quarta-feira, 30 de abril de 2014

Eva



Sol da Meia Noite, Valter Bártolo, 2005




As tonalidades negras começavam a tingir o manto celeste, e o erguer da noite anunciava-se com uma canção azulada – como o não-ser de Novalis é azulado:

Com a noite caiam os homens altos, de longos casacos, solitários e petrificados pelo hálito do gelo, os peitos a arder. Sentavam-se sobre secretárias de madeira velha e molhavam as penas, aberto o corpo, os olhos iniciavam o processo da chuva e os papiros tornavam-se livros. Órfãos, todos eles, desenhavam o rasto da Mãe. 

André Consciência

O Poeta Pintado


Retirantes, Cândido Portinari, 1944


Não sei dizer a solidão
Que atravessa a brandura
Das estátuas imóveis.

Enroscas-te nos precipícios
Do calor longínquo
Para imaginar as clareiras
Da lembrança

Leitor, no teu amor
Suspira
E lembra-te que estes dedos
São cinza.


André Consciência

A Virgem Gótica


Senza Titolo, Saturno Buttò, 1994


Afunda-se em todos
Os miradouros
A tocadora de alaúde.

O ventre
Saliente, ligeiramente,
E os seios
Empinados
Miram céus
Inacabados.

O vulto
De carne e sensação
Entrega-se
Com força
Às investidas
Da roda chamejante.


André Consciência

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Olhar Elísio



Olhar Elísio, Mia d'Lavernne


A fome pisa este chão de fogo,
E ergue-se, com garras de aço
A luminosidade incorpórea
Da esperança.

Se sonhou ao contrário
O menino cuja extremidade da morte
Iniciava o conforto da vida;
Se inscreveu sinais de angústia
Nas paredes mitológicas
Do medo dos fartos;

Guardou, para sempre,
O tesouro da manhã
Dentro da bruma em brasa
Da noite incandescente
Do olhar inviolável
Ofertado por mãos
Da sobrevivência que
Ao homem, ofereceu veemência.

Não chega dizer
A opressão que nunca o prostrou
O ruído dos homens que nunca
Nele falou.

De asas bravias se recebe
No solo olvidado
Da rua,
Elevado, mudo,
Desperto e parado.
Fita o mundo lavrado
E aguarda a idade,
Que a idade possui
Para que se decifre
A impoluta essência
No abandono do seu rosto.



André Consciência

domingo, 27 de abril de 2014

Apenas para anjos


For Angels Only, André Consciência 2009



Escorrem cinzas na estalagem do tempo,
deslizam espelhos desinteressadamente,
silenciosamente, e na sua sabedoria
caímos, como mancha vítrea
quebrada ao embate claro.

Sei o incêndio. Sei a pilhagem dos anjos,
os meus despojos na neve e ninguém
me segue.

A noite não é calcada, e sem se ferir,
lança a noite as estrelas para sacrifício,
os homens espalham-se e esfarelam-se.

Não existe nenhuma marca
que possas ver sobre mim,
mentiram-te, as escrituras,
a noite não pode ser marcada
nem medida, e é a noite que
rodeia a minha fronte.


André Consciência

sábado, 26 de abril de 2014

O contrário da estátua


The Sun is Also a Star, Awbarr, 2007



Ondula a figura de chifre e a seiva
Solta do estival augúrio
Derrama as alegrias simples
Dos carneiros descansados.

As crianças, despidas,
Miram a pedra
E esperam
A lamúria das águas.

André Consciência

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Cântico da Folhagem


The Bard, Thomas Jones, 1769


Fulgura
O luciferário no pavio das épocas
Que esmorece o pó e o vento
E eu suspiro o renascimento
Pelo sacrifício litúrgico
do bardo.
E sei a velha raiz do seu sangue
De morte persistente, na morte
Que aos corpos nossos anima
Persistir.

Torna-se
As crianças de braços verdejantes,
As nucas de cabelo solto,
As mulheres garridas
O encarnado das flores silvestres.

Toca-me
No trovão, nas vísceras,
No voo cantarolado das aves,
No ondular espectral da chama,
Na queda dos corpos agonizantes
Na visão do poeta
Despejado a vasos sanguíneos
Aos lábios da ética.

Depois, já druida, sepulta-se,
Sobre cada pedra de cultivo,
E lamenta, metade-vivo,
a espessura da noite,
Os espíritos ribeirinhos
Dos riachos
Que se fazem sensoriais fachos
E no mel e no hidromel
No azeite no sangue e no leite
No afecto aquático pelo vinho
E nas marés pelo sabor entorpecidas,
Nos promontórios e nos montes
Nas éguas belas e velozes
Que a ventania tempestiva
Fecunda,
O bramido afunda.

E rebenta o térreo
Salgueiro que a sombra
Hibernou, e devaneou
O Infernal Senhor do Céu
Que fez as águas termais morar,
Arremessou a fonte à moeda
da promessa ateada,
E a fertilidade solar
Acendeu refulgente
Do ardor familiar.


André Consciência

Noites de Verão

Cyberpunk Generation, Golpe de Estado, 1993


O assédio da tv funérea na cantina,
Assassinando a cada olhar o vigor da juventude,
O enfado de estar vivo, o fado e o alaúde.

A fanfarra – festejo lúgubre, o latido dos cães,
Nem noite, nem dia e o silêncio submerge
No vale.


