quarta-feira, 4 de março de 2009

Os Filhos da Noite







Imagine-se...
Uma época de silêncio ouvido, de palavra sem som, aí, quando abriamos os olhos e os fechavamos, estávamos dentro uns dos outros, para sempre. E a nossa palavra não era muda, porque era sem estrondo, porque era sem mil sombras, porque era o escuro e o escuro era a luz.

Então veio uma luz outra, um louco que sai de casa em pleno dia, de lanterna na mão (como Nietzsche ilustra) e nos diz, "Deus está morto, nós matámo-lo". O iluminismo, que nos deu lanternas a todos e deixamos de ser objectos dessa historia do silencio falado, passamos a ser os sujeitos, isolados, sozinhos, quase inteiros, metade devorados. Um "penso logo existo" e, qual facada final, somos orfãos. Os outros são objectos da nossa luz, não são conosco, são debaixo de nós, nunca nos satisfarão, nunca olharão para nós como se não fossem meras marionetas, imagens de espelho. Na treva da iluminação frouxa, o mundo inteiro é um abismo, em todas as direcções. Tudo o que está próximo nos mutila a identidade, nos interrompe conosco próprios, como um monstro engasgado nos seus próprios tentáculos.

Este desespero auto-centrado cedo leva a democracia à mediocracia, a razão perde lugar para o ceder ao dizer afectado, à voz ruidosa, se antes viamos os naufrágios com o conforto da contemplação, agora afundamos também, e afundamos na noite, sem nunca deixarmos de nos observar, nem no último momento. De um moderno para o pós-moderno eis-nos, os nossos concertos, os nossos livros, os nossos amigos, rituais quotidianos que nos arrepiam, sem qualquer significado. Estamos a ser devorados constantemente pelo próprio ar, se me tocas mato-te. Começou por alguém parado, a chorar, num banco... As pessoas pararam por ela mas ela não as via, ofuscava-a a lanterna. A seguir todos começaram a fazer o mesmo, e deixou de haver olhares. Ficou apenas o olhar do abismo, meia duzia de rabiscos esotéricos e herméticos, cerveja, para passar o tempo enquanto esperamos morrer.

Faltou-nos um sentido para as coisas, e se antes achavamos que eramos os exilados da Jerusalem - enquanto o procuravamos -, passamos a se-lo efectivamente, quando, sem ter tido respostas, deixamos de ter perguntas. A noite caia mais completamente, ou melhor, nós caiamos nela, engolidos pelo céu. Somos insensiveis, somos indiferentes, porque a indiferença foi o nosso pai e a nossa mãe; emocionamo-nos totalmente num acto masturbatório e ejaculamos para a sarjeta.

Cortamos os pulsos, e sentimos finalmente o olhar do Outro, o horror do outro, inviolável, incontrolável. O Outro. Bastou-Lhe um olhar, quando pequenos, para nos cegar. E do limite ao limiar, estendem-se as mãos do anjo.

Olho-te como uma menina, o teu punho fechado, trémulo mas firme, a tua expressão armagurada e o fogo dos teus olhos, que te incendeia e te queima. O teu punho fechado no teu sangue, erguido no ar, no formato de um coração sangrento.

Ah, se a abrisses, o mundo a teus pés.

Que a Noite nunca faça faltar o amor para com os seus filhos.


*dedicado a Beatriz Hierro

1 comentário:

  1. Roubei-te uma frase daqui...para o Páginas :P

    (...quanto ao texto, nem digo nada; senão ficaria aqui a tarde inteira a dicertar...)

    Um beijo*

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