sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Malak




Mantenho-me no céu, nas árvores, e deito-me na erva do pôr-do-sol com os leões de juba negra, disforme no repouso, enquanto recordo a ânsia atávica do caçador. De manhã moscas verdes cobrem-me os olhos e entram-me na boca aberta, como o faziam de resto com os búfalos em que imprimia uma pegada de criança. Ao meio dia emano do ar aquecido, etéreo e semelhante a um chilreio. Os olhos brilham-me, como luas amarelas, e os cascos das colinas ardem. 

André Consciência

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

da Terra e da Lua




Um pássaro existe que vagueia sozinho no Sol, como uma sombra atrás da luz do fogo, uma memóra sombria. Veste um corta-vento azul e pode-se ver-lhe linhas de dor na testa, a cara pálida e luzidia de suor, os olhos aterrorizados num mudo apelo, a Palavra entranhada na boca. A cada passada, os metros tornam-se vastos como os céus e fundos como o fosso do inferno. Numa madrugada rosada sentámo-nos na borda do vale, com as penas penduradas, vestindo pijamas e roupão, nenhum de nós acompanhado.

André Consciência

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Lugar no alto da falésia




Subitamente, tínhamos chuva à nossa volta, fios de gotas a contorcerem-se na superfície da pele. O vento fazia-se sentir, atacava os seios reluzentes da mulher e fazia com que as minhas asas estremecessem.

Abracei-a através do nevoeiro, os contornos escuros e desfocados das baixas copas de árvore passavam pelas pontas das asas. Abruptamente, as cortinas encardidas de chuva e nuvens abriram-se e nós entrámos um no outro.

"Não assustes os leões", disse-lhe. E o Sol era uma grande e gorda bola de fogo a olhar com espanto para a planície sombria e cintilante de sal que se estendia. Avançávamos lentamente no calor, os pés cobertos de pólen amarelo.


André Consciência

sábado, 16 de agosto de 2014

A Vastidão



I

Ela caminha sobre uma inclinada encosta de arroz negro, os pés são muito brancos e felinos sobre as dunas. A pele dos braços com uma suave pelugem, as pernas entrecortadas pela saia longa de tecido fino, o leite do largo rosto proeminente. Com as sobrancelhas vermelhas fita o horizonte e não existe ninguém. O Sol é uma Lua e uma ave azul canta através do gelo cristalizado na ferida encarnada de uma bala, encostada aos ângulos mortos.

II

As árvores haviam crescido há muito. A ave azul era um rapaz. Uma estrela caiu para o seu cabelo. Ela prende-a no dedo e depois sopra como se sopra um beijo. O pirilampo esvoaça, apaga-se, e a ave azul partiu. Fita o horizonte e não existe ninguém. O topo das árvores ainda dança com os astros. O céu fica a deslizar para sempre, a noite a cair, os rios a morrer.


André Consciência

domingo, 10 de agosto de 2014

Limpeza total ao crânio





Vi-lhe o brilho, o tom do Sol
A espalhar-se sobre as cúpulas
As rosas, e as raparigas a correr
A nosso encontro, e o gemido da alma
Ecoou brevemente na beleza silenciosa

Sentada no trono uma figura pequena
Completamente descoberta
Era o símbolo vivo do amor:

Envolta em correntes
A mulher estava ferida
Ainda húmida
O rápido fumegar da ira amorosa
Nos olhos azul pálidos
A marcar-nos com os espíritos

Nós, fendidos nos pés
Pela sua chaga, corríamos mais rápido
Que os antílopes. Eu tinha uma pistola
Na mão direita, e apontei-ma.


André Consciência