quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sete Céus





I


Atravessando casinhas, pavilhões e torres pequenas, rosáceas e arabescos esculpidos no gelo, fizemos amor nas varandas de balaustradas finas como teias de aranha... Diante de nós a majestosa catedral, cuja porta de gelo tem gravado um pássaro com as asas abertas estendidas para o céu. Fico a olhar para ti, um órgão de gelo escassamente iluminado por raios de luz, sem fazer a mínima ideia de como se toca. Um Gigante da Geada esconde-se atrás de uns rochedos, lá em baixo no vale. Disparas uma saraivada de esferazinhas cor de pérola, que me explodem em cima com efeitos mágicos muito agradáveis. Ouve-se um suspiro fundo e dolorido pelos subterrâneos. As tuas ancas ganham vida e emitem agora um azul da cor do céu. A tua pele está fria, sem ser gelada, e não se derrete. Lá fora, as montanhas continuam até perder de vista, cortadas ao longe por um planalto. O vento faz rodopiar os flocos de neve. O céu está tão claro e azul como nunca vi e os raios do Sol de Inverno reflectem-se intensamente na neve, quase a cegar-nos. Atrás da varanda e das janelas cobertas de geada, a porta dá para uma cela onde jaz um homem acorrentado de pés e mãos à parede de pedra preta e lisa.



II

O Terror dá lugar ao alívio, o Pássaro de Gelo canta outra vez e os duendes fazem coro com ele numa polifonia harmoniosa cujos ecos chegam aos cantos mais recônditos da Catedral. Um grande mocho branco desce a meio da noite, em tom reprovador. Ela é toda uma chuva luminosa de partículas douradas que me enregelam e me oferecem vitalidade. Pego nas chaves de gelo e penduro-as ao lado do órgão. As botas rangem na neve endurecida, quando atravesso casinhas, pavilhões e torres pequenas. Desemboco num cemitério todo salpicado de neve. Algo absolutamente selvático andou a abrir as tuas sepulturas, deixando espalhados fragmentos de gelo e os teus corpos amortalhados em fases diferentes. Sente-se no ar o teu desassossego. Crepita ainda um fogo frio já muito fraco. O pior é que o nosso pequeno quarto está vazio, apenas tapado por uma camada de pó. Talvez fosse imaginação minha, mas era capaz de jurar que ouvi risos ainda há pouco... 



III

A rir, corres para uma das paredes de gelo e dissolves-te nela. Fugiste com uma das minhas coisas! O brinquedo que colocavas à cintura está a desfazer-se por causa do frio e da humidade. Ao entardecer, avisto um alce a comer líquenes nuns rochedos. Uma nuvem de neve está a descer a encosta. As pessoas estão a vestir uma espécie de arreios, após o que saltam para os céus numa espécie de arco. Ao maravilhoso canto do pássaro, as enormes portas de gelo abrem-se de par em par. Continuo na direcção do coro e do órgão. Sobre o teclado está suspenso um enorme anjo de gelo. Parece mentira, mas o bonito pássaro conseguiu sobreviver no meio do calor e da humidade deste lugar infernal. Abre as asas e levanta voo! As tuas feições contraem-se num esgar de espanto e de amor, mas logo lanças para o ar uma magia que faz explodir a ave em mil fragmentos. O problema é que, no vale, a neve é muito espessa e temos de andar constantemente às voltas para nos desviarmos dos montões brancos. De manhã, comemos outra vez, faço-te uma boa massagem nos músculos doridos das pernas e retomamos a caminhada. Soltas um risinho abafado e disparas uma saraivada de beijos. O teu corpo cor de cobre invisível é encimado por duas enormes cabeças de dragão. A força e a bondade que irradias quase me paralisam de pavor. O Pássaro de Gelo endireita a cabeça e começa a cantar. Entoa uns acordes de forma magnífica e, depois, volta a esconder a cabeça debaixo da asa. 



IV

Cheira a queimado e a enxofre. Com a garganta irritada e os olhos a arder, abraço-te. Partimos em direcção ao norte, rezando para que a criatura que por aqui sobrevoa não me veja. Desamarramos a manta de peles no meio do pinhal e preparamo-nos para dormir. É óbvio que as salas foram todas saqueadas. As portas estão arrombadas e as esculturas e decorações de gelo feitas em pedaços. De tempos a tempos, ouço-te gemer do lado de lá da porta. É assim: o coração da Torre está no centro, atrás da Parede Preta. Pus-te no dedo um anel de prata muito simples. O dia está a acabar. A tarde passa devagar... Das tuas mãos sai um perfume, rosado e bem cheiroso, que me bate em cheio na cara. Lá de cima caem flocos de neve, que ficam suspensos a meia altura e rodopiam em torno da tua forma coberta de pingentes de gelo. O Sol põe-se no horizonte e sopra uma nortada agreste.  A tua voz é liquido dourado com reflexos azuis. Tenho uma noite cheia de sonhos estranhos com castelos e torres de gelo no meio de uma planície gélida e sem sombra de vida. Acordo. Subo a escadaria e abro a porta. As paredes da sala estão tapadas de baixos-relevos e esculturas de uma qualidade impressionante. Colunas de gelo com veios de cores delicadas elevam-se em formas sinuosas até ao tecto; a um dos lados, vejo o que me parece ser um órgão. 


V

Fazes uma vénia e conduzes-me à câmara principal, depois, desapareces com as tuas vestimentas. Um pouco receoso, avanço para a luz. E na manhã seguinte também. Os cães começam a ganir e afastam-se da beira do planalto. Caminho quase todo o dia até ficar exausto e com os olhos a arder por causa dos reflexos do Sol na neve. De manhã, comes uma refeição e vais lá para fora esticar as pernas, olhando para o céu azul pulvilhado de nuvens. És como uma forma alada no céu, para sul. Salta à vista que roubaram tudo o que havia de valor no quarto. Um molho de chaves e a tua túnica é tudo o que resta. Ficámos a ver o alce pastar, todo satisfeito. De repente, sinto-me alto e com porte de rei. Mal o dia nasce, comes uma refeição e partes rumo a leste. Ao princípio da tarde, chegámos a uma escarpa plana, sobranceira a um grande vale. Lá ao longe pasta um rebanho de alces. O Sol brilha no azul pálido do céu, mas os seus raios são completamente desprovidos de calor. As tuas cores cintilam ao Sol de Inverno. É que há coisas ainda piores que a morte. A porta dá para lá da cela, onde jaz um homem algemado e acorrentado, ofereço-lhe um livro castanho com apenas cinco parágrafos. «Isto alegra-me o coração e dá-me forças!», diz baixinho. A tua túnica é a última a saltar no espaço. A beleza do cântico em coro polifónico, que soa à distância, é de cortar a respiração. Bem que gostaria de ficar ali a ouvir. Não se pode separar o livro castanho do Pássaro de Gelo, porque a lombada do livro está presa à pata do pássaro. Ao fim do dia encontrei o teu corpo na neve preso numa armadilha. Na altura ainda estavas quente. Ainda irradiavas uma luz tão intensa, que mal podia distinguir os traços do teu rosto bondoso e afável.


André Consciência

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