sábado, 25 de outubro de 2014

Cinco da Manhã





De noite as portas abrem-se com luz. Todos aqueles que me olharam um dia sentam-se no interior, discutem a vida. Onde estou a voz selou-se e o destino é tudo aquilo que não pode ser dito. Permaneço afastado das portas, aqui ninguém me vê. Fosse o amor esta escuridão onde nada alguma vez chegou tarde de mais, um beijo completo, o horizonte desvanecido onde a vista clareia. 

André Consciência

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Acerto de Contas



Vive-se. As flores cobrem as janelas, deixa-se para trás a infância poluída para uma natureza feérica. As pétalas cobrem o tecto e ama-se. Acolhe-se a noite e é-se acolhido pela noite e a vida já passou e tudo retorna uma e outra vez, como uma redenção traiçoeira. Somos as pétalas. Um dia só escutamos o vento, os lábios já não beijam, as preces calam-se. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Malak




Uma manada de búfalos despertava num amontoado escuro. Cabeças altas, as caudas a agitarem-se, iam-se aproximando ao ver a minha luz tornar-se mais forte, apressando-se a alcançar a segurança do meu corpo, duzentas enormes formas bovinas com as suas cabeças armadas e espáduas negras curvadas. Os meus raios revelavam os pequenos pássaros brancos que pairavam em redor da manada, sempre prontos a desembaraça-los dos incómodos parasitas. Levantei-me, a juba roxa ao longo do dorso ainda erecta, um som que parecia os céus purpura da madrugada, que fazia a terra estremecer e agitava as aguas tranquilas do grande lago. 

André Consciência

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Malak




Mantenho-me no céu, nas árvores, e deito-me na erva do pôr-do-sol com os leões de juba negra, disforme no repouso, enquanto recordo a ânsia atávica do caçador. De manhã moscas verdes cobrem-me os olhos e entram-me na boca aberta, como o faziam de resto com os búfalos em que imprimia uma pegada de criança. Ao meio dia emano do ar aquecido, etéreo e semelhante a um chilreio. Os olhos brilham-me, como luas amarelas, e os cascos das colinas ardem. 

André Consciência

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

da Terra e da Lua




Um pássaro existe que vagueia sozinho no Sol, como uma sombra atrás da luz do fogo, uma memóra sombria. Veste um corta-vento azul e pode-se ver-lhe linhas de dor na testa, a cara pálida e luzidia de suor, os olhos aterrorizados num mudo apelo, a Palavra entranhada na boca. A cada passada, os metros tornam-se vastos como os céus e fundos como o fosso do inferno. Numa madrugada rosada sentámo-nos na borda do vale, com as penas penduradas, vestindo pijamas e roupão, nenhum de nós acompanhado.

André Consciência

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Lugar no alto da falésia




Subitamente, tínhamos chuva à nossa volta, fios de gotas a contorcerem-se na superfície da pele. O vento fazia-se sentir, atacava os seios reluzentes da mulher e fazia com que as minhas asas estremecessem.

Abracei-a através do nevoeiro, os contornos escuros e desfocados das baixas copas de árvore passavam pelas pontas das asas. Abruptamente, as cortinas encardidas de chuva e nuvens abriram-se e nós entrámos um no outro.

"Não assustes os leões", disse-lhe. E o Sol era uma grande e gorda bola de fogo a olhar com espanto para a planície sombria e cintilante de sal que se estendia. Avançávamos lentamente no calor, os pés cobertos de pólen amarelo.


André Consciência

sábado, 16 de agosto de 2014

A Vastidão



I

Ela caminha sobre uma inclinada encosta de arroz negro, os pés são muito brancos e felinos sobre as dunas. A pele dos braços com uma suave pelugem, as pernas entrecortadas pela saia longa de tecido fino, o leite do largo rosto proeminente. Com as sobrancelhas vermelhas fita o horizonte e não existe ninguém. O Sol é uma Lua e uma ave azul canta através do gelo cristalizado na ferida encarnada de uma bala, encostada aos ângulos mortos.

II

As árvores haviam crescido há muito. A ave azul era um rapaz. Uma estrela caiu para o seu cabelo. Ela prende-a no dedo e depois sopra como se sopra um beijo. O pirilampo esvoaça, apaga-se, e a ave azul partiu. Fita o horizonte e não existe ninguém. O topo das árvores ainda dança com os astros. O céu fica a deslizar para sempre, a noite a cair, os rios a morrer.


André Consciência

domingo, 10 de agosto de 2014

Limpeza total ao crânio





Vi-lhe o brilho, o tom do Sol
A espalhar-se sobre as cúpulas
As rosas, e as raparigas a correr
A nosso encontro, e o gemido da alma
Ecoou brevemente na beleza silenciosa

Sentada no trono uma figura pequena
Completamente descoberta
Era o símbolo vivo do amor:

Envolta em correntes
A mulher estava ferida
Ainda húmida
O rápido fumegar da ira amorosa
Nos olhos azul pálidos
A marcar-nos com os espíritos

Nós, fendidos nos pés
Pela sua chaga, corríamos mais rápido
Que os antílopes. Eu tinha uma pistola
Na mão direita, e apontei-ma.


André Consciência

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ao erguer um pouco o seu archote




O peixe senta-se no cadeirão
E o amor cambaleia ébrio
O caminho longo do rio
Beija as pedras.

Despejo o conteúdo do meu caldeirão
E ouve-se um berro no meio da ventania:
Contra os meus quadris
Recua o teu pé esquerdo.


André Consciência

A Lança




Sento-me, no colchão de palha,
À espera que alguém apareça,
O cabelo uma massa sibilante
A fera lamuria-se e principia
Um feitiço, enquanto num letreiro lê-se
«Sente o calor do sangue na tua porta»


André Consciência

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Uma Imagem Granulada


fotógrafa: Soraya Moon



Sobre o tórrido amarelo das casinhas e vielas debaixo
Do miradouro planando a Capital, uma criança de calcanhares
Em fogo atravessava os ossos pelo laminal frio do vento
No Verão.

