quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Sereia

A tua pele, luar com mar,
Esmeralda com azul;
O meu intelecto perde-se
No teu braço.

Sem dor, separação, perda
Os nossos relógios acabaram.

As luzes da cidade
Com fogos secretos
Sentei-me na janela,
A contemplar.

Quando a água evapora
Há mestres que se sentem sós.
Mas até à tua pele
Os seus passos hão-de ser
Salpicados e espumosos
O seus mantos cheirando
A mar.


André Consciência

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Recollection



I

As ruas eram escuras


Como sombras de homens no fogo.

II


Um clarão, flutuava como um Sol cicatrizado e meio comido, por alguém sobre ele sentado.

Tinha mãos rasgadas e escurecidas, mãos de trapo, o corpo era meio sangue manchado meio transparência, 
a cara era pálida, os cabelos longos, uma cartola escondia-lhe os olhos, e a boca um corte pequeno. Era um 
homem mas usava uma espécie de saias de árvore descascada ou talvez de rede de pesca. Era uma veste descosida, como a sua barriga. No peito, seguindo a linha da coluna afiguravam-se quatro circulares fendas, como que corações esvaziados. Desenhado nas paredes vandalizadas, estava um Arcanjo atrofiado, na lua rachado, e que à Lua mesma havia quebrado. Por isso o olhei, mudamente, porque é com mudez que se fita a morte. Com um sorriso, pela sorte. "Olá."


A sua voz tremia e era ao mesmo tempo tão sólida e fria como a sua branca cara de manequim. "Veste-te de mim." Pediu. Mudo mais o fitei. "Se te for o Sol golpeado, sobre ele senta-te, deixa-o meio ofuscado, talvez possas sufoca-lo, nas trevas sobreviver, uma luz ferida faz-te morrer. Veste-me, saberás como sofrer." Voltou a falar. Pareceu olhar-me embora nunca lhe visse eu os olhos, podia contar o quão frios e sofridos se mostravam. A sua boca na qual só se via escuridão, voltou a ligeiramente abrir-se. "A tua semente. A tua semente, porque raro é já quem me vê, quando passa por aqui, sem saber porquê." 

Mostrou-me visões, de pessoas e futuros, e futuros clarões, dias puros, amizades, amor e resplendor.

E disse: "Todos estes virão em seu calor, e tu a todos negarás e escurecerás." E vi a minha gémea alma 
aterrorizada caminhar em ruas tão escuras, tão pesadamente calmas quanto estas em que 

me descobria. 

Após uma 


Pausa abismal, continuei. 

"Estas ruas são as minhas mais exaltadas amantes, e as mais calmas e perseverantes. Com elas rio e danço, e elas nunca riem, jamais dançam. A cada passo de dança desvaneço, mas num louco riso,

por elas cresço. Não há estrelas, e com elas danço. Não há Sol, e com ele avanço. O acto de amor, são estas 
palavras, 
e os seus venenos, 
como tu, tu 
que a cada noite aqui ficas e ninguém te vê, 
mas eu, e fujo, sabendo que 
daqui, como foi assim para ti, não há retorno." Quando virei as costas, senti a sua decadência dar-me a mão, como se quisesse seguir-me, mas não se pudesse soltar daquele devorado clarão. E emagrecia, apodrecia e 
sentia-lhe a definhação. 


III

Na próxima curva então, abriu-se um castanho poeirento nevão, sobre mim pairou uma ornada prostituta, de carne escura e enrugada, cara de bode e cabelo de branca palha, luvas de trapo, e nos pés uma qualquer falha, que não haviam, com a sua volumosa cauda se confundiam. As suas curtas roupas a vidro quebrado se assemelhavam, e guiou-me mais à frente, onde uma fenda na parede, tinha uma luz pálida e indiferente, para mostrar o seu corpo à espera nu e fervente. A parede para lá desse recôndito mostrava-se descascada, e a luz meio suada. Já perto, parei, mas não entrei. 

"Ajuda-me a descender." Tinha uma voz rouca e rasgada, agonizada por querer-se não tão abismal, e causava mais ardor a pena, que a sua feissima sedução. Aproximei-me, e tomei-a nos braços. À sua vagina dirigia-me a boca. Soltei o meu fogo a corpo aquele, e numa explosão ele fez-se rebelde. "Pois tudo o mais se mostra cadente." E quando terminei a primeira vez, pediu-me "Volta sempre." Não paguei. Quando voltei, não havia ali mais nada. E ouvi a voz e de novo o nevão, e ela não mais ali estava para mim, de corpo no chão. Ia-me dizendo: "Não cairás agora da graça?" E senti-lhe no coração o bater de uma asa podre, em que se retirava criando-me cada vez mais. Tentei mais fundo, mais fundo me afundar, como se para procurar o segredo que a fizesse voltar. "Preciso-te incompleto." E nunca mais a encontrou, por mais que o meu coração escavou. 


IV

Na próxima curva, os prédios soltavam-se e afastavam-se, encontrei no escuro, um cais de cristal. A Lua 
mostrava-se, e uma sua criação aproximava-se. De corpo nu, um corpo prateado escurecido, estendia o pescoço
e face ao vento inexistido, 
em que o seu longo escuro cabelo, voava, 
mais triste que contente, mas celebrando 
uma mais noite morrente. 

Os seus saltos altos de cristal romperem-me o coração, 
como se tentasse a luz do dia curar as cicatrizes de Lua Cheia e em vez as estalasse, mais dolorosa as 

provocasse.

Da escuridão tão funda ela ergueu-me, só para a luz lunar nos ambos povoar. Ela tinha esperança que ela nos fosse misturar, numa estratégia de aranha, me caçar. "Vim-te ensinar, se queres ao teu coração povoar, com tão sublimes ruas quanto estas, que não possam mais voar na luz da vida, mas na escuridão se aprisionar, e não percas, não vão, pois pesar vão, neste cristal que te impus no coração, farás tua teia, prenderás o que, daquilo que queres, te rodeia." E no momento em que ela, à luz da Lua, desapareceu, eu senti que a luz sua, apesar de escura, roubaria a noite. Viver que nunca acabava, mas todos a caçavam noite fora, ninguem a encontrava. E eu que, por estas ruas, a encontrei, não me ensinara qualquer bem.


V

Quanto mais
pessimista, mais eu era instigado, a poder mover-me de novo, 
uma vontade de ser re derrotado. O coração já
completado. 

E quando a voltei a 
encontrar num fundo abissal, ela era só uma cicatriz nos meus lábios cortados e no meu corpo roubado, e
perdoei-lhe tudo. E esse fogo andante, se olhasse para traz puxar-me queria,
através de todas as mentiras que mantinham as ruas, e a ausência de qualquer dia. Por isso nunca olhei, nem 

nunca

resisti. Estas résteas de beleza aqui ganham tristeza, se no mundo da clareza.  
Rastejando lá fui, e encotrei-a, vestindo o Diabo: Uma luz tremeluzente, trémula, febril, fluente.
Um ardente tridente. Esta estranha existência, outro devaneio, outra demência. Uma outra amante sem 
qualquer reverência. Espalhou o veneno nas mãos, esfregou o corpo, aproximou-se um pouco, puxou-me, 

um 
louco, 

E a quietude abraçou-me dentro da tempestade. O auge.


VI

Era um fantasma de latão, cuja casa ficava à grande janela de uma escura e abandonada catedral, um fantasma, que flutuava à luz do vitral, cinzenta, branca, azul e vermelha. Um fantasma com um antigo gira discos, de latão, as colunas como trompas, a manivela, e quem a rodava, uma mão, como boca que sangrava, e dele acima, uma mão que à sua cabeça se encostava, e uma carrancuda ferida cara, que horrenda, o amaldiçoava. Como

Deus, 

Como a mais maldita fada. Uma simples, simples cartola. Uma lágrima, lágrimas luz, que cortavam olhos fora. Usava pêra e nunca abriu a sua boca, estava seca, golpeada, e tosca. Girava a manivela e me revela:
"Quereis saber o que fora no mundo se faz? Dividas de sangue, não tem banco, ninguém as olha, não são pagas. 
Os corações são delas os guardiões, e todas, vigilancias vãs e vagas. Celebram-se os estranhos. Quando se fazem
mais, mais que estranhos, não se pagam as dividas sanguíneas, celebram-se os estranhos." E ali sempre chovia. Girava a manivela e me revela: "Quereis saber o que dentro se passa? Respostas são mentidas, desmentidas, e levam demasiado longe. Para o escuro

onde só ha nada." 

Essa mão e essa cara
Protegiam-no e magoavam. E dos vitrais via-se manhã, 
E vi então que aquela cara na cartola, na janela,
era jamais a mesma. Ele dizia quem era, era jamais a mesma. 


