sexta-feira, 4 de abril de 2014

Traje de Romaria



Azulejo alusivo às lanchas e catraias, Póvoa do Varzim


O mar também não conhece a imobilidade, e por isso transmite perpétuamente esta benéfica quietude. Normalmente a minha mulher sabia as histórias, os conflitos e as amizades das vagas que, por me rodearem, rodeiam a doca. Normalmente durante a hora de almoço, a minha mulher, sentada numa cadeira de tábuas, ouvia o mar falar-lhe de raparigas. Das suas humildades, dos seus egoísmos, dos seus cepticismos, das suas coragens, das suas expansividades. Ela dava-lhes nomes como quem baptizava futuras filhas.

Aos domingos, parece ser noite de manhã, e por isso a noite demora mais a chegar. A ausência da minha esposa entrou na doca. É o princípio do dia de trabalho. Senta-se na sua cadeira que algum calafete que não eu improvisou com despojos de uma Lancha Poveira do Alto. A ausência da minha esposa pousa a cabeça entre as mãos e os meus movimentos tornam-se mais rápidos. Quase no fim do Verão, a jovem que ali passava fechava os olhos e era inocente. No fim do verão ela era sempre inocente, e vivia e estava completamente viva. O seu coração estava separado dela, por isso, o seu coração era uma doca que havia sempre e em todo o lugar. Mas era meio-dia de segunda-feira, em Outubro, ela não vestia na cabeça flores douradas nem no peito moedas, quando ele chegou da Galiza. Às vezes, no fim das manhãs o marujo esperado vinha e abanava o seu listrão de ouro. Era o sombreado de uma tarde de Outono e eles sorriam, analisavam os objectos que ele fazia regressar do além-mar.

A minha mulher deixou a casa desarrumada, não a limpou no começo desse dia nem na duração dos seguintes, e fugiu para nos casarmos. Saiu com uma única mala na mão, com o olhar cheio de esperança, acreditava que nunca mais me ia perder. Durámos essa noite abraçados, e o dia que antecedeu essa noite, e esquecemos-nos até de casar. Aconteceu no crepúsculo do dia seguinte. Eu habituara-me a presenciar o pó que Deus agarra às coisas, como sinal da sua mão sobrenatural, e o meu corpo ia-se tornando nesse aperto. Na primeira manhã, já ela, com a sua camisa de algodão branco oculta no pano de lã vermelho, lenço estampado na cabeça e chinelos de bico arrebitado, limpava as prateleiras em que ninguém tocava desde que a minha mãe morreu. As panelas voltaram a ter a cor das panelas. A madeira voltou a ser madeira. Os cantos das divisões ganharam claridade, a loiça brilhou. Lavou e cozeu a minha roupa. Raspou o chão e desapareceu com a humidade das paredes. A minha mão deixou de querer escrever sonetos. Os meus olhos de procurar os pergaminhos de mistérios antigos, o meu pensamento de se preocupar com o sentido (que é uma preocupação dos homens sem sentido), nos ditames filosóficos, que apenas são facas que afiamos em tempos de tormenta. Levei a toalha às mãos e as mãos levei-as ao rosto. Jantámos, e decidi ser calafate. Ela podia ver-me todos os dias a ser calafate. Ela podia estar comigo, se eu fosse calafate ou pintasse as siglas nos navios. A minha mulher despe um vestido azul e pensa vagamente na eternidade. Mesmo depois desse dia, o vestido continuará.

A forma de me ligar a esse outro além-mar é escrever uma sigla na minha roupa, as únicas iniciais que gostaria de ver em todas as embarcações, fosse eu nelas ou não, e que são as iniciais da minha falecida. Sou feliz assim.


André Consciência

Sem comentários:

Enviar um comentário