De resto, eu apreciaria escrever
Sobre alguém morto, e que não tivesse de responder por nada
E a pequena está morta
Mas quando a noite se puser
Na hora do amanhecer, pela décima terceira vez,
Há-de o homem-pássaro dar-lhe uma bolacha e eu
Serei sempre partido ao meio e mastigado, com tudo por
Responder.


André Consciência

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Cetim




O Palácio do dia exalava a fragrância
De bonitas jovens que sonhavam ser cortesãs
E nele um homem de pele enegrecida rugia
O pôr-do-Sol em meia centena de línguas. 


André Consciência 

domingo, 8 de junho de 2014

Músculo

Tu escrevias como quem tece
O feitiço das verdades que nunca
Cumpriu para as poder salvar
E dizias o tempo ganhava um corpo
Na espera e que a tortura dos alicerces
Em roda quando silenciados
Aproximavam os nossos vultos como
Feridas que se apegam às encostas

A "nascida do mar" tentava acalmar os animais
Nunca nascia, eu pensava que tinha
Fogo de artifício nas gavetas empoeiradas
Dos seus livros.
Eu cavalgava mas tu jogavas de ter um castelo
De cavalos para dormir.

O meu à deriva num mar
De vidro
Não caia qualquer chuva
As mãos de fogo lutavam com as velas
Algo enorme esvoaçava por cima
Da minha cabeça.



André Consciência

sábado, 24 de maio de 2014

O Pássaro

Durante e em expressão de um improviso das bailarinas Mary Nemain e Soraya Moon

 



Uma corrente de grinaldas
Atada à volta do tornozelo
Um trago de limão
Pelos dias e noites de Verão
Trilhos de serpente que fendem
O corpo em passo de dança
Fogueiras entornadas dos precipícios
Da manhã, o copo a cair
Para o movimento, o espírito
Deslumbrando-se de deslumbramento

Depois, a serenidade transparente
Dos dias se moverem em mim
Com a partilhada vontade dos astros
Os vulcões a apertarem-se no espaço
Entre a vida e a vida
A sensualidade a lavar o peso de ser peso
E a vida a rir-se por vida ser
E a morte, para longe entardecer

O meu corpo estilhaçado
A dançar por todo o lado
Porque a alma prende o fogo
E o vulto em desaforo
Alumia-se ao vulto e sem decoro
Cria a coroa de grinaldas
O tornozelo entre as almas


André Consciência

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Reflexos


Lá em baixo só haviam sonhos
Beijos, e velas de junco
E camas feitas por cantores
Depois, a escuridão,
O rio arder um pouco mais brilhante
A canção dos archotes tornar-se mais
Sonora, a olhar para um rapaz
Com as asas incrustadas de gelo
A pele arrancada de metade da cabeça
Uma centena de cogumelos a crescer-lhe
Lá em baixo, peixes cegos e brancos
No ventre, intemporal, vasto
Silencioso como a Terra Oca
Ou o Mar Sem Sol, a ouvir o que
Nenhum homem, os olhos divididos
A dourarem, a cantar para si próprio
Puro como o ar de Inverno,
Como a última brasa de uma
Fogueira morta, senhor do reino incendiado
Herdeiro de ruínas, a luz a crescer
Fina e aguçada como a lâmina de uma
Faca, as estrelas a tornarem-se estranhas
Como círculos de ferro, os dias destronados
Pelo Sol, os anos soterrados no solo
Os séculos desfeitos em água negra
Que banha muito grávida e nua a mulher
De cabelo de nevão.


André Consciência

segunda-feira, 19 de maio de 2014

RAMMSTEIN; Wilder Wein (1998)

V. M.

 




Vinho Selvagem

Apresento-me
perante o teu castelo
E anunciam o regresso
apenas ao rei
Deus esteja comigo
e abra os teus portões
molhados e mornos
lentamente

perante o teu regaço
foi escrito
Profundo na água
"não atravesses"
Mas o meu desejo
troça das asas
como um pombo
febril e húmido

Diante a escuridão
transformado pela luz
escondido
indefensável
eu aguardo por ti
no fundo da noite

só uma uva
e amargo como neve
aguardo por ti
no fundo da noite.

tradução livre 

por André Consciência

domingo, 18 de maio de 2014

Saco de Estrelas




Ouvia-se as raparigas a ladrar enquanto corriam para casa
O tamborilar de pequenos calcanhares nus sobre lajes
Lá fora, debaixo do frio céu outonal, os rapazes estavam a jorrar,
E o vento varria as planícies onduladas.


André Consciência

sábado, 17 de maio de 2014

Coxas Fumegantes




As suas lágrimas eram
Chamas, a sua língua brasas
E cinza, e as estrelas de manhã ainda pairavam
Suspensas sob o bréu.

Entravas pela janela
Na forma dos flocos de neve
A flutuar no vento
E o meu rubi pulsava
E os lábios transformavam-se em dentes. 


André Consciência

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Branco Como O Osso Antigo



Só as árvores, infindáveis árvores
A submergir a torrente de folhas mortas
E castanhas, em verde vidência
O campo ensopado por caules mortos
O trigo apodrecido, depois um archote
A árvore a entrar em erupção
Aos uivos, as estrelas descerem os olhos
E vertendo das hastes a arder
O veado negro faz-se escoltar
Por crianças despidas, os seus cabelos
Um milheiral sobre a face
Da Lua. 

André Consciência

terça-feira, 13 de maio de 2014

Corre no Sangue




Luz das estrelas e espuma do mar vestiam-na
A donzela, tímida, estava amarrada
Harmonias de prata estrondeavam no seu crânio
Como um cão, eu roia-lhe as orelhas
E, de um lado, cabelos tão vermelhos como o sangue
Caiam-lhe até aos ombros em caracóis oleados.

Um leopardo aos nossos pés,
De língua negra,
Avermelhava-nos com sombras escarlate.


André Consciência

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Pecado



Os homens gemiam sob uma lâmpada tremeluzente
Flores de sangue haviam brotado nas feridas abertas
Como lábios rechonchudos de uma mulher.

