sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Malak IX



Quantos dias passaram? Aqui as noites são da cor da uva, os dias são como um pôr do Sol em constante chuveiro, são muito amarelos. Passaram-se alguns dias, como punhados de décadas. Vi as primeiras gerações crescerem no Reino, todos me tratavam como pai e irmão, eram uma família, e eu distante, diferente. Não sei porquê. Depois na longa marquise vidrada vi chegar um pássaro brilhante como a estrela prateada. Foi igual a ver chegar a minha alma. Abri as janelas quanto pude mas tarde demais. Não voltei a falar desde esse dia. Quando me senti imóvel como uma raiz pus-me em viagem e nunca comia muito. As  auroras boreais de Outono perseguiam-me ao longo de todo o mar estreito. Por vezes subiam do Sul, numa fúria de relâmpagos e névoas verdes que levavam dias a cair. Por vezes desciam do norte, frias e graciosas, com ventos selváticos que trespassavam as tábuas. Uma vez ficara tão frio que quando acordei encontrara todo o navio coberto de luz, gelado, branco como uma pérola. Outro dia encontrara-me a sonhar aos pés de pedra de um senhor do céu qualquer, há muito morto, vejo uma estrela vermelha a sangrar no céu. Ainda me lembro do vermelho. E a ave voltou a mim, não cantava. Nunca cantava mas tínhamos uma aliança silenciosa e compreensiva. Quando notei em mim: conversava. Voltei a fazer famílias. E uma daquelas noites em que os clarões violeta pairam no ar com preguiça, a ave abriu o bico, como tantas vezes fazia, mas desta vez cantando. Uma implosão fez-me lembrar de tudo. Nunca fui humano, sempre o soube, mas construí uma muralha entre a solidão e o ser, e a principio fiquei em nenhuma das fronteiras. Agora a ave cantava e o seu cântico era a minha morte. O meu corpo sangrava azul e a multidão foi buscar paus e navalhas. 


André Consciência

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