quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Malak XII

Adolf Hirémy-Hirschl, "Souls on the Banks of the Acheron", 1898




1480 a.C. - Egipto, Creta

Em tempos, observei um povo de homens trabalhar o osso luminoso do mundo. Aqui, é o sangue do Sol - o ouro - que move os homens. Um anjo maior atravessa este deserto, num desafio aos outros, e chama-se Nilo. Passo a explicar: se os homens se defendem de Deus com um circulo de cidades, a civilização dos anjos é maior: é as estrelas e o seu chão é o deserto vazio. Mas mesmo as cheias, heréticas, não duram sempre. As cheias acabam quando Outubro o faz, os escravos trabalham  a mando dos chanceleres com esforço redobrado, os caçadores de aves ficam emboscados entre os juncos dos pântanos, a serviço dos aviários; os homens reparam os canais com terra, os pequenos barcos movidos a remos estendem as suas redes durante a noite, uma linha de homens lavra, outra semeia os sulcos, e uma terceira, de animais, pisa a terra. O que me espanta é a imortalidade dos nobres, nas paredes dos seus túmulos, representada pela vida quotidiana que lhes foi, em vida, negada, como se em morte pudessem lembrar-se finalmente e com toda a presença dos sentidos, da vida que não foi. 

Aqui, numa das ruas de Dier el Medinah, fui mestre de artesãos. Os filhos de Hori vinham brincar ao meu telhado com os amigos, colhi a sua mãe no deserto e vi-me devedor ao escriba. Visito a actual esposa, Tuya, que da minha Merit é irmã, mas como se emprenhou, em que isto é para si uma estreia, fica a rezar no santuário da casa, sem saber que ouço sempre que as suas palavras se deixam voar, e nós ficamos na sala central, onde Merit nada vê pelas janelas a nível do tecto e eu, dentro, olho de fora para dentro, por todas as janelas simultâneamente. É um daqueles sóis a pôr-se que torna a brisa apetecível e o calor das casas borbulhantes repulsivo. Como girinos a sair de lagos, os homens emergem nos telhados a colher os sopros com a alma aberta e cheia de ventosas. Os homens que vêm trazer vinho e cereais ao escriba tropeçam sempre nas crianças nuas e doentes de curiosidade pelas vozes absurdas da criação. Por vezes vejo-me a olhar-me por entre o ruído e a poeira das ruas, e fico com medo de Deus. Fico, também, a lembrar-me do desespero dos mortais. Os homens pensam que o anjo que rasga o deserto preparou um Egipto perfeito para a segunda morte, tolos todos eles, porque o Nilo é senão um sinal da sua decomposição final. 


Com a febre de permanecer tempo demais na terra, mudo de terra, sem aviso, quase sem levar sequer lembrança, o sol abrasador de Creta por sua vez a lembra-se de mim num lugar que não visitei, Creta ela própria, e por isso eu subo o Nilo até às ilhas rochosas do Mediterrâneo para conhecer os Reis do Mar. As azeitonas eram as melhores, os palácios os mais belos, e os saltadores de touros, nos pátios dos mesmos, no mínimo, uma irregularidade. Ali reforcei a minha aliança com o Pai, que usava a moda das cortesãs e as saias a serem um sino dos céus e das concavidades terrenas, a segurar as duas víboras como quem impede o céu, em toda a sua raiva, de se atirar ao chão. Aqui, os deuses vão viver para as encostas e para as montanhas, mas ou os meus olhos estão cegos ou me não consideram digno: apenas encontrei selos e anéis. 


Horned Wolf

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