Á superfície, um enxame de crianças coradas
Construia neve. E uma mulher de sal
Com um semblante queimado pelo vento
Presidia.


André Consciência


O Palácio do Amor




Tritões de mármore iluminavam o caminho enquanto
O vento vinha aos gritos e uma rapariga nua saltava
Em cambalhota. Acima, a Lua cheia nadava no céu negro,
Ruborescendo homens de pedra enlouquecidos
Pela fome, e eu procurava um Sol
No interior da névoa. 


André Consciência

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Filha dos Campos Dourados




Para lá da água a escorrer-lhe entre os seios
Cintilantes ao Sol
Cantavam rouxinóis quebrados pelo vento.

A leste, a escuridão juntava-se atrás
De uma ilha rochosa. 


André Consciência

Agora estavam a latejar





O fogo tem sempre fome
E com o calor a cobrir-lhe a cara
Ela estava em pé por cima de mim
Agarrada ao meu archote
E a uma tristeza que pensei talvez
Quebrar-me no peito.

Sob um manto de folhas
Os meus olhos estranhos
Fendidos e dourados
Reflectindo de volta a luz do meu archote
E um cabelo de Outono
A cantar uma canção de terra
Aos teus pés
Deixei crescer uma grossa
Raiz branca a deslizar para dentro
E para fora, o coração com medo
raiz agora grossa como a perna
E a criança que não era criança
Movia-se depressa
Uma ponte natural sobre o meu
Abismo escancarado
A pele branca excepto
A mancha sangrenta que lhe verti
Até à bochecha.

Agora, a minha raiz penetrava
A carne da sua coxa
E emergia do seu ombro
Com rebentos de folhas vermelhas
E brilhavas uma lagoa de sangue

À luz do meu archote. 


André Consciência

Prata Martelada




Lágrimas frias pingavam sobre eles a cada passo
Mergulhados na sua própria lagoa de silêncio
E fogo, a soltar baforadas no frio
Se a manhã viesse seriam crianças
A dormir no jardim com cem borboletas no dorso
A subir uma árvore, a apanhar peixes
Nas mãos, sem que a Casa houvesse deles caído
Pintando em tons de marfim e prata
Mil telhados abaixo dela, enluarando fossos
E pirâmides e eu sozinho,
Os meus dragões a rugir na escuridão,
O vento nas árvores de fruto e a palidez
Da mariposa do jardim, as estrelas a tapar
A Grande Porta. 

André Consciência

terça-feira, 6 de maio de 2014

O fogo no fosso




O coração flamejante em vermelho aguarda
Molhado e a pingar, que uma mão em branco se lhe enterre
Na pele onde se abre uma goteira e nenhum archote
Está aceso.

Mas quando o cometa vermelho furar
Os unicórnios comerão a Palavra,
Na noite, sorverei da alvorada o pão
Da terra, então terei erguido o capuz para ensombrar
O rosto, esvoaçarei no interior do meu crânio
Como uma traça apunhalada na chama de uma vela
E uma folha incendiada, o corpo imóvel
Esculpido em sal
Com a mão branca a arder para manter afastado o frio.


André Consciência

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O relâmpago dividiu o céu






Trotando para Leste sob um manto de estrelas
As jovens donzelas são nuas e belas.
Seguem serpenteando através de bosques
E vales, uma longa fita de prata
Pois durante algum tempo se maravilha
O mundo em cascata.

As mais ousadas deixam-se ficar
Ao Sol com lama pelos joelhos
Depois de beijadas vão a chorar
Criar um príncipe em todos os espelhos.


André Consciência

Os deuses negros e imóveis choraram






O fantasma dormiu aos pés da cama esta noite
Eu não sonhei com a aurora que afasta o vento
Senti algo frio e húmido na cara, ergui os olhos.

As peles cobriram-na,
Um seio içou-se por sobre uma égua.


André Consciência 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A verdade é um momento do falso

Father, I'm Going to Kill You, Dominic McGill, 2005


O rio flutuante, o fugitivo antílope, a rugosa pedra no restolhar de folhas, a areia cinzenta do deserto que esconde o fogo cristalino, as cadeias inflamadas dos penhascos, sem nenhuma palavra, sem nenhuma palavra, sem nenhuma palavra. Tudo é absoluto. Eu não sei porque não o vi antes. Nas cidades, não o via. Nem mesmo quando sobrevoava no meu balão lento as enormes casas de banho de azulejos azuis, com estatuetas claras, várias, e conchas escuras em espiral, rodeadas de tribunais banhados a ouro onde dormem entre papel e tinta as sonolentas escribas. Não o via nas esquinas quadradas, não o via nas escribas serenas, nos edifícios, nem mesmo nas nuvens rosadas quando o Sol se punha. Será que a pedra é menos pedra quando a mulher a esculpe com os seus dedos? Se por um momento, neste roteiro, me despisse de toda a tecnologia, seria diferente desse verme marinho que o cachalote rói sem consciência? Não cairia por terra, para me arrastar, apanhada por toda a gravidade em simultâneo? Nos limites dos ramos, o gelo amarra-se. Uma janela voltada para o lago, e a brisa da Lua há de me visitar. É de noite, é de dia, e na cidade nunca é de noite, nunca é de dia. Faço desenhos quando o silêncio chega ao fundo, desenhos geométricos, dou-lhes nomes bárbaros, e grito-os com voz de menina, como se gritasse as árvores de estrondoso tamanho.

Uma janela voltará para o lago. As roupas dei-as ao fogo, cubro-me do calor e do frio. O meu corpo canta dentro dos leões marinhos, e esse é um horror que ninguém conhece na cidade. Mas é assim com todas as criaturas, não há outra razão para desenvolverem novas formas e se adaptarem ao meio ambiente, o corpo não acaba no corpo. Esse horror não se conhece na cidade, na cidade, o corpo acaba no primeiro limite: a mente, e não chega a existir.

