segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Auto-Estrada

AUTO-ESTRADA
Para a Babalith


Vintage Woman (Steampunk Version) - Itkupilli



Deslocavas a tua cilindrada
Ás ruínas, que sabias que eu amava,
E amavas saber que tudo o que não era de ninguém
Fosse teu, e sentir disso a aura
Dos ventos, das noites, do hoje.

Falavas e enganavas-te
Com graça tamanha que eu estivesse convencido
Que estavas certa, acima da gramática, ou da razão,
Porque a graça que te habitava, estas coisas
Vinha também habitar e sedutoramente mentir.

Olhavas-me muito fundo e procuravas em mim
Um lugar que não existisses, forçando esse lugar
A reconhecer que existisses. “André,
Nada te limita, mas tudo o que aos outros limitará
A ti mesmo te apresentará, como uma mancha que alastra
Como esta noite de vento e estrelas”.

E eu devolvo-te por isso a minha compreensão
Dos crisântemos de cores caídas para os olhos
Do Outono solar e triste, as linhas férreas, saber que
Tudo isso é hoje as casas brancas se sobreporem
Apinhando-se umas às outras, com medo tanto
Do deserto, que se tornam nisso mesmo que temem:
Um deserto. Cobrir tão totalmente a planície
Que a perdendo de vista, se totalmente esquecessem
Na planície.

Oh, eu, que te conheço a estranheza, como quem diz
Te conhecer a história, sei que gostavas de causar à família
Uma aflição da qual fosses indiferente, que impuseste sempre
A tua estranheza de viver, para que nada da vida possa
Ser estranho à vida, e te tentaste um par de vezes
Suicídio, mas eles não sabiam, que a tua filosofia fora sempre
Maior que a minha, mais axiomática e antiga,
Breve e evidente: raiavas sobre o mundo e destruías-lhe
Todos os máximos, todos os mínimos, e ele tornava-se
Finalmente mundo: iluminação, desamparo de Outono,
Um baile de campos, do destino para o deserto
Da estrada, o absoluto da destruição acima da pequena
E insegura compensação, sonho, acto, gesto, espectro
De uma azinheira, chuvas, terras escuras,
Porque a minha poesia procura evadir-se, e a tua despir-se.

Aqui, os espectros de um e de outro homem, ou da azinheira
Escorrem pelos fios de Sol que a estrada sobe pelo céu
Azul e vasto onde o Verão não cessa, mas a gelar
Tu desces, e tudo se faz festa.


André Consciência

domingo, 29 de dezembro de 2013

Arranha Céus


Skyscrapers of Shinjuku and Mount Fuji - Morio

Um casarão vive vasto na minha mãe
E a minha terra vai só,
Depois, o inicio dos olhos é uma raiva
Que busca a visita da música irredutível
Minha presença no mundo,
Electricidade estática que empresta a montanha
O pinheiro e a pedra.

Não há estrondo maior, do que o de alguém
A fechar os olhos, e a minha terra
Tem a idade da música, os seus homens
A idade do destino, aqui as eras
São consumidas pelos olhos, até a solidão cantar
E vir às portas pedir esmola, porque o fogo é o que
Da terra, mais está perto da não-terra.

O silêncio das fragas morre ao longe
No coro, e a montanha avança para mim.



André Consciência

Canoas do Tejo


Botes em Descanso (Praia do Rosário) - José Rodrigues


Há os que dizem que a emoção não tem razão
Nem a razão é nutrida de emoção.
Outros, cujos sentidos, um pouco entorpecidos,
Afirmam não haver paz ou paixão,
Apenas mundo e movimentação.

Eu sinto, olho, e minto para dar nome
Ao que não tem nome e sinto.
Esta é a verdade, que transcende,
E em qualquer coisa aquele que sente
É uma cidade de coisas e de gente.


André Consciência

sábado, 28 de dezembro de 2013

Fêmur de Loba


Beauty and the Beast - Annie Leibovitz

I
Um dos lados do seu pescoço comia.

As pessoas não eram feitas desta brancura
Nem a areia fina tem forma.

Na pista, vindo da escuridão
Restolhava um mar de saias.
Partia as palavras e fazia-as respirar.
Deixou cair os braços do condutor da camioneta.
Não sabia.

Enfim, chegaram os lobos.


II
A terra pisou o centro da noite
Um sobreiro parou debaixo dela,
França.

A mulher tentava falar mas não se entendia o que dizia:
“Qualquer coisa”. A terra macia e as pedras separavam os tojos
Desfaziam as veredas. As mulheres e os homens eram seguidos
Por caudas, ao tropeçar, e quando tropeçavam batiam
Nas costas outras, a abrir asas deformadas. Tinham o que viam
A calcar a grandeza do céu negro e grande. O caminho sabia
Enfiar-se no homem que conduzira a camioneta e só
Ela levantava-se diante dos rostos
A cabeça dos outros mergulhava
Como que para dentro de um vidro, na sua voz,
“Qualquer coisa” , a felicidade fazia promessas, com grilos
No arrastar dos passos.

