terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Cachalote Ao Crepúsculo




A coroa da lua cheia sobre as árvores projectava ouro que iluminava as garças como estátuas douradas. E na vertente da colina, a morte conversava com o som do vento a assobiar por entre o tempo. A meio de dois pinheiros, ela flutuava na camisa de noite, e deixava um rasto de sargaços.

André Consciência

sábado, 19 de janeiro de 2013

Meditações sobre o cristianismo

Baptism of Christ - Francesco Albani




Meditações sobre o cristianismo:

0.
1 - A fé verdadeira depende de uma provação em que a verdade se torna independente da lógica e se afasta das condições impostas pelo sentido: a verdade reina assim sobre o sentido e cria uma lógica sensível às suas premissas- estamos conscientes de ir, nesta consideração, ligeiramente contra a escolástica.  
2 - Para que a paixão da alma vença sobre o desejo, e a força de vontade se eleve sobre o lodo dos mundos, de forma a trabalhá-los, esta verdade deve pôr à prova todas as necessidades não necessárias, em algumas vias pela indulgência, noutras pela abstinência.
3 - Assim, Cristo morreu para abrir ao homem o caminho dos céus, tal como, ao retornar, irá julgar os homens e, aos seus seguidores, conceder a imortalidade. Para estas verdades, que não são literais, serem entendidas no seu próprio campo, devem ser apreendidas, e totalmente, de modo literal.

1.
1 - No monoteísmo cristão Deus é o amor que tudo sabe, que em tudo está, e que tudo pode. A oração, a palavra limpa pela chama interna, é a forma de diálogo com essa corrente de amor. Mas esta crença é ainda um resquício do judaísmo. 
2 - O Espírito Santo do monoteísmo cristão é o mesmo Deus dos judeus. Este é, à semelhança do Deus que se fez homem - Cristo - Deus que se fez anjo e anjo que se fez intermediário entre a natureza e Deus. Mas o Deus do cristianismo não é o Deus dos judeus. O Deus cristão, sem o filho e sem o espírito santo, é a redução dos mundos ao pó.
3 - A questão do inferno, do céu, do purgatório e a fé dos reencarnacionistas, ou seja, o tema da vida após a morte, não encontra consenso dentro do cristianismo, e será por isso ignorada. Sabemos apenas que a fé no Deus Homem proporciona a vida eterna, seja em que região for. Ou melhor, ao mesmo tempo que é dado um espaço de reflexão ao homem, no que concerne o arrependimento, este deve estar constantemente confrontado com o absoluto nos seus actos e em todas as coisas que pertencem à natureza humana. Esta particularidade pode ser verificada igualmente nos símbolos cristãos, a intercepção, na cruz, da verticalidade com a horizontalidade ou, no alfa e no ómega com a âncora, a possibilidade do bom porto em qualquer um dos pontos entre o inicio e o fim, ou seja, o encontro directo entre o infinito e o limitado, também constatado no facto de, apesar da ressurreição ser eterna, o ciclo da vida de Jesus Cristo ser reverenciado consoante a roda do ano e todos os anos.  


André Consciência

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Malak XII

Adolf Hirémy-Hirschl, "Souls on the Banks of the Acheron", 1898




1480 a.C. - Egipto, Creta

Em tempos, observei um povo de homens trabalhar o osso luminoso do mundo. Aqui, é o sangue do Sol - o ouro - que move os homens. Um anjo maior atravessa este deserto, num desafio aos outros, e chama-se Nilo. Passo a explicar: se os homens se defendem de Deus com um circulo de cidades, a civilização dos anjos é maior: é as estrelas e o seu chão é o deserto vazio. Mas mesmo as cheias, heréticas, não duram sempre. As cheias acabam quando Outubro o faz, os escravos trabalham  a mando dos chanceleres com esforço redobrado, os caçadores de aves ficam emboscados entre os juncos dos pântanos, a serviço dos aviários; os homens reparam os canais com terra, os pequenos barcos movidos a remos estendem as suas redes durante a noite, uma linha de homens lavra, outra semeia os sulcos, e uma terceira, de animais, pisa a terra. O que me espanta é a imortalidade dos nobres, nas paredes dos seus túmulos, representada pela vida quotidiana que lhes foi, em vida, negada, como se em morte pudessem lembrar-se finalmente e com toda a presença dos sentidos, da vida que não foi. 