VII

Vi agora no seu peito múltiplos cortes, e uma mão sombria que das costas lhe rompia, e na Lua se prendia. Uma só asa de borboleta, o entendia, uma só, decepada ou então esquecida. Frente a isto acendi velas e
vivi a vida eterna, tão lenta corria ela, num espectáculo de lamentos, sempre igual, sem mais verdadeiros 
momentos. Frios eternos beijos, frios, e no fim só a beleza do frio é. Na verdade não saira dali, deixava as velas arder e as estacas. 


VIII

Foi então que continuando, encontrei uma rua sem saída, e para o escuro continuando, encontrei uma outra rua escondida. Ali havia um porto, agua, e um Sol quase que morto, nos seus raios segurava espinhos e a ouriço se assemelhava. Por ali a prostituta que em tempos conhecera, se agora aproximava. Tinha desta ela asas, rasgadas e definhadas, mas voava, e nas pernas crescido haviam-lhe duas grandes garras. Seguindo-a vinha um barco que dali talvez me levasse. Abraçamo-nos e a sua pele era como que pó, que eu inundei e habitei. Ardeu com ela, no vermelho por do Sol. Nesse barco partimos, e juntos naufragamos.


IX

Dormi, dormi como um menino nos braços do mar tão tribulado, revirado, irado e exaltado. Na costa acordei, era tudo negro, foi sem mais Sol que acordei. Havia um castelo e duas torres, que deixavam passar a luz da Lua por duas janelas em arco. Como se dentro ali prendessem o astro, porque cá fora, dele outro sinal, não havia. E uma mulher que da cintura abaixo era serpente, rastejou para a minha frente. A cara era toda ela tão delicada e deliciosa, mas os olhos vendados e decepados, e de espinhos tinha as mãos e costas cercadas. "Toda a vida falha,", falou, e parecia querer confortar embora ríspida e gelada, "excepto na sua própria falha. Toda ela, como a conheces, falha. Todos os lábios que provaste já, puros fantasmas. Sempre fantasmas. Enamoraste fantasmas. Tudo o que já encontraste, fantasmas." E no cristal que me fora em tempos ensinado, tudo ali, atribulado, prendi. E nesse momento, nas estrelas inexistentes me sentei, e quando acordei, eu era o homem, esse homem que primeiro encontrei, sentado num meio-devorado clarão. 


André Consciência
26/01/03

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Solstício de Inverno



















A chuva caia sem cessar
Pingava das árvores
Para aumentar a tristeza.

Ás quatro horas da manhã ajoelhou,
Beijou uma pena da asa do Arcanjo São Gabriel.

De madrugada, o monte estava vazio
O moinho, com as suas velas de linho
Dobradas e amarradas, rangia ao vento
Que fazia ondular a erva alta.

Uma vez estive contigo neste moinho.
Montei-te, para olhar para nascente.

Uma estrada vazia em direcção a anjos
Que bebiam inúmeros homens.

Há coisa nenhuma a gozar o ar da manhã
E eu não consigo abatê-la:
Rebentos de trigo e cevada
Condenados a morrer no Inverno.


André Consciência

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Iluminado por dois Archotes




A outra madrugada separou-os
Avistaram o horizonte no fumo
E partiram.

Sorriu.
O silêncio quebrou-a.

Com a pele a brilhar por cima da margem
Uma lontra deslizou da outra água.

Ergueu o focinho, olhou um momento
Para mim
E mergulhou de novo.

O céu ainda não estava completamente escuro
Tinha um tom luminoso como a chama de uma vela
Por trás de uma placa de osso.

Sentaram-se junto ao ribeiro.

Separaram-se na outra madrugada.

Um atalho conduzia à morte através da charneca
De tomilhos no perfume, sobre a qual
Esvoaçava o azul das borboletas.

 O fumo cavalgou na minha direcção.


Horned Wolf

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Os dias nunca mais acabam


Vista do Castelo de Palmela


Aproximou-se da porta branca do terraço, com o estuque carcomido e o quarto sempre na escuridão. O cigarro queimava, algo lânguido, uma mortalha branca. Além um mar de luzes trémulas na penumbra verde e terrena, alongando-se por Palmela até ao castelo no topo do monte ao fundo nocturno do horizonte. Pela sua mente em vácuo passaram muitas vivências imortais que ali haviam tomado lugar, algumas sob o abrigo feliz e vibrante do dia e várias sob a eternidade protectora das horas tardias. A vida repleta de coisas, por si próprias, sem fim, como um milagre estonteante, mas os dias não haviam modo de acabar e instalar a paz numa só delas.


André Consciência

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Um Choro Distante




Ouvias as cotovias, o grito das tarambolas e o múrmurio do vento por entre as árvores. Caiu um pingo de chuva, espalhando-se na tua pele, mas foi apenas uma gota solitária, pertencendo a um aguaceiro que se afastava para Ocidente. O teu rosto ficava perto do rio e da janela da tua casa podia ver-se agua a correr sob os arcos da ponte. Os morcegos esvoaçavam em volta do teu vulto enrolado e semi-adormecido, enquanto que as casas para além do rio estavam iluminadas por um intenso quarto crescente.


André Consciência

sábado, 10 de dezembro de 2011

Fechou os Olhos




Os sinos tocavam com demasiada força
Os homens que puxavam as cordas tentavam
Repelir o assalto por si próprios.

Avançavam pela lama e metiam-se por entre as
Estacas partidas, como se fossem
Ratos.

Arrancou as roupas, depois voltou-se,
Quando ouviu vozes.

Um rio negro com pregos de aço corria
Em direcção ao centro da cidade.

Uma mulher gritou na rua,
Depois outra,
E vozes inglesas aplaudiam

Um a um, calavam-se
Os sinos,
A dobrar o seu terror
Sobre os telhados,
Os passos batiam na escada.

As gaivotas alimentaram-se dos olhos
Dos mortos e picaram-lhes a carne,
Restando apenas ossos ocos
A olharem as ondas.


André Consciência

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Malak III


Sphinx - Franz von Stuck


Tinha trinta anos, peito largo e queimado do Sol. O mercador de prata e mulheres vivia numa bela casa de pedra. Era a noite antes da Páscoa e rezou a São Jorge, enquanto numa das suas câmaras seladas, a juvenil beldade de cabelo branco, cuja pele era albina e os olhos arredondavam cegos, dançava na escuridão, assustada pelas megeras que gritavam no monte enquanto as ondas intermináveis se lançavam e sugavam as pedras.

Uma luz cinzenta entrava pela janela, sob o altar coberto.


André Consciência

Malak II



Corria para o mar junto a uma praia coberta de pequenos calhaus. Barcos de pesca partiam do meu peito. Uma língua de seixos contornava o meu último braço. Mesmo assim, o mar rugira sobre mim e desfizera os barcos.

O padre poderia ter sido bispo mas persegui-o com sonhos, estivera fechado na cela de um mosteiro devido a possessão demoníaca. Os demónios abandonaram-no e foi enviado para a aldeia, onde aterrorizava os seus habitantes pregando às gaivotas e chorando os pecados junto à costa, eu batia-lhe no peito com pedras aguçadas. Uivava como uma cadela, em noites em que a maldade pesava a consciência. Caminhava só, com o rosto severo, o cabelo desgrenhado e os olhos a brilhar.

Porém, naquela noite, depois do pôr do sol, durante a vigília, apenas quatro acólitos observavam as minhas chamas enormes e firmes. Um escutou o ressonar dos três companheiros e limitou-se a olhar para mim, semi-obscurecido por uma rede de pesca pendurada a secar. Uma corrente de ar frio fez reluzir as minhas chamas gémeas. Algures na aldeia, um cão uivava. Olhava para mim no tecto da igreja e rezava.

Macio e forte, o ventre liso
De uma rapariga.

Naquela noite, recordou-se dela
Que servia na pequena taberna da aldeia.

E do anjo, primeiro visto sobre os telhados:
Tinha comido numa só noite todo um bando
De gansos.


André Consciência

Malak


Sem Título - Ove Tøpfer

Assim, durante oito anos, fiquei suspenso na pequena igreja, acumulando pó e teias de aranha que cintilavam com reflexos prateados quando o sol entrava pela janela alta da torre poente. Os pardais pousavam no meu tronco e em algumas manhãs havia morcegos pendurados nas minhas coxas. Raramente me movia e quase nunca descia, embora, de vez em quando, o padre exigisse que lhe trouxessem a escada e me soltassem das minhas correntes, de modo a poder orar junto a ele, enquanto o afagava.


André Consciência

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Subhuman


Afterglow - Sem Título


O ar quente cheirava os fabricantes de carvão
Com pirliteiro e fumo.