Dou por mim a perguntar-me se penso mais com os pés nus do que com a cabeça, pois pisando o granulado conheço o texugo no subterrâneo, e a sua filosofia é simples e sábia: nenhuma. A minha filosofia não é tão simples, e nunca tão sábia: procurar o Senhor Lagarto, que virá a criar pela primeira vez as cidades feitas de lavatórios e tribunais, os balcões, a tecnologia, a terra gasta e moída, a álgebra, os oceanos, as trepadeiras, os leões africanos, a surda solidão após a tempestade, os ilimites, os seios parecidos com os calcanhares, os caminhos em linha e os sem traço, as coisas, e as minhas mãos, e procurar este Senhor Lagarto somente nas minhas mãos, feitas de desgaste e força, passado e passado.


Babalith

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Poesia Insustentável Auto-Sustentável


Sonho no terraço fora, o intermitente placar
Da Coca-Cola, faz nascer bagos de gás,
E se vislumbra o ruído dos aviões
Sem piloto, riscarem os sofás.

Um caminho frágil agarra a harpa
As linhas do metro agitam-se,
Genuínas e inalteráveis em mutuo amor,
A água deserta, a grande paz interior
Nada dorme, e o mundo
Suspenso, sem folhas ou silêncio.

A poesia toma o sabor dos ritmos
E cresce colossal nos insustentáveis mecanismos.
Nos prédios, as luzes não se apagam,
As luzes piscam sobre a sombra invernal
A cidade em extensão perpétua
Cobre de cinzento o Sol matinal, mais digo:
Quando o mundo acabou, estávamos,
Imagino pelo pisca-pisca vespertino,
Perto do Natal! As lixeiras confundem-se
Com a minha presença de volta nos trituradores
Ruidosos. E danço danço danço a passos
Luminosos, sob a pista dos nossos,
Ossos em lata.

Ah, que havia uma engrenagem, lá perto
Da estação fantasma, onde se ouvia um tal de Dante
Cantar coisas de miragem. Quando tenho febre,
Sei que tremo como as fábricas.

Há alarmes e carros, e toda eu tenho nisso
Veias e maquinismos que são todos
A linguagem.

Na aparelhagem ouvi uma canção
Que era de um século qualquer
E lá se dizia, que o coração
Tinha a forma de mulher.

Os olhos são as lanternas,
Os holofotes em cisternas
As cabeças rapadas dos postes de contenção
Não passam pessoas, vejo só
O seu clarão.


André Consciência

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Eva



Sol da Meia Noite, Valter Bártolo, 2005




As tonalidades negras começavam a tingir o manto celeste, e o erguer da noite anunciava-se com uma canção azulada – como o não-ser de Novalis é azulado:

Com a noite caiam os homens altos, de longos casacos, solitários e petrificados pelo hálito do gelo, os peitos a arder. Sentavam-se sobre secretárias de madeira velha e molhavam as penas, aberto o corpo, os olhos iniciavam o processo da chuva e os papiros tornavam-se livros. Órfãos, todos eles, desenhavam o rasto da Mãe. 

André Consciência

O Poeta Pintado


Retirantes, Cândido Portinari, 1944


Não sei dizer a solidão
Que atravessa a brandura
Das estátuas imóveis.

Enroscas-te nos precipícios
Do calor longínquo
Para imaginar as clareiras
Da lembrança

Leitor, no teu amor
Suspira
E lembra-te que estes dedos
São cinza.


André Consciência

A Virgem Gótica


Senza Titolo, Saturno Buttò, 1994


Afunda-se em todos
Os miradouros
A tocadora de alaúde.

O ventre
Saliente, ligeiramente,
E os seios
Empinados
Miram céus
Inacabados.

O vulto
De carne e sensação
Entrega-se
Com força
Às investidas
Da roda chamejante.


André Consciência

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Olhar Elísio



Olhar Elísio, Mia d'Lavernne


A fome pisa este chão de fogo,
E ergue-se, com garras de aço
A luminosidade incorpórea
Da esperança.

Se sonhou ao contrário
O menino cuja extremidade da morte
Iniciava o conforto da vida;
Se inscreveu sinais de angústia
Nas paredes mitológicas
Do medo dos fartos;

Guardou, para sempre,
O tesouro da manhã
Dentro da bruma em brasa
Da noite incandescente
Do olhar inviolável
Ofertado por mãos
Da sobrevivência que
Ao homem, ofereceu veemência.

Não chega dizer
A opressão que nunca o prostrou
O ruído dos homens que nunca
Nele falou.

De asas bravias se recebe
No solo olvidado
Da rua,
Elevado, mudo,
Desperto e parado.
Fita o mundo lavrado
E aguarda a idade,
Que a idade possui
Para que se decifre
A impoluta essência
No abandono do seu rosto.



André Consciência

domingo, 27 de abril de 2014

Apenas para anjos


For Angels Only, André Consciência 2009



Escorrem cinzas na estalagem do tempo,
deslizam espelhos desinteressadamente,
silenciosamente, e na sua sabedoria
caímos, como mancha vítrea
quebrada ao embate claro.

Sei o incêndio. Sei a pilhagem dos anjos,
os meus despojos na neve e ninguém
me segue.

A noite não é calcada, e sem se ferir,
lança a noite as estrelas para sacrifício,
os homens espalham-se e esfarelam-se.

Não existe nenhuma marca
que possas ver sobre mim,
mentiram-te, as escrituras,
a noite não pode ser marcada
nem medida, e é a noite que
rodeia a minha fronte.


André Consciência

sábado, 26 de abril de 2014

O contrário da estátua


The Sun is Also a Star, Awbarr, 2007



Ondula a figura de chifre e a seiva
Solta do estival augúrio
Derrama as alegrias simples
Dos carneiros descansados.

As crianças, despidas,
Miram a pedra
E esperam
A lamúria das águas.

André Consciência

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Cântico da Folhagem


The Bard, Thomas Jones, 1769


Fulgura
O luciferário no pavio das épocas
Que esmorece o pó e o vento
E eu suspiro o renascimento
Pelo sacrifício litúrgico
do bardo.
E sei a velha raiz do seu sangue
De morte persistente, na morte
Que aos corpos nossos anima
Persistir.