Aqui, numa das ruas de Dier el Medinah, fui mestre de artesãos. Os filhos de Hori vinham brincar ao meu telhado com os amigos, colhi a sua mãe no deserto e vi-me devedor ao escriba. Visito a actual esposa, Tuya, que da minha Merit é irmã, mas como se emprenhou, em que isto é para si uma estreia, fica a rezar no santuário da casa, sem saber que ouço sempre que as suas palavras se deixam voar, e nós ficamos na sala central, onde Merit nada vê pelas janelas a nível do tecto e eu, dentro, olho de fora para dentro, por todas as janelas simultâneamente. É um daqueles sóis a pôr-se que torna a brisa apetecível e o calor das casas borbulhantes repulsivo. Como girinos a sair de lagos, os homens emergem nos telhados a colher os sopros com a alma aberta e cheia de ventosas. Os homens que vêm trazer vinho e cereais ao escriba tropeçam sempre nas crianças nuas e doentes de curiosidade pelas vozes absurdas da criação. Por vezes vejo-me a olhar-me por entre o ruído e a poeira das ruas, e fico com medo de Deus. Fico, também, a lembrar-me do desespero dos mortais. Os homens pensam que o anjo que rasga o deserto preparou um Egipto perfeito para a segunda morte, tolos todos eles, porque o Nilo é senão um sinal da sua decomposição final. 


Com a febre de permanecer tempo demais na terra, mudo de terra, sem aviso, quase sem levar sequer lembrança, o sol abrasador de Creta por sua vez a lembra-se de mim num lugar que não visitei, Creta ela própria, e por isso eu subo o Nilo até às ilhas rochosas do Mediterrâneo para conhecer os Reis do Mar. As azeitonas eram as melhores, os palácios os mais belos, e os saltadores de touros, nos pátios dos mesmos, no mínimo, uma irregularidade. Ali reforcei a minha aliança com o Pai, que usava a moda das cortesãs e as saias a serem um sino dos céus e das concavidades terrenas, a segurar as duas víboras como quem impede o céu, em toda a sua raiva, de se atirar ao chão. Aqui, os deuses vão viver para as encostas e para as montanhas, mas ou os meus olhos estão cegos ou me não consideram digno: apenas encontrei selos e anéis. 


Horned Wolf

domingo, 13 de janeiro de 2013

O Fôrro Do Leito

Octave Tassaert


Algo semelhante a nudez roçou a porta
Vestia uma mulher nua na largura do peito
Iluminada pelo fogo das lâmpadas
E da mesma forma que se abrem as asas
Das borboletas, um astro elevou-se
No pequeno horizonte do vestuário
Ao devassar os mundos inexplorados
Deus é infinitamente pequeno
O nosso sangue habita abismos nocturnos
Há dezoito milhões de rainhas
Na funda caverna
Deidades infinitamente belas
Não conhecem as leis físicas
Os milhões de deuses criaram Adão
No primeiro dia
Amor
Essa passividade de pedra que cai
Os olhos tão ofuscados do absoluto
Que virão fechados
A ocultar a vista com uma mão-estrela
No espaldar, rósea e nua à luz das lâmpadas
Mais não é algo de fixo
É recuar ou avançar no incompreensível
Do fim da noite ao meio dia os amantes
Não tiveram repouso ou repasto
A universal brancura das lâmpadas ilumina
A imensidão da sala
Acesos todos os sírios na mulher mascarada
Os seios erectos, os braços e as pernas convulsos
A caírem sobre a pele de urso
Como se fossem grilos.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Malak XI

Mutsumi Yamamoto



Iraque, 2050 a.C.

A terra luxuriava entre o tigre e o rio imenso, arduamente trabalhada pelos homens. Cidades-estado, chamavam-lhe, o que significava que a terra e as pessoas em redor das cidades, estavam ainda assim nas cidades, e as cidades expandiam, possuíam um corpo mais vasto que a alma. Ou simplesmente significava algo ainda mais incrível, que o homem vencera as secas. Descobriram a forma do mundo e aplicavam-na sobre o próprio, e os ónagros vão a puxá-la e toda a natureza lhe obedece.

Há cinco sóis, respiro Ashnan. Com a sua pele de palha dourada, a sua cabeça enfeitada de branco, consegue calar-se tanto como eu. E quanto mais se fica a calar mais se lhe empresta o tamanho do céu aberto de noite, caido nas imensas areias. As ovelhas da sua família tresmalharam-se a estragar colheitas vizinhas, e para a multa foi vendida, eu comprei. Ashnan tinha então catorze sóis. No Verão, gosta do rio a correr, a seduzir as palmeiras e o vime. Por vezes os homens vão ali deixar o barro a secar contra o astro, depois seguem as ruas de Ur, já nas ruas, enchem-se da gente nas ruas que segue igualmente para o templo no topo do Zigurate dedicado ao Pai, mas que desta gente é mãe. Em tempos estes sacerdotes de Nanna governavam a cidade, então eu podia perfilha-la com dignidade. Com os êxitos do rei, porém, e o afastamento do sacerdócio, tornei-me indesejado: os reis dominam com o que se conhece e por isso não amam o conhecimento.  