A floresta tinha atravessado os filhos
As crianças corriam aos gritos pelas escadas
Estreitas; Onde é
O Caminho do Céu?

O Sol atrairá-nos para o exterior
Do outro Sol. Estávamos num campo
Perto de casa.

As pastagens combinavam passeios
Com os bosques; Onde é
O Caminho do Céu?

Num pedaço de terra horizontal,
A sua figura arredondava-se e as suas feições
Começavam a ganhar uma frescura
Que faziam adivinhar uma beleza; Onde é
O Caminho do Céu?

Com o cabelo escuro a ondular atrás de si
A erva, sob os seus pés, estava cheia de flores
Silvestres; Onde é
O Caminho do Céu?

Apoiado nos cotovelos, semicerrava os olhos
Por causa do Sol; Onde é
O Caminho do Céu?

Mais abaixo, os cães tinham enlouquecido.
Um anjo farejou-me as saias, olhou em volta
E depois aliviou-se contra a parede.
Eu limpo - disse eu à pressa. Um belo anjo
Ainda, era, virgem...

Levei-o lá para fora e ensinei-o a ter necessidades
Num sitio quente. A lua apareceu no nosso quarto
Bordando cinco raparigas a dançar em fila.
Naquele momento estava deitada na escuridão
A imaginar a mão dele a tirar-me os cabelos.

Onde é
O Caminho do Céu?


Horned Wolf

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

...

Não há nenhuma rua
As cadelas soltam um piar lento
Um dia vou escrever sobre ti

Todos aqueles que me largaram

Pára, vê a praça a crescer
Alimentam-se de ti, quando bebem cafés

Um dia pensei que te tinha tido
Não olhes agora para as mãos
Observa o fim das metas
Ninguém está nelas
Excepto o fogo que te separa
Não és um anjo

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Tocador de Tulum




Quatro remadores em terra
Esperaram que nós encontrássemos
Um caminho.

A água ali tinha apenas uma
Fina língua de água.

As árvores chegavam quase
Ao alto.

Estávamos quase
A desistir.

A enseada subira um pouco
E gritou
Um zimbro a rastejar
Pelo solo pedregoso

Com a tenacidade de uma mulher
Madura.

Fragmentos de roupa, tranças,
Fivelas sem brilho.

A folhagem e depois um minúsculo regato
A correr por entre as pernas
Antes de se precipitar no mar.

Já era tarde
Coníferas de solo lamacento
Primavera chuvosa
Sempre que parámos para avaliar
O nosso progresso

A luz estava a desaparecer
E com ela
Os últimos vestígios de calor no ar.


Horned Wolf

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Esperança


Hans Ruedi Giger


Marinheiros subindo aos mastros
A noite afundando-se por completo
Sentada no catre enquanto o barco
Começava.

Não resistiria, deliciosas
Covinhas e inteligência viva.
À noite, com os dedos o rosto
Com a Lua a encobrir o céu.

A vegetação nocturna estava fora
De nós uma enseada estreita
Para passar.

Os marinheiros levavam a esperança
O ferro clareava
A gente rezava por ventos favoráveis.

Uma coisa secreta, privada, especial
As noites que passara com ele no han
Pertenciam a uma fracção diferente.

No chão, às escuras, na cama.

Uma escuridão através da qual
Senti os movimentos do barco
E as vozes. Completa-me.


Babalith

sábado, 26 de novembro de 2011

Maçãs




Uma figura pousada
Nos ombros de outra
Sem calças, muito
Indecoroso.

E tentava agarrar
Qualquer coisa
Maçãs.

O homem em cujas costas
Ela estendia o rosto
Também estava equilibrado
Em cima de uma boca.

E havia mais qualquer coisa...
Folhas em ramos a esticar-se à luz
Mas com cuidado.

A cortina tapava a paisagem
Prendi a respiração
Fechei os olhos com força e
Penetrei.


Horned Wolf

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Deus ex Machina



No pulsar do despertar
Um cidadão confessa-se
E aventura-se no vazio

Os sinais do futuro
A arder
Recordam
O retorno.

Re-l124c41+
Facho de luz
Faíscas de radiância

Existência
Na treva branca
Quando sorris

Caminho errado para casa
A Ofélia
Calma que morreu calma

Terra incógnita
Vida após Deus
A rapariga, com o sorriso.

O olho sagrado do vazio
No lugar do fim do tempo
Deus ex machina.


Horned Wolf

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Underneath the Stars



São mais raras as estrelas, do que os barcos no oceano nocturno
Da respiração intermitente do teu vulto enquanto forma sonhada
E desmaiada em todos os pólos da minha maldade
Ah os lábios dos teus lábios chegam
Embora nos não beijemos às vezes
Aos meus lábios chegarem a chegar
Ao porto seguro da tua alma inavegável.

E na luz do seu silêncio me guiava
E engolido pelo seu ventre menstrual, que inchava
O oceano negro do seu coração cantando
Amarrava o céu e o inferno, meus.

Eu sou minuto vivo na coreografia
Do seu mamilo em bico
Uma dança ao Sol
Um tiro na humidade celeste
Uma sombra aquecida
Na noite dos amantes.

Um raio de Sol que entra
Nos poros do seu umbigo
Um grão de para-sempre
Incrustado nos mares
A paz para além da personalidade
A paixão para lá da dor.

Deixa-me levares-me os braços
O crisma, a roda, a medicina!
Besunta o amor sem lágrimas
E dissipa a solidez solitária.

Determino-me nas estrelas
Tão pequeno quanto é pequeno
Ser a vê-las.
Enorme quanto é grande
Amanhecê-las.


Horned Wolf

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Lago das Almas, O Carrocel dos Corpos


The Spheres - John Santerineross

Quando Gabriel sopra o chifre
E os lobisomens da rua
E a mulher nas mulheres
Se move nua

Quando a terra estremece
E os corpos do avesso
Repetem os seus hinos

Quando sou chamado
Para o meu lugar amado
E a pequenez do peso
Que deixou de ser voo

Digo-te "caminho
Pelo vale aéreo da luz
Anos sem fim
E no mar das almas
Não há terror ou selva
Que nos tapem

Olha para mim
Não te esqueças que voei
Ou penses, que esse voo
Teve fim
Por mais que derrubado
Os cães me comam

Quando o chifre soa
Eu não posso levantar
Se não para outro corpo
E só os ouvidos são ainda
Semelhantes ao que eu todo
Fui

As cidades em sal
Se um de nós dança
E ousa

Perdoem-me as águas
Por serem desmedidas
A vaga por aparentar limite
Sem o haver
Ou o fogo por romper
Todos os corpos
Que nos foram dados
Que a terra não se esqueça
De ser o primeiro retrato
De um romance
Da saudade
Sem alcance
E me perdoe o ar
Como antes
Eu não poder voar"


André Consciência

domingo, 13 de novembro de 2011

La Gitana



O teu cabelo em rosas na geada enquanto dançávamos,
A feiticeira a enfeitiçar e o paladino em luar,
À luz das estrelas teciamo-nos numa teia de seda e aço
Sem memória como o mármore nas câmaras de Boabdil,
No jardim secreto das rosas com as fontes e os orvalhos
Onde a nevada serra nos suavizou com as brisas e os galhos!
À luz das estrelas enquanto tremíamos do riso à carícia
E o deus veio quente sobre nós na nossa pagã delícia.
Era o Baille de la Bona demasiado sedutor? Sentiste
Pelo silêncio e pela doçura toda a tensão que assentiste?
Pois o teu cabelo em rosas e a minha carne em espinhos,
E a meia noite desceu em nós como mil loucas auroras.
Ah! minha cigana, minha Gitana, minha Saliya! estavas desejosa
Que a dança se tornasse solene? - Ó solarenga terra de Espanha!
Minha Gitana, minha Saliya! Mais deliciosa que uma pomba!
Com teu cabelo incendiado por rosas e teus lábios acesos por amor!
Deverei ver-te? E beijar-te uma vez mais? Eu divago para longe
Da terra solarenga de verão para a gelada estrela polar
Hei-de encontrar-te, hei-de encontrar-te! Eu estou a retornar
Da obscenidade e da neblina para te procurar na solarenga terra de Espanha.
Hei-de encontrar-te, minha Gitana, minha Saliya! como antigamente
Com teus cabelos incendiados de rosas e o teu corpo feliz com ardosas.
Eu hei-de encontrar-te, eu hei-de ter-te, no sul e no verão
Com a nossa paixão no teu corpo e o nosso amor na tua boca -
Com o nosso espanto e a nossa adoração seja o mundo incendiado e renovado!
Minha Gitana, minha Saliya! Eu retorno para ti!


Tradução de André Consciência

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A Lusofonia




Os baloiços, onde estudávamos as estrelas
Com o balançar próprio do pêndulo
Nas rotas do fogo.