Torna-se
As crianças de braços verdejantes,
As nucas de cabelo solto,
As mulheres garridas
O encarnado das flores silvestres.

Toca-me
No trovão, nas vísceras,
No voo cantarolado das aves,
No ondular espectral da chama,
Na queda dos corpos agonizantes
Na visão do poeta
Despejado a vasos sanguíneos
Aos lábios da ética.

Depois, já druida, sepulta-se,
Sobre cada pedra de cultivo,
E lamenta, metade-vivo,
a espessura da noite,
Os espíritos ribeirinhos
Dos riachos
Que se fazem sensoriais fachos
E no mel e no hidromel
No azeite no sangue e no leite
No afecto aquático pelo vinho
E nas marés pelo sabor entorpecidas,
Nos promontórios e nos montes
Nas éguas belas e velozes
Que a ventania tempestiva
Fecunda,
O bramido afunda.

E rebenta o térreo
Salgueiro que a sombra
Hibernou, e devaneou
O Infernal Senhor do Céu
Que fez as águas termais morar,
Arremessou a fonte à moeda
da promessa ateada,
E a fertilidade solar
Acendeu refulgente
Do ardor familiar.


André Consciência

Noites de Verão

Cyberpunk Generation, Golpe de Estado, 1993


O assédio da tv funérea na cantina,
Assassinando a cada olhar o vigor da juventude,
O enfado de estar vivo, o fado e o alaúde.

A fanfarra – festejo lúgubre, o latido dos cães,
Nem noite, nem dia e o silêncio submerge
No vale.


André Consciência

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dedos Que Cantam


.
O futuro abre o olhar e cria para trás. Molhamo-nos. Sentir que nunca mais partiremos, e que nem a terra nem a lua são um lugar de verdade. Que o tempo não é uma passagem.
Depois, a tristeza das coisas que foram alegremente fundas e se esquecerão para sempre de deixar de ser. Iluminas-me no meu canto escuro, porque a noite chegou e o rio é a espessura da isolação que corre. Iluminas-me. O meu singelo cantar. A minha voz cheia de ti.

A menina de olhos verdes abre as pálpebras que tremem ao Sol. Ergue-se do verde como quem saltita, e segue o rio. O menino de olhos verdes é um pássaro que segue contra o rio, e rodopiam numa outra corrente que sobe, que desce e que sobe. A menina fecha os olhos e toca o sol com as pálpebras, porque param. Segue contra o rio e ele segue a favor do rio e rodopiam e o rio é um furacão fresco de alegria. Sentam-se palpitantes e desenham histórias com os dedos no ar, expressivos e dançantes. O verde namorisca o vento que salpica a água. Erguem-se de um salto e chove, não se tocam, senão com a alegria radiante dos corpos distantes. Fecham os olhos e abrem os olhos e o menino é passaro, é homem e ela dança e dança e a floresta ri-se com o rio.

Contra remoinhos e a fúria dos elementos navegam os cavalos sobre a terra de serpentes e feras, a brisa nos cabelos e o sorriso como uma fenda clara de céu.

Prescrutam as maravilhas do verde e do amarelo que borbulham no ar, com olhos laranja de fogo. Todas as serpentes de cabeça comida. O riso triunfal dos bárbaros na sapiência dos edificios de mármore onde os homens se reúnem para ler as colunas antigas.

O mundo cai e cai numa espiral, elas cavalgam a queda e voam, os cabelos contra a corrupção do tempo. Os estandartes orgulhosos erguidos contra as montanhas negras. O clarão do homem que se ergue ao Pôr do Sol como um Sol Nascente. As estrelas na ponta dos dedos que queimam e cintilam de riso e vitória, e as mulheres cospem as chamas e molham os campos.


Anrdé Consciência

terça-feira, 22 de abril de 2014

Faces Estendidas


Portrait of Marguerite, Countess of Blessington, Thomas Lawrence, 1819

Está escuro, e passos tardos de mulheres cálidas.
Amanheceu, e as estrelas secas sobre os semblantes
Estendidos da luz, sentaram-se, por cima do manto
De orvalho.

A porta de vidro baço
Transporta-te à luz de um néon.
A tua ausência é carne, de noite,
A morte tece trepadeiras
E encima os manequins
No jardim, na laje prata
Colorida de fogo negro.

A guitarra geme nas sombras
Enquanto pulsas, e eu não beijarei
O teu ombro.
O teu ligeiro pescoço, quebrado
O balido das cabras na erva
Silenciosa, límpida, e o ferimento
Espalha-se, no meu dorso.

Com a tua formusura
A perda exalta-se,
Acendendo vindimas
De água primordial
Os precipícios bebem a tua
Estranheza, no lombo
Da colina.

Esta mulher não começa, enquanto
O tempo acaba nunca,
Jorrarei dias, os meus dedos
E os pássaros calam-se.

Nela se congelam
As cidades de seios brancos
Os chapéus de sol.

... Está quente, e ser-se erva,
Parece-se muito
Com o arco do teu ombro
Beijado.


André Consciência

Vesta ao espelho


Satã Observando o Amor de Adão e Eva, William Blake

Nas mãos feridas que aguam o Mundo, vivem templos de bárbara
glória,
Intempérie que se precipita, gentilmente, nos riachos das clareiras
estivais,
E escala, intrepidamente, a paz esverdeada do corpo do sono e
depois,
O rubor do leitoso e último Pôr-do-Sol: a angústia do Verão
A nascer morto com lírios de fogo.
 
Aí, o céu ejacula carne lúcida nas fendas dos ventos
Para esculpir o teu corpo de serpente largada
Com a realeza de quem ri a dormir, e segreda
Que o Outono vale nada, que as cores ao cair
Se apagam de Inverno.
 
A neve rodopia e descendem crianças loiras, para correr contigo
Em campos de milho e de trigo, todas as folhas
Caídas, e as estrelas paralisam o céu:
 
Corvo na cruz negra das palavras, nas linhas de cevada,
Nos espantalhos molhados, e aquieta-se, branca, a pedra trémula.
   


