domingo, 30 de dezembro de 2012

Naquele Descampado O Chão Eram Lençóis

André Consciência



Ganhava a vida a atascar o braço na vulva das vacas
Doíam-lhe os calos, as botas, os pés inchados,
E cortava o cabelo com as unhas grossas e duras
Sem querer saber para nada de Lisboa nem do estrangeiro
A amar a terra indivisa e fecunda, para além da própria vida
Que fecunda e indivisa se fazia.

Grosso e escarlatino, grande,
Meio monstro e meio bobo ia a Lisboa
Quando muito a Évora, e deitava ao leito
Uma ou outra menina, que as visse
Pintadas de bucólicas rosinhas azuis.

Mas na cidade as camas eram sempre estreitas e fracas
Para ele, e só então reconhecia na sua nobre consciência
A sua monstruosidade, já o corpo agigantado e espesso
Se separava dele e no outro lado do mundo as mulheres choravam
Mas ele estava noutro planeta, todo cravado
De dores, um poço sem feitio.

O tempo era parado, desumano,
Quando tinha pena -
Um animal doente e nefasto,
Aliás, nunca pensava nele.

Levava-as para aquela rua mais pobre
Onde as casas nem sequer tinham janelas,
Depois, com ondulações de mar nos flancos
Morriam, doce e resignadamente, com uns olhos de água
E de amor, e pouco a pouco emudeciam, bracejantes
Naquele tapete verde-amarelo do crepúsculo.

Como eram decentes a morrer!

Metia-as lá fora, o Sol a escaldar,
Mulheres velhas e novas também,
Todas agora sem idade.
Que Sol! Que caras de fome!
Minguadas, raquiticas, cosidas com rugas,
Todas em tempos a alimentarem-se de violetas
E a urinarem prata.

Um dia também vi um querubim de cinco anos
A esmigalhar ranhoso a cabeça de um gatito
Tranquilamente entre duas pedras.


Horned Wolf

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