O cavalinho, onde te despia
Com chicote, e escapavas a galope
No mesmo lugar.

A almofada com que sufocava
As escaladas do teu êxtase.

E os escorregas onde rimos
A noite desprovida de olhos.

As pátrias antes de o serem:
Com medo criador, derrotadas.

Os mortos
Enquanto extra-pátria.

O cavalinho, que língua era a do corpo
Prévio à penetração?

Os navios, e o que é o português
Se não um sistema de controlo
Da psicologia humana?

Almeida Garret e Castelo Branco
A arrancarem estimuladamente as unhas.

As folhas caídas da civilização
Os workshops, os ecosistemas,

África, com trovadores do Porto,
Uma colecção de cromos
De René Guenon.

Que se foda, vou a galope
Que as àguas duram pouco
E os bicharocos lambem-nos as patas
No mesmo instante que lhes damos uso.

As galinhas em trânsito onírico
As hormonas a exalarem flores
Recintos e repórteres.

Vendo, na berma da estrada
Garrafas de nada.


Horned Wolf

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Carruagem do Sol




O Douro doura
Despenhado
No mar das montras.

Ela saia da loja
Transportada pela carruagem
Do Sol.

O movimento da emoção volteava
Em som de cascalho.

Fomos peixes fora de água
A ver A Morta, de Rembrandt.

Foste Leviatã exterior ao aquário
Sobre o meu corpo emocional
A chuva rebrilhava por ti
E a lunaridade do alvão.

Houve uma altura em que não acreditava
Existir. Nessa altura, conseguia ver bandeiras,
E não conseguia aquários ou fora deles.

De súbito encontro-te
Na uva azul e nervurada.

Vou alcançar-te, vamos... exercitar-nos
Nos pastos. Somos bonitos, hoje.


Horned Wolf

Lisboa




Belém sombreia o Tejo.

As esplanadas a deslizarem
Para o despenhadeiro das margens.

Minha mão a calcar os Jerónimos,
A planar a fria cidadela de onde
Um urbano castanho se esguincha.

Ouve-se a chuva nos telhados
Romanescos.

É desconfortável um mundo
Em que haja céu visível
Sem telhado inteiro, ou outro
Embaciado.

Lisboa é um tecto para baixo
Uma beleza que fez nascer
Calçada, fumo, portos
E o terror do firmamento
Confortavelmente tapado.

Este conceito do belo decresce
Conforme diminui o outro conceito
O do terror. São cercos a Lisboa.

A estética a bater a punheta
Com as mãos de um general inagarrável
Pelos séculos.

A Graça desce na cidadania do vento,
De embate às molas da insónia
E à sofreguidão messiânica do futuro.

Um rio terroso vai avançando
E subindo o cimento. Abrindo-o,
A Travessa de S. Vicente,
Um andar soterrado
E sem felinos, acaba.


II

Cidade de luz, à noite.
Cidade de noite, à luz.

Os inspectores-de-fora viajam
Para o lodaçal Lisboeta
Reportando um velório criminal
De que nada é
Excepto na medida
Da sua intrínseca
Inexistência.

Os bairros encavalitados
Com as pedras da loucura
E Bosch num trono de poeira
Luminosa, a olhar sobre a cidadela
Corvo.

No piso inferior, Jerónimo
De Sousa, deixa-se sodomizar
Pelas investidas sensatas
De Artaud.

Os trabalhadores faltam
Bebem chá verde
Por dentro de garrafas.

Montículos de fogo
Na tua boca
E que a cidade não se pronuncie.


Horned Wolf

sábado, 5 de novembro de 2011

Café e Lenha


Estado Líquido - Babalith


As margens fecharam a luz
E um lago dançou a meio de mim.

Os cafés pairavam, debaixo da água.
Em conversa, tu, com o cântico das sereias, eu
Como faróis negros ao longe.

O escuro entrava nos relógios que boiavam
Em nosso redor, apagando-os para o outro lado
Do Universo, e ela ria-se, sem que a sua
Cadeira, perturbasse o lago.

Eu leio o que te ouvi dizer, e escrevo.

Tu também estás na margem:
Os ângulos todos. Jactos de luz rápida
Que nos iluminavam por dentro:
Nunca tinha visto o meu corpo por fora,
Ou melhor, o teu corpo por dentro.

Cidades inteiras giram à volta das árvores
Mas o lago quieto, o café quieto,
Fora do horizonte, a ver o horizonte
Por paisagem, como quem sabe amar
O tempo.


Horned Wolf

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Trémula II


Fuente de La Vida - Temple of Meus


O búlgaro atravessou o pátio
E subiu as escadas,
Ofegante.

Olhou para mim e inclinou
Ligeiramente, a cabeça.
Surpreendera-me a mim mesma.

Quando os venezianos começaram
A despir-se
O meu corpo pegajoso
Encontrava os nervos à flor
Da pele.

O homem, com a idade do meu pai,
Arrancara-me segredos.
Fizera-se acompanhar por seus dois
Sócios.

Um, cansado, bebia um copo
De chá. Agarrei a oportunidade,
Fui buscar o desejo ao inferior
Passei os lábios como qualquer outra
Rapariga recatada, fazendo algumas
Declarações introdutórias.

Refreei o júbilo e o aborrecimento
Despindo gentilmente os meus
Visitantes. Fiquei na galeria até eles
Aparecerem. Tirei o véu, passei os dedos
Pelos cabelos, e iniciei uma dança
Privada de triunfo. Um homem no pátio
Fitava-me sem expressão nas feições
Rapaces.

Acordei a meio de nus, tomando subitamente
Consciência do cansaço e da transpiração.
Entrancei devidamente os cabelos, ainda fazia noite,
Puxei o véu para a cabeça e retirei-me para o meu
Apartamento.


Horned Wolf

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Trémula




Enquanto os homens estavam nos banhos ou ocupados
Adquiri o hábito de me passear nua com os ouvidos abertos.

Encontrava-se junto da porta com um pénis cor de rubi
Nas mãos enormes e revoltadas.

Diz-se que os pés dele eram como as raízes da volúpia
Mais profunda, e que milhares de cúpidos e faunos
Faziam ninho no seu cabelo.

Ao meio dia, fornecia-lhe pele em bruto. Gostava
De me apreciar segurando objectos de vidro, de qualidade.

Perguntei a mim própria se teriam filhos, ele
E a Tristeza, perguntei-me como seriam
Com suas pequenas fendas palpitantes.

O aparecimento de uma visitante bem proporcionada, elegante,
Subia os degraus ao fundo, os cabelos cobertos
Por um véu verde escuro, por baixo, o corpo nu
Apenas completado por chinelos dourados.

Estava despida como assistente, somente, e por um momento
Vi-me a querer um adereço para as extremidades inferiores.

A mulher elegante apareceu nos aposentos de Maria,
Um homem grande de cafetã e turbante, banqueteando-se
Nas suas costas. Encontrei-lhe o olhar
Sem querer.

Inclinou a cabeça. Não olhes. Embaraçada, voltei
A minha atenção para o musculado rubi.

Os venezianos estavam atrasados.


Horned Wolf

Your God That Daughter of Light


Cthulho Stele - Parjer Ryan


Descrevi o poeta como uma cidade
De mármore e profiro, jóia
Das jóias.

Os seus palácios e as suas mesquitas
Erguem-se do céu em direcção
Às águas.

Descrevi no poeta
O caldeirão das culturas.

Torres e minaretes de floresta
Paredes altas e jardins verdes
O Sol a brilhar por entre a água
E o casco a passar pelas pesadas nuvens.

Descrevi o poema como dança nocturna
Extática,
Em que os homens se mutilam para se parecerem
Mais
Com as mulheres.

Entre o poeta e o poema
Um personagem impressionante
Com um turbante de neve na cabeça
E uma túnica de seda púrpura
Até aos pés:

O personagem tremulava
Agitado pelo capricho das brisas.
Em redor, nada se movia:

A silhueta de uma mulher vestida
De negro.

Em redor, pilhas de frutos estranhos,
Um chapéu alto, um monte de pães redondos
E achatados, um burro, um par de sacos
De pele, água, moviam-se.


Horned Wolf

domingo, 16 de outubro de 2011

Multidão Memória


The Loss of Alsace Lorraine - Emmanuel Benner



Saíram, vestidos de mimos,
Os sonhos que eu perdi, todos,
A ver um espectáculo de luzes.

No céu sem ninguém habitam granadas
Como um silêncio de revoluções subterrâneas.
O meu peito jorra todo em neve que derrete:
Eu tenho memórias nos dedos,
Canções sem letra, choros leves
No peso amplo da noite.