André Consciência

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Sacrifício de Mitra


Mitra e o Touro, do mithraeum em Marino, séc. III


O touro fita as pastagens e cresce, perante a sua atenção, o verde,
O negro rasga-se, e a morte suspende-se.
Sabendo-o, as nuvens atropelam-se em galope, sedentas de terra
E miríades de gotas se precipitam contra o efémero,
Tudo se torna sombra móvel d’aquele que luze,
A tarde cura a manhã, a manhã cura a noite, e redime
A noite a tarde, na precipitação renovada da terra, da planta,
Da água dos poderes.

O horizonte rouba o corpo desse touro, como Tarquínio e Lucrécia
E dos seus grilhões levanta os mares, os rios aéreos, o veloz cavalo
Do Sol cujos cascos pisam o Reino e doam calor, as nascentes
Muitas, que, ricas em leite, alimentam as crianças; levanta a Lua,
Que guarda do ardor cândido a semente do touro, e as
Estrelas que no corpo da besta plantaram as águas.

A dor afasta-se, a febre adormece, o mal evapora-se, a infecção,
E a carcaça do touro decompõe-se.


André Consciência

O Zelator & O Sol

O Grito, Edvard Munch, 1893

Contemplei a vida nas mulheres, nas estatuetas de bronze, nos quadros negros e vermelhos. Saboreei a história dos livros e a teoria dos que se calaram para sempre nas suas páginas. Mas as mulheres caíram, como muralhas, a estátua qual granizo, e cai o negro vermelho como o negro branco da neve, a história desfaz-se um pincel contra a pele. Não vejo nada. O teu Rosto é uma permutação.

André Consciência

sábado, 19 de abril de 2014

O Fim da Terra



Huuvola, Peter Murphy, 1995


Derrotado, nas areias húmidas soprado,
O corpo do astro frio, branco como espelho
Incendeia as praias, um farol náufrago
Por qual montes sangram prados.

Dezembro inóspito, quando as cinzas
Desatadas dos nossos tornozelos
Conheceram os dilúvios estrangeiros
De um povo almiscarado.

A barcaça outonal, construída a folhas soltas
É comida pelas rosas que no oceano
Ardem.

A idade foge-lhes dos pulsos,
Pálida imagem que existe
No côncavo da vaga.


André Consciência

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Mar

Water Nymphs - Hans Zatzka 

As memórias que oferta
A voz infante de poetisa
No canto a vaga certa
E acerta, na saudade –
Melancólica Artemisa.

Da bruma nas profundezas
As vozes e harpas
Que fazes soar
Parecem-se ao bramido
Furor da terra por mar.

E se me sento na sombra
Fresca e contemplo a Lua
Lesta, lembro-me dos cânticos
Que surgiam nesse ribombar
Da errância contra o lar,
Em que abismos perfilavam
E de toda a pedra o coração amavam.


André Consciência

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Lua de Outono


Fingal Heads Dawn, David de Groot, s/d


O Tejo sorve o azul e mancha Lisboa de céus. O musgo atravessa a pedra dos castelos onde o Sol não o faz. O salgueiro é dotado de uma tamanhosa barba verde e exibe-a às planuras. As baías cavalgam as pétalas soltas das flores, acenando aos montes. O paraíso verte gotas para os vales e anéis para a Serra. A Terra acorda, estremece e as folhas caem. Ao longe chega o monge, em busca de sombras, imobiliza-se e contempla a Lua adormecer no rio. A música dos passos, o murmurinho do cais. A névoa fica muito quieta e observa o monge olvidar-se na sombra. As planícies gritam o silêncio das árvores. As filhas de Cariocecus no orvalho, pousam a correria e cessam os seus arcos de luar. Empalidecem e voltam o rosto, o rio esconde a beleza e o bosque a nudez. Película fina de treva salpicada por uma chuva de estrelas. O monge e o rio fitam-se como dois corpos de neblina, e fundem-se como dois espíritos na espuma. Uma onda de sonhos azuis mergulha as trepadeiras. Afunda-se o astro frio. A bruma da terra é mais escura, noiva do Tejo. Emudecidas, as rochas ocultam os nossos clamores. O fogo queima e a única luz é cinza. O monge solta um murmúrio com os senhores da tempestade, um leve riso nas câmaras do clarão. Embalado nos ventos, o rio paira sobre uma nuvem. O monge senta-se dependurado na penumbra, cego, emitindo luar.

Ara dos Anciãos



 
Boys sit at the Chalice Well in Galstonbury, Austin Cline, s/d



Vazia, a vida que largo
Sobre a ossada, da sabedoria
E afunda no Navia,
Para dentro de dentro
De todos os rios
Os meus olhos eu deixo
À Taça.

André Consciência

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Luva de Chuva



We Are the Strange, M. dot Strange, 2007

Não há lugar para mim, onde o azul me cerca
De dia pintado, de noite lembrado, e o azul
Me cega, no teu grito cantado, em dança
Roubado, ao Deus que o Inverno enterra.

E os meus dedos azuis (pétalas)
Caiem sobre todos os palpitantes amantes,
Que sorriem, distantes, num sonho de ti,
Em que dançava cego envolta do calor, e queimava-me,
Em peles estrangeiras a neve lembrar,
De como já o corpo foi alma. Dentro do meu peito,
Tudo canta, por não haver leito:

Eis que é espada de coveiro, pá de mago,
A voz que vê, no corvo ofuscado,
Chuva que cai, queda, e escuta
Desfeita, quieta, as aves soltas,
Memórias de terra.


André Consciência

Descobrimentos Verticais


African Fashion Series, Hans Silvester, 2008


Ice Dance, Danny Elfman, 1990

A folhagem que é granizo encontra-se perdida
Nos vidros do telhado, e solta-se a ferida
Desse espelho contemplado – todos os dias
Que a Noite sonhou – esvoaçando
O meu desejo esmagado.

Nada cabe em nada, os flocos de neve
Doridos nos mamilos do Atlântico,
A sandália de Hermes perdida, no deserto
Titânico.