É o pensamento que faz nascer a ausência.
Desconsolada, a noite olhou para dentro dela
E recusou-lhe um pedaço, muitos pedaços,
Três pedaços, a olhar para os homens
Cortou-os como lascas de pão, abraçou o chão
E deixou as suas malas de lado.
Um ribeiro simples passava,
Um fio de água foi sentar-se com ela.

Tudo aconteceu quando descansaram para parar.
Ficou duas horas a subir e descer os cabelos.


Horned Wolf

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Três Cantigas




Há mar infindo sem vida
Na escuridão um trono
De três mães, a cor obsidia.

Lembra-nos aquele que vinha
A luz que as ilumina
Messias que não vem.

Ó sangue do nosso povo
Que derramastes a fruir
Onde está o nosso louco
Destino não mais a cumprir?

(A da esquerda, bailando em roda
E muito queda)

Ouve ninfa!, que o mundo volteia:
Tudo será de nossa mui nobre ceia
Se a voz que te traz na candeia
Louvar ao céu um final de epopeia.

(A da direita, clareando a água
Da sua garganta ampla e estreita)

A sombra da vitória: eis ao que chamam
De História. Se o meu canto é solene
Sombrio, lúgubre, perene, lembra-te
Da memória, não há fim ao nosso ser
Nem inicio, no eterno amanhecer.

O trono parou, e as três
Imóveis, a fitar
Para onde, não acaba nunca
A gente acabar.


André Consciência

domingo, 22 de dezembro de 2013

Eufemenismos

Pan & Maid - Judith Page



Escuta o barulho do céu a passar pela casa,
O som do céu a passar pelos nossos corpos não será diferente.

A esponja de Alá lavou a Lua da abobada,
E isso aumentou a sombra dos homens e a sede.
De súbito, a quinta cobriu-se de rapinas esfomeadas
Cobriram os telhados e as folhas e as fontes e bicavam,
Ainda vivas, as dobras das janelas.

Alda, a minha filha, Alda, distante,
Como se sonhasse uma corte de amor no extremo oriente.
Vários homens desapareciam por debaixo da sua saia,
Como se apagados de manhã, sonhos.
A sua fragilidade a quebrar-lhes pescoços.
As suas mãos brancas sem ostentar sangue pisado nem mágoa.

A vontade de um homem não pode ser controlada por esse próprio homem,
E na bestialidade masculina lia Alda uma chuva miúda de alvorada
A limpar as varandas com perfume branco de flor.


André Consciência

YH VH - A cidade irreal num cerco à terra

Judith Page - Kether



Ponho um disco no aparelho, e do centro da música
Arranco à socapa as flores, talheres, lâmpadas, móveis,
Pratos de sopa, copos de cristal, exposições de arte
E fios de aço. Nisto é que um homem lhe resta
Estar lúcido, e se nele raiou algum vislumbre
Do que é o futuro: a presença de nós próprios
Como alarme do sonho, a interrogação submersa
Na intimidade, como se não escrevesse aqui,
Porque deixou de haver pedra e cardos,
E jazemos dentro das pedras e dos cardos.


André Consciência

sábado, 21 de dezembro de 2013

Transfiguração Poética




dedicado a Luiza Nilo Nunes


I

Lançou a candeia a nascente e uivou
De seguida, a Sul, acenderam-se fogos que apagaram a sua candeia,
tudo a deslizar pelo poente.

Encheu-se de caminhos enquanto o mundo a seu redor se vedava.
Conseguia ver nos crânios os homens de espírito.
Esquecia-se neles.


II

Descendentemente, as pastagens de gado
Cheias de água do rio Mouro
Agarradas aos seus pés como um sonho.

Descansou no dólmen,
Os seus falecidos deitaram-se nele,
com palavras brandas.

O seu coração explodiu,
espantando um aglomerado de moscas.



III


Sonhava que tudo estava no seu crânio: sonhava
Ter pele na luz e por conseguinte no movimento.

Por exemplo, nenhum buraco somente um buraco,
Todos os buracos a ser centopeias conscientes de si próprias.

É a razão irracional do quilópode que o permite movimentar-se,
A sua racionalidade é, por isso, um buraco,
E a partir deste buraco arrancou do sistema nervoso o gnomo negro
Que é um lagarto: as escamas uma luz de tochas no vinho à deriva,
Palavra a escorrer das estrelas.

O corpo réptil cintilava com deslizes suaves pelo Sol,
Três dias seguidos, encontraram-na em forma rochosa,
Enquanto encimava o penhasco de Portela do Lagarto.


André Consciência