Tu eras um jovem mais velho, e antes de eu te conhecer, eu ainda não conhecia a música, conhecia bandas que ninguem da minha idade conhecia, mas não conhecia a música. Tu trouxeste a música. Eras o jovem que estava à margem, um drogado viciado nos skates, um hippie dentro do ska, um amante do reggae dentro do metal, um gótico dentro da vida, e um punk dentro da sociedade. Ninguém que olhasse para ti diria sequer que a literatura ou a pintura te interessavam. Estavas na mesma escola que eu e dizias aos meus professores que enquanto eramos jovens deviamos gastar o nosso tempo a viver, e não a estudar. Ninguém daria nada por ti e tu deste tudo por mim. Ainda me lembro do dia em que me deste a discografia completa dos Doors, eu a ouvir e algo a entrar em mim que me mudaria para sempre, embora eu raramente medite sobre isso. Ou de faltar às aulas e de estar a ler os livros que tu me deste do Rei Lagarto Jim Morrison, e daquele professor que uma vez me encontrou, não era dificil, eu ficava a ler à porta da sala. Lembro-me do orgulho que senti quando o professor me disse "é boa literatura" e não me marcou falta. Eu nunca pensaria que alguém me compreendesse, nem mesmo tu. Instigavas-me a escrever, e eras a unica pessoa que lia realmente o que eu escrevia, as miudas suicidas a quem dava os meus textos nunca os compreenderam e fingiram sempre. Tu dizias: "Tens o futuro garantido".
Vivias num sotão, como eu vivo hoje, e lembro-me de ir a tua casa para ler prosa e poesia, lembro-me de amares poesia japonesa, e de eu a ler a sentir todas as fragrancias. Nunca me incomodavas e foi no teu antro que senti a primeira reminescencia xamanista, porque a exalavas. Ninguém diria isso de ti. Nunca aprovaste quando eu, pela dor das raparigas, explorei as drogas e me perdi um pouco, não gostavas sequer que eu fumasse, mas admiravas a minha consciência à margem de tudo o que era convencional. Conhecias as drogas e sabias que elas eram uma das coisas mais banais da decadencia humana, tal como o resto da programação social.
Bebias e não foi contigo que eu conheci a bebida, sempre que me dedicavas o teu tempo estavas sóbrio, e olhavas-me com uma luz e uma compaixão que ainda hoje não compreendo.
Os anos passaram-se e nós perdemo-nos um do outro. Encontrei-te uma vez no Bairro Alto, ébrio, disseste muitas vezes "granda gajo", e abraçavas-me, como se não me visses, e eu soube que já não passava de um fantasma.
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