quarta-feira, 18 de março de 2009

A Metade Devorada II




Sentei-me, hoje, de noite escura, naquele sofá habitual constituído simples, por almofada de um sofá de verdade que estava rasgado e envolto de pelo de gato e que foi deposto mesmo ao lado do caixote de lixo na noite antes de aparecer o carro que o recolhe com tantos sons despertando o vazio das ruas do Penteado, uma aldeola entre duas vilas. Depois, outras almofadas que não me recordo de onde vieram, talvez trapos da minha avó, faziam o encosto e, como habitual, confortado por isto pus-me quieto dentro de tudo o que é inconfortável como se fosse conformismo. A música, a tocar baixinho, embalava tudo um pouco numa melancolia perene. Como se fosse preciso um suporte para, simplesmente, sentir. Como se fossemos tão débeis que precisássemos de suportes para sentir. Como se fossemos máquinas frias e fantasmagóricas, inconscientes dentro do vazio gélido do consciente. Pensei que queria desprezando. Pensei que talvez ela pudesse estar ao meu lado. Quem sabe a beijar-me. Pensei que, como em raros momentos, ela podia estar verdadeiramente comigo. Esses eram momentos irreais. Ninguém tem tempo, ninguém tem disponibilidade, por outras palavras, não há coragem para se estar de verdade com alguém. Olha-se por detrás do ombro, com os olhos cegos de gelados, em frente, planeando esculturas de pedra fria e sem expressão, olha-se para dentro para se contemplar a dor, para se agarrar à dor, para se suportar. Continua-se e fim. Ah, se o mundo fosse de um Divino mais vivo, quem sabe, ela pudesse ser mais vivamente aquela divindade de juba solar, vestes de sereia e corpo felino. Nesta divindade fantasmagórica que é, é aquela escultura de Inverno que está descontente mesmo consigo mesma, que se trocou por pedra e nunca ousou olhar ao corpo de fogo. Bonita, não obstante, quão bonita. Sincera, pura, serena, nos seus olhos brilhantes prados sem fim, feitos de paz. No seu sorriso que consigo causar rasga-se uma alegria inabalável ou insuportável e mostra-se a fulgurar. Enfim, pensei em como já dançavas longe porque nunca estiveste senão na imaginação, e o que não? Se existes és um corpo tão celestial e distante quanto uma nuvem bem bela e púrpura de serena, ou de pesadelo aglomerado. A minha mão chega às nuvens, a minha voz controla as nuvens. Tu, inatingível como uma nuvem, presa nas teias bailarinas de uma imaginação mais bela que a própria lua ou tudo o que tem luar. Que um próprio lago ou todos os nenúfares prateados pela noite em sonoridades gotejantes. Aparece. E apareces. E pereces. E imortal. Quantos foram os monstros que te atacaram? Quais os seus nomes? Tu não sabes, tu nunca lhes resgataste os nomes, que pena. Quem tem o nome tem o comando, tem o controle. Quem escreve e é esmagado pelas letras e encoleirado pelas frases escreve as próprias feridas e entrega a si mesmo o abismo indecifrável. Ah, mas tu, só sabes o hálito dessas vis criaturas sob o teu pescoço a aquecê-lo, a adoecer o sangue fermentado. Mas tu só cais e não sabes onde e te ausentas dormente para não sentir quando voltas a cair, sem parar nunca de cair em primeiro lugar. Cais quando te ergues e morres quando cais. Eu sei que o afecto ausente é como um terror presente no afecto, que não sentes, que não és.

Eu esqueci-me e voltei atrás, tu deste-me um livro e estávamos no Pinhal Novo. Tudo brilhava à excepção dos meus pais e da casa e da escuridão e da tua partida longínqua porém iminente. Eu escrevi esse livro e não sei quantas páginas tinha, ou se tinha dor que sei que também tinha mas sei a paz. Enfim, dane-se. Eu queria ver como seria tudo quando tudo estivesse destruído.



* Manipulação de Phallucifer Babalith

4 comentários:

  1. Este deu-me vontade de ir procurar os restantes...

    Um beijo, meu querido*



    PS: Gosto particularmente desta montagem. O pormenor da pantera assanhada é delicioso :)*

    PPS: Há algo que me é dolorosamente familiar, aqui. E não, não estou a falar de sofás desgastados pelo tempo, de trapos rasgados e frios a cobrir-me o corpo ou da falta de um lugar onde pousar a cabeça. Mesmo assim, isto é-me dolorosamente familiar (embora numa outra dimensão, mais...desprezível): pus-me quieto dentro de tudo o que é inconfortável como se fosse conformismo.

    Também há outra coisa que me toca muito fundo... (é assim com a maior parte do que escreves)

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  2. Olá :)
    Pois, também não falava das almofadas de sofá desgastadas.
    Se bem que, na verdade, nunca fui muito conformista.

    "Também há outra coisa que me toca muito fundo... (é assim com a maior parte do que escreves)"

    Fica o suspense? :p

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  3. Eu sei que não, meu caro...
    E isso é o que distingue os seres admiráveis dos desprezíveis.

    Quanto ao suspense... fica ;)
    É assim: muitos anos a ler Stephen King, jajajaja!

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