Os seus cabelos lambem
A sua pele rosada
E eu fico a ouvir os poemas da torneira
A pingar lágrimas
Quando a chama se eleva
Aos patamares do inalcançável:
Haver tudo passado
E o cinzento ser pele de manhã.

A multidão na rua caminha devagar
Embora esteja a chover torrencialmente
Procurei o contorno da tua nuca
A tua respiração
Mas tudo o que passou não tinha
Nome
Excepto eu, com os meus dedos
Irrequietos.


Horned Wolf

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Entrámos




A Lua levantou-se e a sua luz fria,
Nós estávamos sentados, a olhar o vazio.
De repente, o rosto escorregava-me
Lágrimas abaixo.

Os cabelos escuros dela a meu lado
Estenderam borboletas brancas.

As pedras pareciam engolir-nos aos dois.
Ficámos um pouco de tempo na floresta iluminada
Imóveis pelo peso do que acabara de acontecer.


Horned Wolf

terça-feira, 11 de outubro de 2011

...



Naquela noite
A Lua Cheia mal chegava
Para alimentar um pássaro.

O velho dissera uma palavra
Desde o crepúsculo, as suas faces
Estavam encovadas e o seu rosto
Demasiado grande para os olhos.
Cada parcela do seu corpo concentrada
Em trazê-la de volta.

Depois do quarto minguante
Retirava-se gradualmente
Para um mundo sombrio.

O lume da verdade transformava
Os monstros em rapazinhos
Excepto ele, com os seus dedos
Irrequietos.

Havia muito entre nós:
Muito amor, muita dor,
Muitos mal entendidos,
Pele esticada, pálpebras sombrias,
Quando os carneiros começaram a nascer.

Para lá da janela verde
A luz no nosso quarto era doce.

A rapariga escondia-se na cozinha, enchia o corpo de cinza
E tapava o rosto por debaixo de peles
Espalhando as pernas com um presente misterioso:
Gemia com voz de folha a sussurrar ao vento.

Um dragão embateu nos meus punhos
Levantei-me e fui buscar um copo de água.
O meu corpo parecia uma corda de piano.

O Sol pôs-se para lá das janelas coloridas
Quatro vezes, e no interior do nosso quarto.
No extremo do pomar havia um banco de pedra
Cheio de musgo.

A Primavera acabara de chegar e eu não sabia quanto tempo
Teria de esperar ao frio.
Os vidoeiros que cresciam em nosso redor envolviam-nos
Como uma capa prateada sussurrante.
Dentro de nós, o fumo erguia-se das chaminés.

As faúlhas da minha fogueira subiam em espiral
Como pequenas bailarinas.

O toque da sua mão aqueceu-me o corpo todo,
Senti uma felicidade deliciosa que me começava
No coração a expandir-se pelo corpo.

O velho não dissera uma palavra
Desde manhã, as suas faces
Estavam encovadas e o seu rosto
Demasiado grande para os olhos.
Cada parcela do seu corpo concentrada
Em morrer.


Horned Wolf

sábado, 8 de outubro de 2011

Na Manhã Seguinte




Afastou-se na direcção da floresta sem uma palavra
E as sombras engoliram-na.
Naquele momento soou uma trompa
No pequeno pavilhão.

Sentia o rosto a arder
A luz das lanternas dourava-lhe o cabelo
E no seu vestido leve ela estendia
Os braços brancos numa súplica
Os seus gritos rachavam o gelo
E espantavam os pássaros das árvores.

Uma risada percorreu a multidão
A clareira pareceu escurecer
Percorrida pelo sino da voz.

Vigio-te há muito, desde antes
Do tempo ser tempo.

Haverá mais cor no teu rosto
Como se uma longa geada
Começado a derreter.

Transportei-te até ao meu barco,
Onde núpcias.
Ninguém disse uma palavra.

Um pouco mais longe
A serpente branca estava enrolada
No ramo de um arbusto.

Disse-te palavras:
Amor, verdade, lealdade,
Confiança, sorriste
Reflectindo a luz da Lua
Nos teus dentes pontiagudos.

Ouviu-se um cacarejar de desdém,
Trocista, e depois o silêncio.

Transportei-a até ao meu barco,
Onde nos deitámos.
Ninguém disse uma palavra.

Um pouco mais longe
A serpente branca estava enrolada
No ramo de um arbusto.

A nossa última visita ao outro reino
Terminara.


Horned Wolf

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pássaro Azul



O céu estava rosado. Ela queria escrever as linhas da eternidade num frágil bloco no carro, à beira do horizonte. O pôr do Sol nas árvores ou o mesmo astro a nascer perpendicular ao mar que se descobria no fundo do descampado que, com vegetação densa e molhada, apenas caminhávamos a custo. O reflexo das copas no rio, ou o pontão desfeito com as madeiras semi-mergulhadas. Uma família de férias, as suas silhuetas no crepúsculo, com os mais velhos a segurar luzidamente cachimbos finos. Mas eu sou nuvens e fumo, um cheiro que se deixou cair nas coisas sem se tornar algo. A substância efervescente do céu, que nenhum Deus veio abraçar. Musgo verde nas pedras do lago, a explosão de uma partícula de água numa superfície aquosa. O desabrochar de flores nas minhas lágrimas. A neblina na terra. O gelo macio da tua pele. . . . . . . . . São lúgubres as virtudes do homem, da mulher, o Homem é vil e o seu amor é mais devastador que o ódio dos anjos. Se existe um pássaro azul na hora mais escura, com as mãos em oração e as asas como frondosas velas ao vento, revele-se agora. Ilumine a minha alma peregrina com os sonhos dos primeiros leões, das crianças invioladas, das virgens em luta - de outra coisa mais antiga, um amor que não é o dos homens. . . . . . Nada no mundo está parado, excepto os deuses nos seus imóveis corpos de pedra, prova crassa do tédio que nos criou. Um dia tu também te lembrarás do pássaro que morreu na tua barriga, e chorarás a minha queda.

André Consciência

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Apocalipse Acto V

As diferenças são, invariavelmente, motivo de erradicação de um por parte do outro, quer por se ingeri-las quer por eliminá-las, nesse sentido tudo está em qualquer coisa e nada se move isoladamente. Da mesma forma se relaciona o nosso passado, aquilo que nos é antigo, e aquilo que nos é novo, assim, o antigo destina-se a tornar-se novo e o novo a tornar-se antigo e decrépito. O Homem percepciona esta realidade sem, todavia, existir no seu plano. Entre uma e outra coisa funciona um terceiro corpo, esse terceiro corpo é o homem tal como desceu primeiro ao mundo.

O individuo vive enquanto elemento das relações humanas, a sua vontade é, enquanto individuo, um somatório de querer completar ou destruir o outro, ou seja, de se fundir com ele. Os dois entes jamais se tocam, no entanto ambos consomem o terceiro corpo, que os aprisiona por via da crença mutua e já só se justifica com as suas próprias parasitas.

Apocalipse Acto IV

A Livre Vontade reside no acto de se adaptar e celebrar a adaptação, é precisamente o contrário da liberdade de escolha. Viver é o acto de imitação, mas para que o sinta de forma vibrante, o actor interno, terá de se convencer da exclusividade dos seus gestos, a sua vontade, por mais isolada que aparente ser, é a de colaborar e participar nas engrenagens da escravatura da consciência social, sem a qual a vida enquanto a conhecemos - como uma encenação - perderia os membros e os órgãos. Se o seu acto, durante a encenação colectiva, se mostrar suficientemente grandioso para o público, então finalmente poderá ser ceifado sem medo, esse é o objectivo do Homem: cessar.

Apocalipse Acto III

O facto inegável de não possuirmos qualquer tipo de forma é interrompido pelas maquinações da palavra, a existência da mesma criou um Deus que, sendo inferior a nós, sobre nós domina. A palavra não tem forma e, todavia, nomeia a arquitectura da forma. Depois de um homem conhecer a palavra, mesmo o esforço de a calar, se equivale ao esforço de tentar conter um caudal num recipiente frágil demais para o mesmo. Neste sentido se criaram os ossos (gigantes para a chispa que somos), antenas que escoam a alma e a reduzem ao pó, com o fim de eliminar o vírus da palavra. A consciência, entre a morte a que o seu corpo a força e a morte a que a sua alma a força, improvisa e procura crescer para além do tempo e do espaço agarrando-se com todo o ímpeto ao tempo e ao espaço. Este crescimento acelera a sua dissolução, a consciência, pois, procura a mágoa, de forma a paralisar-se e a olhar sobre si mesma, ou sobre outro, que é não só idêntico a olhar sobre si mesma, como uma e a mesma coisa. É necessário, todavia, que alguém acredite na sua vitimização, para tal fim o ente magoará o seu semelhante, procurando, além disso e desta forma, preservá-lo. Mas o homem que rir e o homem que, através dessa prática, troçar desta condição, será o homem que, à porta do inferno, guardará as chaves do paraíso.

