Dedicado a J.
O vento rondou o norte e caiu, deixando o cheiro doce do sangue por cima de mim. Com os olhos amoráveis e ardidos do Sol, vi leões na praia ao anoitecer. Já não sonho contigo, nem com lutas, nem com grandes acontecimentos, ou com mulheres, ou com tempestades, sonho só os lugares, com a brisa de terra e os leões na praia. Acordo depois a olhar para a Lua. No escuro, sentia a manhã que vinha. Mas vinha do mar, de onde eu também sonhava. Os leões via-os do mar, e o mar não é um lugar, é de onde os favores descem ou se atrasam e nunca chegam. Um dia encontrámos um barco, eu e tu, no mato onde pensava muitas vezes e que te mostrei. Era um barco pequeno e a remos e subimos e o mar estava liso e quando o dia desceu iamos já perto dos barcos de passageiros. Quando quisemos voltar, a maré descera e estava longe do pontão. Nadámos. Mas ao sairmos da água nunca mais nos vimos. Ficámos lá atrás, a ondular, com o barco, deitados ao Sol a fumar cigarros. Ao erguer-se todo, o Sol atirava-nos reflexos e cegava-nos. E nós continuávamos a remar, sem olhar mais. Repetia-o à noite, sem medo, e quando estava só, cantava em voz alta, e ficava a ouvir-me, a experimentar o corpo dentro da voz, a vaguear as superfícies aquosas. Quando estamos acompanhados falamos porque é necessário, mesmo ao dizer tudo o que é desnecessário. E eu não voltei a sonhar contigo.
André Consciência
Sem comentários:
Enviar um comentário