of the Prophets

Lucifer - Guillaume Geefs 

Quando o Sol desmaiava no horizonte recortado de granito, eu prosseguia. O deserto à minha volta, imóvel, movia-se ameaçadoramente. Tão intenso que mesmo o meu espírito forte se sentia igualado. A minha coluna ondulava como uma serpente ferida pelos filões de rochas negras e pelas dunas de tons verdes, seguindo a estrada antiga, ao longo da qual nenhum viajante se conhecia haver passado. 

Quando a noite por fim se levantou sobre mim, o céu ressuscitou com tantas estrelas eclipsantes e a areia do deserto encontrava-se tão brilhante, que do lugar onde eu ia a trezentos passos conseguia ver a estátua da humanidade, longe de todos os homens e de todas as mulheres.

Horned Wolf

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Elefantina























Travels to discover the source of the Nile - James Bruce


O estreito começava no rio
De cada lado, a terra verde
Com faixas.

Através de nós
O Sul navegando
Mais e mais.

Apertava-nos o que parecia ser
O deserto.

A conturbação do Nilo sobre as águas
Debruçava o seu peso verdejante
A esmagar os campos de granito negro.

Penhascos altos entre passagens
Estranguladas, e selvaticamente
Açoitadas.

Os estreitos empurravam uma corrente
De ilhas asfixiadas.

Um tubarão monstruoso
Persegue os baixios
De carácter e cor distinta
Usurpador do deserto no rio.

O calor na miragem dançava
Salpicando montes negros.

Estes desertos tinham em comum
Ser assassinos do homem.

Um rio de prata
Incrustava-se na coroa verde
E reluzente

Uma sombra esverdiada
Em forma
De guarda-chuva

O palácio do faraó estendia-se.


Horned Wolf

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Chunguila

Tatiana Portrait - André Consciência




I

Tu, ao anoitecer
Tremeluzente sobre o rio
A gotejar um voo triunfal
Tilintavas a despedida solar
E arrepiavas-te ao ver-me
Escrever deste terraço
Sonante e sentado

Mas tu maior que eu
A escapar no meu poema



II

Ao crepúsculo, sentado no terraço
Vejo Oeste tomar o mundo de surpresa
Com flores cansadas atrás de sombras
A brilhar envolta de colinas

Arde contra a corrente obscura o verde
Do castanho nos teus olhos, e pairas
Entre o dia e a noite, móis a luz
E cozes uma tapeçaria de projecções

Furas debaixo das pontes, uma súbita
Tremura de ar contra si mesmo
A ondulação pára a água
E os pardais deitam-se tarde.


André Consciência

domingo, 22 de abril de 2012

Mistress






A cobra veio ao poço
E eu, de pijama,
Num dia de calor
Á sombra funda e estranha
Com perfume da macieira
Ladeando a escadaria
Onde se espera
Descer o poço.

Ela entrou na soturna fissura
Da muralha de pedra
Amarela e suave e toda uma barriga
A fazer o fim da pedra
A descansar toda garganta
No topo da pedra
Onde a água mais pingava na ascendente
Vertical ela bebia de boca direita
Glandulas lânguidas e silêncio húmido

Eu esperava, e o meu poço
Não era meu, a cabeça ela ergueu
E baixou, e mais bebeu.

E o meu poço não era meu,
Mas eu era negro, negro
E inocente, e ela dourada
Resplandecente.


Horned Wolf

O Verão da Noite






Uma mulher alta, avançando
Na ondulação dos seus cabelos de dormir
Tropeçou no quarto encoberto
Do silêncio fora da porta do quarto
Entrando viu uma pira e um homem
Que a pira erguia à espera

De arder.


Á vista disto, empinou-se
Pés erectos como um arco esticado
Ou a proa de um barco, esticou para trás
A cabeça, e ficou a ver as sombras
Num mar de neve, com sinos de gelo a tocar
E ela viu-o, a cair como feno em chamas
E deitou-se como um fantasma molhado e um
Tapete, no solo abaixo

Suave como a pétala que cai
Da flor, sem ser ouvida
A entrada eclipsada, o olho escuro
E grave do seu sexo, afundou-se no esquecimento
Em orgulhosa sucção.


Horned Wolf

Comedor de Branco
























Night Train - Kent Whitaker



Um comboio
Caia da linha
Para o espaço
E um meteorito
Desaparecia
Para dentro

Uma realidade
Caia da ilusão
Para os olhos
E um trovão
Ejectava-se para cima

Os olhos caiam do comboio
Para o comboio que caia dos olhos
E o tempo despedia-se
De outro tempo


Horned Wolf

Vou Nevar

Verge - David Jay Spyker



O sangue do Sol é a névoa
Com as suas coxas cinzentas
E espasmódicas

Como penhascos a abundarem
Na sombra do oceano
Em cinza.

Os becos sem saída enterram
O sexo na areia do descampado
Suficientemente longe para escapar
Ás investidas da manhã.

O meu elmo embaciado
Reflecte o movimento aéreo
Dos anjos altos que avançam
Pela treva alerta e sobre nós.