O riso do Joker é inútil, e muito menos salva, por isso, ele contém todo o significado que o mundo pode conter, e o êxtase de existir.

A alma é uma criança, mas a palavra, que ainda está para vir e sempre o estará, é anciã e imposta sobre a alma.

Apocalipse Acto II

Para ganhar pele, há que lançar a alma ao fungo da humidade. A carne não existe, ela é a crença que a dissolução ostenta em si mesma sobre si mesma e que a impede de se dissolver. Qualquer lugar que os sentidos da alma, ou seja, o corpo, perceba, é uma prova da irrealidade. O lugar é irreal, mas a estadia da alma naquele lugar, tal como a percebe, é real. É-se perfeito apenas no que jamais se atinge, mas por isso em tudo se é perfeito e o mundo é uma totalidade em harmonia, jamais coisa alguma se atinge num todo, mas tal facto é o acto. A consciência é o factor que ilumina este factor, sem ela, a perfeição não seria imaginada. Na consciência, o pilar do céu estrelado da perfeição é a percepção da culpa de em nada se atingir a beleza total, a beleza total seria um sono eterno e o esquecimento de si mesma. Por isso, as mãos trabalham com arrogância na evolução: toda a evolução é uma falácia diabólica e brutal.

Apocalipse Acto I

Acordei e vi-me ao espelho. O espelho mostrou uma imagem de mim se o que eu fosse não fosse mais do que esquecer-me: porque esquecer é ter figura. As quatro mãos do meu cansaço, duas em mim e duas no espelho, conversavam em linguagem gestual sobre assassínios que curam, sempre com o sarcasmo da linguagem universal que é a mentira. Se um dia eu pudesse ter só um braço, só um olho, uma narina apenas, e a minha figura quebrasse os espelhos, a repetição seria nova e o novo um sentimento familiar.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A Drowning



Uma a uma, as pessoas adormeceram. No exterior, a neve caia sobre os muitos telhados da memória, com a forma de silêncios longos. As cores estavam às escuras. Pegava numa chama pela raiz. Só se ouviam os relógios, partidos, à procura de funcionarem uma vez mais. Por favor... Disse. Estou aqui, André. Respondeu o palhaço do frio astro. Estremeci, imaginando até onde a sua fúria o levaria. Há muito tempo, vagueou pela neve até morrer, sem alcançar lado algum. Tem de ser, palhaço. Tu e eu. Murmurei. Percorri a casa em bicos de pés assim que a primeira luz do dia agarrou o chão. Com a luz, todos os adormecidos haviam agora perecido. Que os santos vão contigo, André. Disse o intruso, retirando a chama do meu braço.

A principio, nem sequer tentei descobrir onde era o covil do lobo ornado ou como chegar lá rapidamente. O meu objectivo era desaparecer. Assim, fiz o que pude para tornar a minha alma difícil de seguir. Muito dentro de mim, eu podia fechar os olhos e sair em qualquer outro lugar. Tens a certeza? Pareces estranho, triste. Não precisas de vir, sabes? Pedi. Eu sei, André. A superfície do lago mostrava-se gelada e a bruma pairava como uma mortalha cinzenta móvel. Os pássaros nus e falecidos, penduravam-se inanimados nos ramos dos azevinhos com bagas. A vegetação encontrava-se triste. Por cima das copas afastadas das árvores não havia céu, só o infinito. Gelaria tão depressa que não teria tempo de me afogar. É ela - O quê? - É ela! O palhaço enterrou a cabeça na palma da minha mão, tremendo violentamente. Tens medo de mim, André? Perguntei-lhe.


Horned Wolf

Multidão Memória - Performance Poética

Sábado, 15 de Outubro de 2011 - 21:00h

Poesia de André Consciência interpretada pelo autor, acompanhada pelas atmosferas sonoras de Alma Púrpura e a dança interpretativa de Soraya Moon. O acto será agraciado por uma exposição de algumas das gravuras de Borus Aura e contemplará o peso espectral da memória tanto como a cegueira da conduta.



"A jaula perto da fonte, na praça,
Alberga três gémeos cegos. Ao lado,
Um teatro de marionetas, desempenha
Uma peça sem sentido."

Valor da inscrição: 5,00€

Local: Sintra - Rua Tomé de Barros Queirós, nº 29b - Sintra

Inscrições no local, através do telefone 219 234 257 ou por e-mail:

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Cavalos. Visitantes. III




Uma gota de sangue carmesim em contraste com a pele
Branca,
Uma jovem viúva.

Os seus olhos estavam lavados e caiam-lhe, escuros
E lustrosos,
Pelos ombros.

Falámos do tempo, da música
Da sua casa, sobre
Uma nuvem de trovoada.

Um ser humano de meia-idade, vestido com o traje
Esfarrapado de um pastor, sacudia e contorcia o corpo
Rudemente:
O bonecreiro obrigava-o a mexer-se.

Umas gotas de éter num pano e depois...
Andar um pouco a cavalo, talvez.

Ela movia-se nos meus braços
Como uma ave elegante:
Os olhos escuros continuavam
A arder e a pele a derreter.

No seu pescoço estava o fio de prata
Da minha mãe.

A noite de lua nova
Encontrava a porta ligeiramente aberta.


Horned Wolf

sábado, 1 de outubro de 2011

Sombras de Pólen

Homenagem ao blogue The Scarlet Chamber




Na noite fluvial
O veneno percorrendo as veias
Em taças de cascavéis escoantes
Na embriaguez de pessoas

Vidraças nos olhares esgazeados
Sorvendo palavras de fumo
No êxtase líquido da secura tragada

Na fermentação de egos
Exaltando folículos fendidos
Formam-se crisálidas consistentes
Expirando larvas em pólen

E em cada sombra de rostos
De chamas pálidas e inexpressivas
Uma ave ergue o olhar aos céus


Tatiana Pereira

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Cavalos. Visitantes. II




Ouvi-la-ei chamar-me na pulsação do sangue
No premente bater do coração.

Sob os sombrios carvalhos onde estávamos
Tudo era sombra e imobilidade,
As luzes coloridas brilhavam difusamente
E a música zumbia.

A imundice dos campos
Seguia-nos a medo
No cacarejar de uma velha.

Uma confusão de pés no relvado
Alguns descalços, outros calçados.

De novo, à sombra do vidoeiro sem folhas
Encostada a um tronco, com a roupa despida
Na erva estendida.

Uma a uma, as minhas memórias
Entraram nos trenós e começaram
A deslizar pelo gelo,
Correndo contra os primeiros alvores
Do dia.

O Inverno começava a clarear,
Trémulo de exaustão,
Com o corpo coberto por uma camada
De gelo.

Do meu peito saiu um grande soluço.


Horned Wolf

Cavalos. Visitantes.

Sobre um lençol de gelo negro
Os nossos acompanhantes vinham de trenó
Com longos nomes de estrelas e
As suas luzes a surgirem da bruma.

Uma teia de aranha ao vento
Dançava com as mulheres leves.

Mais à frente
O conjunto de peixes mortos
Tremia com
Sentimentos afectuosos.


Horned Wolf

sábado, 24 de setembro de 2011

Frio




As margens do rio que as chuvas recentes
Fizeram torrente castanha e espumosa.
Pousei a cabeça na mão, com o meu
Suspiro, com a minha... caligrafia.

O frio entrava por cada frincha
O vapor de água saia-me pela boca.
Os outros bebem com a sua pele
Cor de cera e os seus olhos mortos.

Uma sentou-se e ficou a observar
Com olhos sonhadores
Ao som dos fragmentos de gelo a deslocarem-se
Na água, e do pio solitário de um mocho.

Eu fiquei à espera.


Horned Wolf

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O Padrão da Noite


Orla de Floresta - Courbet


Criaturas de todas as formas e feitios
Pegavam-nos pelas pequenas mãos e ensinavam-nos
Os passos.

Na floresta sem fim, algumas árvores
Tinham o teu perfume, outras o meu
E o arvoredo, odor conjunto.

Depois, sabíamos os passos
De cór,
Sentávamo-nos sobre as árvores
A cada Lua Cheia, e olhávamos
A nudez a brilhar, e tocávamos
A água prateada da pele
Com os movimentos
Emocionais
De escorrermos no astro.

Quando a Lua estava mais alta
E viamos por entre os ramos
Dos carvalhos mais altos
Vislumbravamo-nos na orla
Da floresta.


Horned Wolf

O Vôo




Um músico aspira
À composição que será capaz
Apenas uma vez na vida.

Os nossos pés
Aclararam perto
Do chão das folhas.