Tudo em tudo transborda,
É impossível a persistência, de um só
Minúsculo homem, no vendaval
Da beleza, licor animal; não
Eu, por minha vez, tornei-me pétala
Que desliza no desfiladeiro do vento
Para visitar os palácios nos casais
Que a forma, em pino dançada, não contém.


Na ausência dos teus lábios, juntou-se
Um exército de sábios, afogados, derramados,
Que nos ombros de elefantes procuram.
A savana uma superfície de geada, e a tua...
Majestosa liberdade recaiu sobre a nossa
Desesperada idade. O enregelado
Retomará a forma do sangue, os teus lábios
Conhecerão o meu manto informe.

Não serei homem,
Apenas canto,
E acordarei quem dorme.


André Consciência

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Das Aves Azuis





O Aterro em 1881; No Cais do Tejo, Alfredo Keil


Chove, as paredes de água deslizam
Luminosidade sobre as cidades, com rostos
De mulheres cansadas, e homens
Embrutecendo o silêncio.


O silêncio principia com a fluidez
Dos momentos parados desta noite que não passa
E sobre a qual os dias são como nuvens
No céu estável que me lembra
Primeiro os fantasmas dos teus olhos
Depois a eternidade do peito ondulante
Nas noites em que principiava
Como um desponte que lá fora o mundo pinta.

As palavras de um poema, este, passam-nos
Ao lado, e assim o grilo, sem se reparar,
Faz parte da tranquilidade escurecida
Dos nossos campos inabitados, que as crianças
E os adultos que passeiam crianças
Pisam, numa manifestação de dedos, nossos,
Entrelaçados para além das cores que compõem
A canção colossal da civilização.

E deixa, os amores morrerem, os pensamentos
Envelhecerem.
Deixa, os temores correrem, os rancores
Esmorecerem.
Nada temos com este tédio
Nem o rio com a garça.

A luz e a sombra são tão duas demoras,
E as demoras são todas horas, nossas,
De assombro com que as olhamos se
Nos olhamos.


André Consciência

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Plaia Hermosa


Rusalki - Konstantin Makovsky


A erva arde de noite, e o silêncio comove-se.
De mim até ao céu uma sombra invertida alonga-se.
O vazio sussurra as poesias da carne, um momento cedo
E as estações adormecem, uma a uma, sobre o Atlântico.

Escuta-se então na penumbra um clarão,
O sibilar constante das correntes
Com a pureza do negrume apaga
Os primeiros pesadelos da neblina
E eu ergui-me, para encontrar as ninfas.

Um barco, do qual fiz minha vida, à deriva aguarda
Pendendo a sua rede de sede e água salgada. Uma a uma,
Maternas, palavras q’ são mulheres nuas, de corpos vivos
Içadas. A árvore revestida de uma pira, e o meu coração guarda
No fundo gelo do fundo, a luz no mundo.


André Consciência

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre O Vento


Saudade - Sara Conde


Desta vez, a simplicidade
Da noite em branco, a história
De vida, o haver tudo passado
A viola miudinha e uma claridade
De casas em cinza.


André Consciência

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Traje de Romaria



Azulejo alusivo às lanchas e catraias, Póvoa do Varzim


O mar também não conhece a imobilidade, e por isso transmite perpétuamente esta benéfica quietude. Normalmente a minha mulher sabia as histórias, os conflitos e as amizades das vagas que, por me rodearem, rodeiam a doca. Normalmente durante a hora de almoço, a minha mulher, sentada numa cadeira de tábuas, ouvia o mar falar-lhe de raparigas. Das suas humildades, dos seus egoísmos, dos seus cepticismos, das suas coragens, das suas expansividades. Ela dava-lhes nomes como quem baptizava futuras filhas.

Aos domingos, parece ser noite de manhã, e por isso a noite demora mais a chegar. A ausência da minha esposa entrou na doca. É o princípio do dia de trabalho. Senta-se na sua cadeira que algum calafete que não eu improvisou com despojos de uma Lancha Poveira do Alto. A ausência da minha esposa pousa a cabeça entre as mãos e os meus movimentos tornam-se mais rápidos. Quase no fim do Verão, a jovem que ali passava fechava os olhos e era inocente. No fim do verão ela era sempre inocente, e vivia e estava completamente viva. O seu coração estava separado dela, por isso, o seu coração era uma doca que havia sempre e em todo o lugar. Mas era meio-dia de segunda-feira, em Outubro, ela não vestia na cabeça flores douradas nem no peito moedas, quando ele chegou da Galiza. Às vezes, no fim das manhãs o marujo esperado vinha e abanava o seu listrão de ouro. Era o sombreado de uma tarde de Outono e eles sorriam, analisavam os objectos que ele fazia regressar do além-mar.

A minha mulher deixou a casa desarrumada, não a limpou no começo desse dia nem na duração dos seguintes, e fugiu para nos casarmos. Saiu com uma única mala na mão, com o olhar cheio de esperança, acreditava que nunca mais me ia perder. Durámos essa noite abraçados, e o dia que antecedeu essa noite, e esquecemos-nos até de casar. Aconteceu no crepúsculo do dia seguinte. Eu habituara-me a presenciar o pó que Deus agarra às coisas, como sinal da sua mão sobrenatural, e o meu corpo ia-se tornando nesse aperto. Na primeira manhã, já ela, com a sua camisa de algodão branco oculta no pano de lã vermelho, lenço estampado na cabeça e chinelos de bico arrebitado, limpava as prateleiras em que ninguém tocava desde que a minha mãe morreu. As panelas voltaram a ter a cor das panelas. A madeira voltou a ser madeira. Os cantos das divisões ganharam claridade, a loiça brilhou. Lavou e cozeu a minha roupa. Raspou o chão e desapareceu com a humidade das paredes. A minha mão deixou de querer escrever sonetos. Os meus olhos de procurar os pergaminhos de mistérios antigos, o meu pensamento de se preocupar com o sentido (que é uma preocupação dos homens sem sentido), nos ditames filosóficos, que apenas são facas que afiamos em tempos de tormenta. Levei a toalha às mãos e as mãos levei-as ao rosto. Jantámos, e decidi ser calafate. Ela podia ver-me todos os dias a ser calafate. Ela podia estar comigo, se eu fosse calafate ou pintasse as siglas nos navios. A minha mulher despe um vestido azul e pensa vagamente na eternidade. Mesmo depois desse dia, o vestido continuará.