Horned Wolf

Som Branco







Ao sairmos do bosque
A Grande Luz
Içou a noite
Vestida de branco


Tu, o que serás
Tão justa - o cintilante
Passo desajeitado
E vestido de branco.


Como qualquer campo
Em neve e quente perseguição
A ofegante noite afagou
O nosso rosto.


O corpo aquecido da noite branca era
Como os perfumes da tua garganta
Acendida na noite e branca
Uma estocada que encanta.


A pulsar por toda a fusão de nós
Uma coisa que escapa sem escapar
E uma raiva colosso, a morte
O cintilante passo desajeitado
E vestido de branco.


Em reverência e êxtase
Inteira e branca, a noite
Fita mudamente a árvore negra
Que desflorou para dentro
A transformar-se, no fantasma luminoso
De um anjo indecoroso.



Horned Wolf

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Aleph



Cristo pestaneja. A Lua à sua frente rege um movimento, a noite negra da alma espalha-se no chão, escorrendo do astro ferido. A morte entre um passo e o outro, o caos e a destruição estendendo os braços, querendo arrasta-lo para o estado de graça. Bebe o vinho de uma virgem, pois todas as virgens são ainda serpentes - ninguém se torna virgem sem antes cair do céu, e ninguém sobe, sem que, ao descer, ela tenha marcado o caminho que esqueceu. "Um dia, destruirei a civilização e descobrirei por isso Atlantis..." - "O Cordeiro, expulso do reino celeste, sofre o amor de Deus, mas o amor de Deus é a Serpente e a Serpente é o Céu" - "Os licores do Sol pode o homem beber numa mulher, e os licores da Lua bebe a mulher num homem, se para as bocas um do outro verterem todo o seu sangue"

André Consciência

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Camélia Incendiária




Há-de nascer em mim uma última camélia
Naquele momento em que tudo o que
Alguma vez fiz acreditado, ceder
E ficar a noite comprida sobre
Os nossos ombros gastos e marmóreos
Com a Lua a coroar o abismo
Das coisas existirem, e isso ser
Absoluto. Os teus cabelos mortos.

Os nomes de todas as raparigas
Passarão a ser luzes no fim do mundo
E elas não serão. Um último corvo
Numa última manhã, turva e curva
A pender já para a noite
Que nos encerra aos penhascos
Da existência luzidia.

A mãe, o pai, o irmão, o filho
Se o houvesse, transformados na cinza
Que me cobre os olhos vítreos
E arranhados no alvorecer.

A última glória
Despida de glória.
A vida não vale.
E que por fim a tocha arda
Pesada no corpo
E nada dê aos homens
Que não a sombra dos anjos
E o engano constante
E precioso, de se continuar
A traição, de se continuar...


André Consciência

terça-feira, 3 de abril de 2012

Sol em Taurus




Uma chama lambe a forma vazia de conteúdo
A nossa fluidez correu com os touros
Nas planícies iluminadas do hospital
Uma mulher em gesso, nua
O touro firma os seus cascos
Chegado à terra, o homem lembra-se
Que aquele que não brilha com maldade
Será incapaz de bondade
Nos relógios
O Sol quebra o limite dos dias
E o touro finca-se
Os pássaros sopram
Na boca vaginal
Da semelhança
E um olhar apavorado
Trespassa, concentrado
A incompatibilidade.


Horned Wolf

quinta-feira, 29 de março de 2012

The End of Orgy


Susanne - Saudek



Luz da manhã, Sol anterior
Ao Sol. Habita este tabernáculo
De flor e deserto,
Desterra o pensamento
Que é escrever as linhas suadas
Da vida em esturpor.

Que a ave não tenha asas
Ou o poeta coração
Que o pintor seque seco
E a luz na escuridão
Ou serei o santuário
De todas as canções
Que a morte não calou.

Feiticeira das auroras
Cujo cântico é o cântico
De todas as demoras
Olha para mim e ver-me-às
Sem braços ou pernas,
Membro ou língua
Olhos ou dente
E desfaz-te do teu abraço
Para que seja o meu abraço
Quando não tenho cauda
Ou membros ou luz

Tu, tu que me amaste
Quando os quartos foram escuros
Prende-me à tua memória
Um crucifixo niilista
Da translucidez
E do outrora.


André Consciência

terça-feira, 27 de março de 2012

Dug Our Treasures There

No pôr de Vénus um amor
Do tamanho da brandura aconchegada
Que te são os olhos
A dizer-me: saúda o limite
Dos tranpolins dourados do desejo

E como se eu não te visse
Carrego a penugem sombriada
Dos fins do mundo
Com ofertas de outros Sol poentes
Que embrenharemos na solidão
E a rompemos

Ah, janela à Lua
Pele do meu calor
Carmesim.
Da morte
Sabem não saber
O teu rosto
E nada sabem.

Há homens que se despenham
Na noite interrompida.
Nós somos cobras nos trigos
Da manhã.

Ama-me
E eu saberei amar
O fim de mim.


André Consciência