Caímos, os pulsos
Percorridos de velocidade
As faces rubras
A romperem o Sol
Com sangue
À sombra das árvores.

Era uma música
Que continuaríamos a ouvir em sonhos
Vidas depois
E nos cobriria a solidão
Do seu percurso
Com capas vaporosas.

A Clareira da Dança
Tinha as suas próprias
Regras.


André Consciência

Dentro da Mata Virgem




Um dia, colocado frente ao comboio deslizante, para enfrentar a morte, senti, antes do segundo que aproveitei para escapar do embate, o mundo estarrecer e parar todo, comigo incluído. Depois, o corpo tremia e a mente sem ventos. Descobri que a sensação de se estar frente a frente com a morte é exactamente a mesma sentida, daquelas duas vezes, em que durante as minhas evocações de magia cerimonial as criaturas trouxeram aparição em peso, carne e osso, a respiração paralisa, a minha e a da natureza nas redondezas - e mesmo o coração desvanece para o silêncio do trovão.

A ti não te evoquei, embora te pressentisse desde que me lembro de ter nervos nos veios do tempo. Os nossos olhos cruzaram-se num bar e eu revi-te de frente para traz no horizonte dos dias. Descobri, só depois, que a tua nudez, a tua em específico, apresentava para mim os sintomas relatados no anterior parágrafo, mas em que se conseguia, dentro daquele estado, gradualmente, respirar, e que o coração despertasse e se vivesse e fluísse naturalmente no interior do próprio samadhi.

Quando, ao nos encontrarmos, deixámos de pensar no ruído lá fora, fizemos o nosso jejum, de comida e de sono, e adereços semelhantes que interferissem com a água que somos a fluir um no outro. O teu olhar silencioso, belo e misterioso enchia, pouco a pouco, o ar de melodia e doce murmúrio. Enxames de pequenas criaturas brilhantes, que não eram fadas nem insectos, e muito menos pássaros, mas estrelas cadentes, mergulhavam, desciam e subiam, como a humidade das nossas almas a derreterem-se (expandirem-se) uma à outra. Ensinei-te o preço da minha nudez enquanto metafísica. Respirámos para dentro um do outro, com uma mão na nuca e outra no sexo, enchemos-nos como sóis que se reflectem mutuamente, os animais nocturnos entraram em alvoroço e, calando-os e até as estrelas, fizemos amor.

Quando voltaste, sozinha, a passear o rio que ladeava o mato, viste nadadoras com grandes olhos luminosos, mãos despidas, pernas voluptuosas e peles brilhantes, com olhares sempre virados para cima, para a superfície, estendendo graciosamente os braços brancos para a margem de uma ilhota ou de um salgueiro. Todas tinham a tua figura.


Horned Wolf

A Lua Apaga as Luzes



A Lua devasta os pinheiros
Dura os caminhos em que abre
As portas.

A Lua dependura
Os corações
De pernas ao alto.

A Lua torna
O Tempo da Morte
Em Espaço Brilhante.

A Lua é uma orgia de fadas
Em que bebemos a sede
E desorientados fitamos a fome.

Está frio
E no frio que está
As mulheres e os filhos
De todas as famílias
Congelaram.


André Consciência

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Prodígios


Andrei Chikatilo



Um poema que não fala de vento
Nem de vozes limpidas,
Ou de dormir nunca mais.

Um poema que não fala das árvores
Perdidas na saliva das ilhas
Nem das entranhas do mar
Que desprendem.

Deus não é eterno;
A metamorfose ignora-se;
Os fundos dos restaurantes olham;
Hoje, definitivamente, não chega,
Nem a próxima noite;
Os ossos são a única parte tranquila
Do corpo;
A sombra envolve-se
E se não fosse a música
Tinha um tiro nos cornos.

Levanto a cabeça e deixo a voz baixar.
Um duende dança na erecção do meu pénis.


Horned Wolf

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Morte a Saldo




O coração rechassado para longe do cais
Das auroras. Ficaste a beber, com gestos
Repetidos, a tristeza do rosto pelos
Lábios. A febre, engrossada com a seiva
Dos cedros acima, até que tocavas o corpo
Da morte. A luz um véu, a esperança, um
Horror sinistro, ilegível lâmpada
Arbusto estelar, ah, mil putas sufocam
Sob o jugo das minhas asas: relógios
Agitados pelo fim. Este poema, do que fala?
Do que fala este poema do que fala?
Os olhos, fustigados de mistério assombroso
Que há no bolor fumarento do tédio;
O ar!, que sufoca e paralisa numa torrencial
Euforia; Centenas de putas desfiguradas
E já sem nome, misturam-se na cicuta que abeira
O precipício da beleza do teu corpo:
Disse.

Os jornais, repletos de letras em merda
Inscritas, avançam pelo dia como barcos.

O mundo não deixou de ser
Outro dia qualquer
Após a miríade de irrelevâncias
Intransponível.


Horned Wolf

sábado, 17 de setembro de 2011

Nação Fantasma




Chegava um triste lamento
O ar das correntes e a picada gélida
A aceitarem a brisa libertadora.

Depois, a extensão de terra desolada
Que contorna o Ocidente da Espinha do Mundo,
Norte, Leste, uma canção interminável
Enchia-me os ouvidos.

Ouvira-a a cada segundo que ladeara
A cadeia de mares, a visão das vastas
Montanhas. As praias, quando caíssem
As primeiras neves.

No primeiro dia em que me afastei
Da Espinha do Mundo, as carroças solitárias
Punhados de cavalos sem cavaleiros.
A fraqueza puxava o Sol baixo no horizonte.
As estradas de ébano, mantinha o capuz
Baixo, soltava um ligeiro aceno de cabeça
A cada ruína.

O pico dos lagos rochosos dominava
A região coroada, no curto Verão, da queimadura
Na neve.

Uma bandeira ondulando, desafiadoramente,
Contra o forte vento.


Horned Wolf

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Aquele Que Está Diante de Deus




Á esquerda do jaspe e da sardónica,
Envolto num arco íris de esmeralda
Contorcia-se um relâmpago vestido
Com as neves longas do Inverno
E munido de um rosto ao Sol.

Na Igreja, só a fronte de alguns
Brilha. No céu, Adão possui chagas
Tudo o resto, asas, mas nem todas
As asas, em tamanho são iguais.

Á esquerda do Rio Tigre, um raio
Dourado, com corpo de crisólito
E bronze nos membros, fazia arder
Os fachos dos olhos.

No céu, todos seguram espadas
E o Príncipe do reino da Pérsia
Ainda não está no Inferno,
Mas nem todas as espadas, são,
Em cumprimento, proporcionais.

Só podemos ter um corpo novo
Se cairmos para cima:
Cabelo de mulher, dentes de leão
E vulto de homem, asas, com estertor
De batalha, e caudas de escorpião
Para assustar a morte.
Há centenas de milhões de cores
Que nem sequer conhecemos.


Horned Wolf

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Morte de Urzes



O silêncio é uma ravina
Onde se esconde o pardal
E Deus se inclina.

É uma tontura
Onde acaba o homem
E a Lua perdura.

O silêncio é a solidão
Das árvores que cantam
E incêndio orfão.

O silêncio é a morte
Que nasce nas urzes
E rasga a norte.

Estendemos, no deserto
As almas, e deitamo-nos
Sobre elas.

As estrelas giram
Que os nossos corpos sorriam
Criando aguarelas.


André Consciência

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Portas e Penedos - performance de dança e poesia por André Consciência e Soraya Moon


Sexta-feira, 26 de Agosto às 22:00
Espaço Tuatha
Rua Pinheiro Chagas, nº 48, 2º 1050-175
Lisboa


"De vestes negras inclina-se
Deus, sobre o corpo de um anjo
Conjura alguma coisa da cabeça
E do coração do cadáver."

Poesia de André Consciência interpretada pelo autor, acompanhada pelas atmosferas sonoras de Babalith e a dança interpretativa de Soraya Moon. O acto será acompanhado por uma exposição de cariz esotérico e contemplará o fantasmagórico enquanto matriz da realidade mundana do dia a dia.

Valor: 5 euros

Inscrições no local ou por email:
abismohumano@gmail.com

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A Deeper Shade Upon Her Name


Hooded Figure on Hallowed Ground - Gary Corb


No término da prata-além
O seu título de negrume
Abrasa-se e espalha-se com aras
O ventoso esquecimento esmorece
E bailam um lume, as lunares folhas
Da sombra campestre.

Abre-se alada, eclipsada,
Uma gruta de lobos
E levanta-se a brilhar
Com orgulho e em colisão
Com o topo da Lua.

A forma funda santifica
A treva de estar
Nua.

Envolvem-se os poemas
E na fera giratória
A água levita-se
E torna-se memória.


