Quantos dias passaram? Aqui as noites são da cor da uva, os dias são como um pôr do Sol em constante chuveiro, são muito amarelos. Passaram-se alguns dias, como punhados de décadas. Vi as primeiras gerações crescerem no Reino, todos me tratavam como pai e irmão, eram uma família, e eu distante, diferente. Não sei porquê. Depois na longa marquise vidrada vi chegar um pássaro brilhante como a estrela prateada. Foi igual a ver chegar a minha alma. Abri as janelas quanto pude mas tarde demais. Não voltei a falar desde esse dia. Quando me senti imóvel como uma raiz pus-me em viagem e nunca comia muito. As auroras boreais de Outono perseguiam-me ao longo de todo o mar estreito. Por vezes subiam do Sul, numa fúria de relâmpagos e névoas verdes que levavam dias a cair. Por vezes desciam do norte, frias e graciosas, com ventos selváticos que trespassavam as tábuas. Uma vez ficara tão frio que quando acordei encontrara todo o navio coberto de luz, gelado, branco como uma pérola. Outro dia encontrara-me a sonhar aos pés de pedra de um senhor do céu qualquer, há muito morto, vejo uma estrela vermelha a sangrar no céu. Ainda me lembro do vermelho. E a ave voltou a mim, não cantava. Nunca cantava mas tínhamos uma aliança silenciosa e compreensiva. Quando notei em mim: conversava. Voltei a fazer famílias. E uma daquelas noites em que os clarões violeta pairam no ar com preguiça, a ave abriu o bico, como tantas vezes fazia, mas desta vez cantando. Uma implosão fez-me lembrar de tudo. Nunca fui humano, sempre o soube, mas construí uma muralha entre a solidão e o ser, e a principio fiquei em nenhuma das fronteiras. Agora a ave cantava e o seu cântico era a minha morte. O meu corpo sangrava azul e a multidão foi buscar paus e navalhas.
André Consciência
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