Em tempos experimentei uma casa ali. Embora Ur possua ruas largas a minha casa era precedida por uma variedade de ruas estreitas, possuia dois andares de barro sólido e um pátio central aberto. Ajudava Geme-enlil a vestir-se quando agraciava as vitórias do rei, mas era quando de regresso, a ajudava a despir-se, que se fazia sacerdotisa. Dei também a comer uma flor branca do meu cabelo a Shulgi, o menino soldado, que o fez novamente capaz. Os ricos adquirem os pobres e chamam-lhes escravos, mas são mais escravos do meu povo que os últimos. Num trono de pedra, ensinei os símbolos da escrita a alunos sentados em argila: e enquanto caiam numa segunda camada do mundo eu respirava os seus corpos indefesos, em botão.


Horned Wolf

Malak X




Sudoeste de França, 13 000 a.C.

Com o degelo de Verão, descompusemos os quebra-ventos de pedra e, sombriamente, arrastámos até ao vale as tendas. Sentámo-nos a ouvir o rio e as árvores, e porque ouvíamos diziam que pensávamos. Entre nós um homem existe cujo cabelo e a barba espessa eram da cor do Inverno. Estava antes dos outros estarem e as crianças gostam de se aninhar junto dele como debaixo das sombras. Um homem assim é muito raro, quase tanto como eu, que avistara apenas dois desde que o tempo se lembra até ali. As mulheres cobiçam a beleza dos animais, e todos os animais desejam, mais que alimento, ter pele na mulher. 



Sopé dos Montes Zagros, 10 000 a.C.

O homem cedeu ao chão. E o homem cedeu à mulher, porque a mulher deseja o chão como o animal deseja a mulher. A mulher atira o cereal no ar e, deixando-se polinizar pelo solar vento, planta a vida das coisas e faz brotar clareiras nos homens. Então, vai cobri-los de barro e de colmo e os pés dos homens ficam chão. Criam as formas com as pedras e com a água e os homens comem-nas. O sílex da sua foice aterroriza as tribos e os homens, domesticados, domesticaram até o Javali. Mas eu, não sendo homem, e sendo terra, não posso ficar a menos que morra - a história é, literalmente, o cadáver de um anjo.



Turquia, 6000 a.C.

Dos vulcões os homens descobriram os ossos da luz: vi mesmo um espelho. Depois muitos, como flores. E da obsidiana, e do espelho, saiu, gigantesca como o meu pai - porque ao espelho não é o homem que existe -, a civilização. Ainda anormal, ainda muito nossa - sem ruas, apenas escadas e telhados, telhados e estrelas. Quando as pessoas morrem, os corpos são postos em cima de plataformas e deixados ao ar livre, onde habito, longe das cidades, a limpar os ossos.


Horned Wolf

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Na Hora Antes do Amanhecer



Dedicado a J.

O vento rondou o norte e caiu, deixando o cheiro doce do sangue por cima de mim. Com os olhos amoráveis e ardidos do Sol, vi leões na praia ao anoitecer. Já não sonho contigo, nem com lutas, nem com grandes acontecimentos, ou com mulheres, ou com tempestades, sonho só os lugares, com a brisa de terra e os leões na praia. Acordo depois a olhar para a Lua. No escuro, sentia a manhã que vinha. Mas vinha do mar, de onde eu também sonhava. Os leões via-os do mar, e o mar não é um lugar, é de onde os favores descem ou se atrasam e nunca chegam. Um dia encontrámos um barco, eu e tu, no mato onde pensava muitas vezes e que te mostrei. Era um barco pequeno e a remos e subimos e o mar estava liso e quando o dia desceu iamos já perto dos barcos de passageiros. Quando quisemos voltar, a maré descera e estava longe do pontão. Nadámos. Mas ao sairmos da água nunca mais nos vimos. Ficámos lá atrás, a ondular, com o barco, deitados ao Sol a fumar cigarros. Ao erguer-se todo, o Sol atirava-nos reflexos e cegava-nos. E nós continuávamos a remar, sem olhar mais. Repetia-o à noite, sem medo, e quando estava só, cantava em voz alta, e ficava a ouvir-me, a experimentar o corpo dentro da voz, a vaguear as superfícies aquosas. Quando estamos acompanhados falamos porque é necessário, mesmo ao dizer tudo o que é desnecessário. E eu não voltei a sonhar contigo. 