André Consciência

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Ohmésêhese

A jaula perto da fonte, na praça,
Alberga três gémeos cegos. Ao lado,
Um teatro de marionetas, desempenha
Uma peça sem sentido. O cachimbo
Chinês, proporciona um sonho a branco
E branco. Na neve, o homem de chapéu
Perseguiu a raposa, com corpo de mulher,
Ou do açúcar no matutino café, dois
Tiros para o ar a saírem dos olhos
Aguados, raios parta o mundo e os seus
Penhascos, o homem olhou para as mãos
As suas mãos de raposa, com penas,
E sangue e deserto, a serem o fim
Do coração e o fim do coração, escultor.

Sem magia, os pulsos não tremiam,
Pôde executar muitos assassínios
Na noite que os guerreiros de elite
Cheynne, saíram vestidos de mimos.


André Consciência

domingo, 14 de agosto de 2011

O Verão nas Nossas Bocas


Summer of Love - Ora Moon


As minhas mãos aprendem-te, um vento melódico
na geada pura, de ti brotam enchentes
minhas mãos com tudo.

O meu sangue acordando onde moves a matéria
Beijo os teus olhos e deslizo na esperança
Do teu aro de fogo que se entrega
Na carne viva da tua carne em ascendência
Na luz dos meus braços seguro-te, luz pulsante
do meu perpétuo instante.
O incêndio da tua voz a murmurar o mundo
De cada coisa, abrindo a minha face
Para que a água encha, os dias a nascer
Onde o corpo aspira longamente, e as sombras
em êxtase, dos bárbaros de rosto divino,
O fulgor do mar inspirado, do crepúsculo,
Da montanha nos cavalos brancos da nossa vida.

O verão nas nossas bocas, a morrerem
Uma na outra, os arcos do horizonte
Derrubados no amor, mais terrível
Do que o dia.


André Consciência

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Jibrael


Parsifal - Delville

Um burburinho louco passa pelas cidades desconstruídas do nosso dia-a-dia. Nada nos marca e tudo é, não obstante, tão fundo quanto somos. Tanto tenho a dizer e com eloquência bastante sobre a nossa actualidade, no entanto a loucura simulada é a única resistência, o simulacro negro e desesperado do neo-Dionísio. Uma virulência requintada invadiu a racionalidade dos homens e a graça das mulheres. Todos somos as suas presas uns dos outros. Não pretendo ser poético, há música bastante na electricidade que nos perfura e nos liberta de nós mesmos, no anjo inimigo da carne e apologista do auto-consumo do eu. Pai, se te lembras de nós, que somos poeira e esquecimento, aproxima a tua estrela. O inútil cresce e pressiona-nos a trabalhar sob a sua cruel e luminosa espada, espicaça-nos o espírito e mói-nos no lodo de carícias longínquas. Ímpios se tornaram os teus ministros, o escárnio habitou a boca dos teus juízes, a santidade escolheu o rosto dos pecadores. Dia e noite medito na queda dos templos, nas prisões derramadas. Faz-me como uma árvore plantada junto às correntes de águas, para que rompa os edifícios e as teias dos que sem a tua graça prevaleceram na tua força. Porque tu conheces o caminho dos ímpios, mas o vulto das pedras e do teu corpo primeiro conduz à sua ruína. A anarquia dos anjos paira sobre as cidades ensopadas da ausência de sangue. Há muito caíram as nações e os povos, todos. Os teus anjos reúnem-se num louvor de mentira e de vaidade. Deito-me com o meu coração no leito. Que os meus ossos sejam como a sombra de ti e que o meu vulto seja. Que na morte haja uma lembrança de ti e no Seol eu te louve. Tu, que puseste na escuridão o teu sorriso em toda a terra, os teus dedos na montanha, no chão, no céu, a esquecer-se dos impérios, infernais ou celestiais. Vede agora, como a perfídia se desfaz em tudo o que passa pelas veredas dos mares, no céu que adentra a ave, no mar dos bois, no campo dos peixes.

Horned Wolf

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Desenho Através do Som

I

O comboio estava lúgubre. Numa linha continua de desvario. Calou-se tudo. As suas engenharias sem som nem existência. Uma catedral com fantasmas de monges. Uma plataforma quente para os ovnis fermentados. Por outras palavras, a senhora tinha sido despida e acorrentada ao metal, com fedor a merda e urina e sangue menstruado. Os ratos olhavam-na melancólicos a partir do crucifixo.

Um cavaleiro em seu socorro assassinava espectros dos homens que se haviam enforcado no sexo dela para ressuscitar e regurgitar no coração. Perdeu-se numa gruta de luzes, num túnel entre a vida e a morte, percorrido a todo o seu comprimento por comboios sem sonoridades. Qual seria uma mulher? A que procurava. A infância que buscava desarrolhar. Por outras palavras, a foice que Hitler carregava em todos os discursos.

Uma selva de emoções desconhecidas tapava o caminho para o buraco com que procurava suga-la da inexistência. Desvaneceu no próprio estômago.

Acordou no intestino de um boi defunto. A solidão da manhã bem presente na sua febre. Mil bichos da madeira corroíam as suas engenharias. Descobria-se ser, em toda a sua plenitude, um comboio insonoro. As silvas cresciam no Elísio intestinal. Não queria socorrer a morte da mulher. Esvaziar o Graal era inexistir. Arranhou as paredes do seu cadáver exterior. Quantas luzes mais teria de suportar a manhã?

Sombria cantiga dos pirilampos, dos rouxinóis de voz gutural. Lombrigas asseadas jogavam às cartas no tampo do seu cérebro limpo de vida. Cantiga antiga no alívio de todas as bexigas.

A madeira das linhas ferroviárias a desabar o muro.

Ah! Estrondo das roldanas! Gemida a mulher. Mar sem fim! Luz rasga. LAM. Senti descer o sangue por toda a narrativa em formato de electricidade nas florestas dos sentidos, dos sonhos vividos da Segunda Guerra, do conforto dos campos de concentração. O som cobria as palavras como a substância faz a sombra.

Mitiguei os templos que faltavam na lavagem do mundo de fogo, das esferas do demiurgo nauseado. O comboio estridente esmagava um cão, apodrecia um homem, abria as múltiplas vaginas de uma mulher, acabava os povos.

Naves espaciais a descer do tecto em fios de lava de aranha. Descortinavam a estratégia mais certeira da beleza. A intempérie da realidade confusa na ponta do caralho. Derrubar uma nação durante a lenta e doce e cândida e lânguida e saturada e agitada e atormentada masturbação. A morte do cão sob o estrondo das roldanas. Foi o estrondo e não o peso, que elevou o império. O peso só no estrondo voa.

Hmm. Hmumh. Como os robôs riem. Sorriso alcoolizado. Devagar, o mundo acorda para o amor. O estômago já não arrota sem sorrir. Espirais de entendimento.



II

Hoje descobriram que sonhávamos. Não havia por isso como distinguir os elementos da realidade dos elementos transcendentes. O Dalai Lama cantava sendo chicoteado por um índio alto e chinês aplaudido por três macacos gordos em divãs.

A esposa do monge banhava-se um pouco afastada, no varandim com vista para a neve, e pensava no que não seria a voz do homem azul, as serpentes lavavam-se na sua pele solta e ela chorou os homens que não sabiam dormir dentro do sonho. O chicote estalava com mais força sob o filho de Deus. Cresciam roseiras de lótus na cabeça dos leões recém-nascidos do sangue. O xamã ria-se sob a forma do corvo que aprendeu a rir. O seu voo uma linha impecável.

O homem movimentava-se dentro das campainhas a perder a forma humana. Deslocava-se em torpor pela colocação da voz que respondia do outro lado das portas. Nada era fixo que não fosse fixo. Os cabelos das campainhas dançavam na maré das horas. Não havia nada para dizer. A sensação era uma boca de sensação. E tudo cai, sempre, no interior das margens do rio.

Sal. Manhã. De noite. Imerso. Submerso. Esgravatar a solidão dos dias. Escutar dentro das fendas. Perfuração lenta. Descobrir dentro das fendas a microscópica loucura que compõe. A minha nação não existe. Nunca existiu, um homem que eu nunca conhecerei, uma lesma na rua pisada. Nada me impede de roubar. De matar. De violar. De chorar.

O crocodilo banha-se na pele esfolada das rainhas. Assim, assim. As campainhas percorrem o cosmo.

A
Electricidade
Acompanha
A
Realidade.

Gotas de água
Na solidão.
O papagaio
Solta-se da mão,
Presa à devoração
Das
Estrelas.

Raiva calma
Da loucura
Principiante.

Som. Som. Som. Som. Aumua. Regressão.


Horned Wolf

* em escrita automática durante o workshop "O Som e a Linha", de Nuno Bastos