A forma de me ligar a esse outro além-mar é escrever uma sigla na minha roupa, as únicas iniciais que gostaria de ver em todas as embarcações, fosse eu nelas ou não, e que são as iniciais da minha falecida. Sou feliz assim.


André Consciência

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Deslizamento de terras


Hercules - Júlio Cezar Ramos Lobo

Os ermos soluçam silêncios íngremes,
Os bosques esqueceram o nome dos deuses,
Assim, os deuses despertaram (n)os bosques.

Nos campos, o Sol quieto, mais, até, nos campos que no céu.
Porque os campos estão quentes.
As filhas avançam, sentadas, nesses tronos
De calor. Impeço a minha imaginação de ser minha.
Pendem arcos com elas, temperados com flechas de Abril.

Do Oriente rios de negritude atingem
Como uma brisa refrescante, os cabelos das Noivas.
Os lobos confiam nas neblinas.

De dia. As noivas brandem lanças: ou seja, há pedras
E é só.

Ó Portugal, por que terras te escondes? Choves por todo o hemisfério.
Chove aqui e eu, como uma nuvem na colina, e um amante nos abraços
Da Eterna Juventude, desposaria
Os rostos azuis dos oceanos, e voltaria.


André Consciência

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Embondeiro Que Sonhava Pássaros


Detalhe de Elefante - Jeanne Marie
Os reis são adorados pelos povos, porque crêem que vieram do céu, e falam-lhes sempre com grande acatamento, à distância e de joelhos. Muitos destes reis, para maior cerimonial, nunca se deixam ver quando comem, para não modificarem a opinião que os povos deles têm, de que vivem sem tomar alimento. Adoram o Sol e crêem que as almas são imortais, e que depois da morte vão habitar junto ao Sol. No reino de Benim têm um costume mais antigo do que entre os outros, o qual tem sido observado até ao presente: quando morre o rei, todo o povo se junta num grande campo, no meio do qual abrem um poço muito fundo, ficando largo em baixo e vindo a apertar para a boca. Dentro deste poço deitam o corpo do rei morto, e apresentando-se todos os seus amigos e servidores, aqueles que se julga terem-lhe sido mais caros e favoritos (no que não há pequena contenda entre eles, desejando todos esta honra), voluntariamente descem a fazer-lhe companhia; e logo que estão em baixo, põe-se uma grande lage sobre a boca do poço, e o povo não sai dali, nem de dia nem de noite. No segundo dia vão alguns deputados descobrir a pedra, e perguntam aos de baixo se algum deles já foi servir o rei, e respondem-lhe que não. No terceiro dia fazem a mesma pergunta, e algumas vezes lhes respondem que fulano (dizendo-lhe o nome) foi o primeiro a partir, e fulano o segundo, porque é reputado coisa de grande louvor ter sido o primeiro. E de tudo isto, o povo que está à roda fica falando com suma admiração, considerando-o bem-aventurado e feliz. E ao fim de três ou quatro dias morrem todos aqueles desgraçados. Os que estão em cima, ao pressentirem isto, e vendo que ninguém lhes responde, informam imediatamente o rei sucessor, o qual manda fazer um grande fogo sobre o dito poço, onde assa muitos animais, que dá a comer ao povo. E com esta cerimónia entende ser verdadeiramente rei, e ter jurado governar bem.
Autor Desconhecido (Navegação de Lisboa à Ilha de São Tomé Escrita por um Piloto Português)


Crescer em leveza, eis ao que se propunha
O rei asceta, que sobre o reino compunha.
Da raça do céu, desceu em cidades papagaio
De papel, tocando a terra então tendas, flores
E mel.

E as pedras, pegadas de Lua,
Dos prédios cansados,
Faria rendilhados.

E os rios, descansos solares,
Do cal das paredes,
Transparentes nenúfares.

E a árvore, estrela em repouso,
Das casas empilhadas,
Folhas ceifadas.

E nem cresceu o reino para dentro,
Para ter de crescer para fora,
Cresceu em leveza, e será a Aurora.


André Consciência

terça-feira, 1 de abril de 2014

Milagre das Rosas


Rainha Santa Isabel - Bezeguinho

Em pleno Janeiro, vi, a boa Rainha Isabel,
Dar a comer aos anjos, rosas de sangue.

E o peito
Abre olhos de Ouro.
E a dúvida
Ao amor, com a certeza adora.

Ao reinar namora, o lume delicado
Nas meninas juízes, os olhos
Que são flores aos molhos.


André Consciência

segunda-feira, 31 de março de 2014

Ossian Cego


Ossian IX - Calum Colvin


Estou nu, despido pelos deuses, e guardo o nome no bolso.
Com a pedra só, com o vazio verde. Com a cabeça cheia de musgo,
Conto todas as estrelas que se apagaram
No céu, as montanhas tornam-se quedas de água, e libertam-se
Musas que se haviam afogado.

Sob a pressão do néon negro, leio um jornal de páginas em branco
E as árvores não desistiram de furar o solo. É aqui que tu moras,
Com as tuas conchas sonoras? Com barcos de guerra que são memórias?
Com o deleite das canções sem som? Com o farol apagado que guia.

O céu limpo troveja sem eco e todo este tempo vos guardei
Uma grande esfera quadrada, mantas brancas que, estendidas
Ao vento, soam os chifres de reis que nunca nasceram, e que acordam,
Os antílopes que vivem dentro da rocha, os bosques em forma de flecha,
Os meus olhos vermelhos de cansaço, o fogo no ventre da minha gravidez
De ser uma lança qualquer que um herói pregou ao chão.


André Consciência