André Consciência

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A Lua



Um queixume de aves a instalar-se para dormir, o amor agonizante dos gatos, a praia recuava perante pequenas ondas e a distância pôs-se aos silvos, atravessando a linha das algas.

André Consciência

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O Sol





O som da noite:
A aldeia entra, aos murmúrios, nas casas.
O tecto de colmo embate na brisa suave.
A distância paira no latido dos cães.
As praias a serem a língua expandida das ondas.



O som da claridade:
O estuário encrespa a água.
Os mangais murmuram ao vento matinal.
O cascalho rápido orla uma praia a rebentar.


André Consciência

domingo, 6 de janeiro de 2013

Encontrava-me em terra quando começou o fogo




Os primeiros homens do dilúvio olhavam
Os juncos, as estevas e a areia em forma
De vagas, a chuva bate na terra e sobe
Como uma bruma.

Cada um vira o céu partir-se
Aos bocados, e um pedaço
Quebrar-se neles.

A chuva cessara, apenas o paraíso
Pingava, e a Lua, em quarto
Crescente repetia a sua imagem
Num milhão de gotinhas.

Um alcaravão lançou o seu pio
Lamentoso, mas já nenhum pedaço de céu
Caiu.

Os juncos estavam escuros
Os fetos pálidos
As dunas vermelho-amarelado
Mas um Atlântico de prata cinzelada
Via a estrela do Sol suplantada.

Um dos homens chegou-se à frente
E comprou o oceano.
Sentou-se ao Sol, no limiar
Acabou de chorar e banhou a face.

Juntou pequenas conchas
A mostrar à mulher
Trémula como uma estrela
O ar, a luz, o vento.


André Consciência

sábado, 5 de janeiro de 2013

Reunião da Loja



Leitor, imagina o ente amado, imagina o ente amado. Imagina o ente amado a perder as irregularidades, uma a uma, mentais, emocionais, físicas, a perder as irregularidades uma a uma até se tornar num globo de pedra translúcida. Um globo de pedra translúcida que é possível ver por dentro mas não através. O ente amado vive ali, mas não tem cauda nem cabeça. Aquilo vive, mas sem principio nem fim. Nunca parece seco quando se lhe toca, é um pouco aderente como a carne, sempre quente. Imagina como é agradável apalpar, acariciar com os dedos, esfregar contra as faces. Aquilo vivia. Imagina agora que ganha um seio. Imagina agora que se torna num grande seio redondo. Como é que este seio te reage? Imagina agora que o bebes, mas enquanto o bebes torna-se cérebro, coisa móvel sem resposta. Enigma. Aperta-o contra o peito e imagina que o teu peito não tem forma. O globo é mãe, amante e filho. Depois vai-te embora, e leva contigo toda a luminosidade da sala enquanto a Primavera se transforma perfidamente em Inverno. 


Horned Wolf

Lira Insubmissa, Carta

The Scarlet Pastorale - Aubrey Beardsley



Vigésimo Quinto Fragmento


194 - Existem sempre 3 coisas a considerar, nas relações humanas, na sociedade, na individualidade, mas algumas formas de as colocar.


195 - Que um individuo que entra em contacto com o outro o modifica e é por ele modificado, estes dois novos indivíduos  enquanto tal, voltam a modificar-se, e, mesmo diante do afastamento físico, o mesmo sucede-se ad infinitum por efeito da memória. Esta é a lei do movimento. Mas, dentro deste movimento, ser-se só é a única força.  
196 - Que recebemos o mundo, devolvemos-lhe o eco e morremos. Por outro lado, o mundo recebe o nosso eco, devolve-o e morre, como um poço ao qual contamos os nossos segredos e que, afinal, só nós compreendemos e devemos compreender. A inteligência é uma sociedade secreta ao ponto de ser totalmente intransmissível: a sociedade está nos símbolos que a activam, e não que a partilham. 
197 - Que tudo existe com ou sem a nossa bênção  isto é, com ou sem razão de existir: e por isso o mundo do que existe, e não do que é ou não aceite, é monopólio de crianças, loucos e místicos. Mas o homem de ciência deve destrona-los, em que a razão da existência é a criança, o louco, o místico, e o homem de ciência, que o sabe. 

André Consciência

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Eram 3 e um quarto



Lindo corpo se se instalasse num casulo, e suspira
Os lábios tomam a forma dos antigos deuses
Ela sorri toda, a noite na garganta
A temperatura a irradiar calor junto de mim
Depois desce, como que se afasta.

André Consciência