domingo, 31 de outubro de 2010

Chama Secreta


The Wounded Angel - Hugo Simberg


Quem é esta gente cantante
Que se instalou, na sala,
Em baixo?

Não tentes perceber o candelabro
Esta noite.

Não saias à rua, muito menos.
Há coisas sem manhã possível.
E as manhãs, de qualquer modo
Não servem de nada.
Cala-te, pois, e deixa as rosas
Murchar.

Em baixo, instalou-se gente
Que quem é?

Não procures perceber o candelabro
Na sua luz, esta noite, das noites,
Esta noite, é um candelabro sem luz.


Horned Wolf

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

...


A Calling - William Adolphe Bougeureau


O chão axadrezado, as paredes brancas, uma janela no tecto. Não me vou pôr a embelezar a coisa. Está incenso e luz de vela e lenço estranho com várias cores no altar. Eu com uma pia prateada nas mãos. Procuro não mostrar medo, para não desapontar os crescidos, todos de branco, eu de branco. Bem que podia usar um vestido de menina a ser baptizada – era mais... Falta-me a palavra. Era mais literal. A maior parte das vezes, na sua casa de campo com jardins delirantes, o velho está sozinho comigo, de negro, como um carpideiro, e espalha cinzas na minha testa e na dele para depois administrar a hóstia e fazer-me a queimadura e o sangue. Durante aqueles dias não posso deixar a sala, a Lua entra pela única janela (que está sempre fechada) e o Sol, no espaço frente ao altar, encandeando o resto da sala. Mas há um… Perdi-me. Há um pássaro, isso, um pardal que entra na sala hermeticamente selada, de vez em quando. Canta com muito eco e acaba por se ir embora. O velho dá-me de comer só pão e vinho e rosas (rosas, para não de me ferir muitas vezes). Hoje, ainda como rosas. Às quatro da tarde lê-me as escrituras e canta no que hoje julgo ter sido hebraico, mas não faço ideia, e fica ali, muito magro, a balançar-se para trás e para a frente, depois. Se me apanha a masturbar bate-me com a vara – é uma das coisas proibidas durante o tempo de preparação. Nos últimos dias traz o espelho e tem-me despido quando me lê as escrituras. Só aparece às 4 da tarde, mas a comida e a bebida só devem ser tomadas, restritamente, às 9 da manhã e às 9 da noite (a água várias vezes). Devo orar ao amanhecer até se estabilizar a manhã. Ao entardecer até se estabilizar a tarde. Ao anoitecer, e dormir de forma repartida, de modo que nunca restem vestígios do dia-a-dia. Uma vez chamou outras pessoas e chamou outras vezes. No dia em que o anjo finalmente vem e eu tenho de pôr a cabeça na bandeja de prata a primeira coisa são as fezes e a urina que não se controlam e o liquido seminal e a saliva e as lágrimas abundantes.


Horned Wolf

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Sabellum Rubro




As laranjas em tempo líquido
Para escorrer o teu corpo que escorre
A tua alma: Eu tenho memórias nos dedos
De se haverem criado amores e segredos.
É o teu cabelo que me pinta as mãos todos os dias
E este, é um segredo. Eu construo mundos
Portas e penedos, poemas, dramas e enredos
E, ainda que me imagines longe como os barcos
Apagados pela amargura do mar, as minhas mãos juntam-se
Aos teus dedos.


André Consciência

Sabellum Negro




Canção sem letra, um choro leve
No peso amplo da noite
Onde nos vemos a nós, pela rua longe
A falarmos devagar o som dos anos todos,
E os rios a passar pelos nossos passos
De cidadelas móveis em neblinas -
Pirilampos em cortinas.


André Consciência

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

L'Inexorable


Drama Mulch - Alexandra


ONDE O HÁLITO DAS MARÉS

Quando a braços cuspido, o beijo das marés
O meu desejo incandescente, engole. Chama
Que deus algum reconhece. A sua língua azul
Saliva e é carne sobre a incansável substância
Dos sonhos cansados de mim. Exausto, fracasso,
Prosperidade, e há luz. Versa o vento, a brisa
Cruel que ornamenta e esmaga a garguleante
E crua atmosfera de um abismo. Baixo, a solidão
Precipita-se. Então magnífico, o teu hálito guloso
E gelado, esplendoroso, enraivece-se e cede; então
Terrífico, o beijo das marés a braços recupera
E revela-nos, inefável, a chama que tudo lembrará.

Horned Wolf

Silence of the Wolves


Last Sleep of Arthur in Avalon - Sir Edward Burne Jones


Um lobo morre no paraíso
Branco, da neve.
Sabe, apenas a existência
Infernal. E não haver
O deleite. Tem também
A certeza, de carregar
Um Éden despido no corpo.


Horned Wolf

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A Arte é um Ofício da Morte


Six-winged Seraph (Azrael) - Mikhail Vrubel

Procuro o dia em que nada reste
Sobre o qual escrever, e a poesia se esgote
Talvez sem saber, que toda ela brota
Do não-ser.

Conto o tempo pelos aniversários
Estes iguais, e o mundo passa a correr
Uma miríade de sombras
Sem importância alguma.

Afundo-me na poltrona, e a poltrona
Me não mata. Fico à espera
Que o céu venha ter comigo
Fico à espera, que o céu me cegue
Para sempre, me arranque os filhos
E me cuspa o ventre.

Horned Wolf

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Lua & O Gnomo


Annunciation - Anton Raphael Mengs


Lembras-te, de quando escutavas o amor
No cais, e isso te atraia ao precipício negro
Das espirais aquosas? Dos sussurros, lábios
Na tua pele, e pernas em volta da cintura?
Ou o Sol nas mesas dos restaurantes,
Os papeis e escrevinha-los, ou as vezes
Que falavas, e as multidões te ouviam?
Lembras-te da Lua na pele vazia dos tijolos
Pelos quais passava a brisa, e do mocho
Que piava todo moído pelo vento?
Do vinho, e mais nítido ainda, era a sua forma de anjo
No berço das pratas, a pairar sobre ti
Enquanto pairavas? Das mãos gastas
De desgosto, e dos meses com canções
Que rasgam Agosto? Do fogo eterno
E à beira da morte, que guardavas mesmo quando
Te atingia o desnorte? Aqui onde estou
O céu é negro e a terra cinzenta. Eu tenho uma pedra
Na mão, de um violeta que cintila com o pulsar
Do coração. Lembra-te de mim como um cisne
Que morreu. E desta pedra espreita
A rotação das estrelas.

Horned Wolf

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Auto-Retrato


Anjo da Guarda - Bernhard Plockhorst


A sombra augusta do bosque
Em laivos a sombra azul
A serenata doente de uma ostra
Que amareleceu os braços dos amantes.

O buraco fundo, escavado em chuva negra
Mãos em espiral dos homens no Outono
E as crianças mornas que se enroscam no seu sono.

A cidade dentro da cidade, o fumo em constante
Cidade, um relvado de ossadas
Sob a labareda e a lunacia de Deus.

(Os seus olhos não descansam
E por isso lhe doem os ombros
Onde o peso das asas
Afunda todos os retornos.)

Horned Wolf