André Consciência

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dedos Que Cantam


.
O futuro abre o olhar e cria para trás. Molhamo-nos. Sentir que nunca mais partiremos, e que nem a terra nem a lua são um lugar de verdade. Que o tempo não é uma passagem.
Depois, a tristeza das coisas que foram alegremente fundas e se esquecerão para sempre de deixar de ser. Iluminas-me no meu canto escuro, porque a noite chegou e o rio é a espessura da isolação que corre. Iluminas-me. O meu singelo cantar. A minha voz cheia de ti.

A menina de olhos verdes abre as pálpebras que tremem ao Sol. Ergue-se do verde como quem saltita, e segue o rio. O menino de olhos verdes é um pássaro que segue contra o rio, e rodopiam numa outra corrente que sobe, que desce e que sobe. A menina fecha os olhos e toca o sol com as pálpebras, porque param. Segue contra o rio e ele segue a favor do rio e rodopiam e o rio é um furacão fresco de alegria. Sentam-se palpitantes e desenham histórias com os dedos no ar, expressivos e dançantes. O verde namorisca o vento que salpica a água. Erguem-se de um salto e chove, não se tocam, senão com a alegria radiante dos corpos distantes. Fecham os olhos e abrem os olhos e o menino é passaro, é homem e ela dança e dança e a floresta ri-se com o rio.

Contra remoinhos e a fúria dos elementos navegam os cavalos sobre a terra de serpentes e feras, a brisa nos cabelos e o sorriso como uma fenda clara de céu.

Prescrutam as maravilhas do verde e do amarelo que borbulham no ar, com olhos laranja de fogo. Todas as serpentes de cabeça comida. O riso triunfal dos bárbaros na sapiência dos edificios de mármore onde os homens se reúnem para ler as colunas antigas.

O mundo cai e cai numa espiral, elas cavalgam a queda e voam, os cabelos contra a corrupção do tempo. Os estandartes orgulhosos erguidos contra as montanhas negras. O clarão do homem que se ergue ao Pôr do Sol como um Sol Nascente. As estrelas na ponta dos dedos que queimam e cintilam de riso e vitória, e as mulheres cospem as chamas e molham os campos.


Anrdé Consciência

terça-feira, 22 de abril de 2014

Faces Estendidas


Portrait of Marguerite, Countess of Blessington, Thomas Lawrence, 1819

Está escuro, e passos tardos de mulheres cálidas.
Amanheceu, e as estrelas secas sobre os semblantes
Estendidos da luz, sentaram-se, por cima do manto
De orvalho.

A porta de vidro baço
Transporta-te à luz de um néon.
A tua ausência é carne, de noite,
A morte tece trepadeiras
E encima os manequins
No jardim, na laje prata
Colorida de fogo negro.

A guitarra geme nas sombras
Enquanto pulsas, e eu não beijarei
O teu ombro.
O teu ligeiro pescoço, quebrado
O balido das cabras na erva
Silenciosa, límpida, e o ferimento
Espalha-se, no meu dorso.

Com a tua formusura
A perda exalta-se,
Acendendo vindimas
De água primordial
Os precipícios bebem a tua
Estranheza, no lombo
Da colina.

Esta mulher não começa, enquanto
O tempo acaba nunca,
Jorrarei dias, os meus dedos
E os pássaros calam-se.

Nela se congelam
As cidades de seios brancos
Os chapéus de sol.

... Está quente, e ser-se erva,
Parece-se muito
Com o arco do teu ombro
Beijado.


André Consciência

Vesta ao espelho


Satã Observando o Amor de Adão e Eva, William Blake

Nas mãos feridas que aguam o Mundo, vivem templos de bárbara
glória,
Intempérie que se precipita, gentilmente, nos riachos das clareiras
estivais,
E escala, intrepidamente, a paz esverdeada do corpo do sono e
depois,
O rubor do leitoso e último Pôr-do-Sol: a angústia do Verão
A nascer morto com lírios de fogo.
 
Aí, o céu ejacula carne lúcida nas fendas dos ventos
Para esculpir o teu corpo de serpente largada
Com a realeza de quem ri a dormir, e segreda
Que o Outono vale nada, que as cores ao cair
Se apagam de Inverno.
 
A neve rodopia e descendem crianças loiras, para correr contigo
Em campos de milho e de trigo, todas as folhas
Caídas, e as estrelas paralisam o céu:
 
Corvo na cruz negra das palavras, nas linhas de cevada,
Nos espantalhos molhados, e aquieta-se, branca, a pedra trémula.
   


André Consciência

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Sacrifício de Mitra


Mitra e o Touro, do mithraeum em Marino, séc. III


O touro fita as pastagens e cresce, perante a sua atenção, o verde,
O negro rasga-se, e a morte suspende-se.
Sabendo-o, as nuvens atropelam-se em galope, sedentas de terra
E miríades de gotas se precipitam contra o efémero,
Tudo se torna sombra móvel d’aquele que luze,
A tarde cura a manhã, a manhã cura a noite, e redime
A noite a tarde, na precipitação renovada da terra, da planta,
Da água dos poderes.

O horizonte rouba o corpo desse touro, como Tarquínio e Lucrécia
E dos seus grilhões levanta os mares, os rios aéreos, o veloz cavalo
Do Sol cujos cascos pisam o Reino e doam calor, as nascentes
Muitas, que, ricas em leite, alimentam as crianças; levanta a Lua,
Que guarda do ardor cândido a semente do touro, e as
Estrelas que no corpo da besta plantaram as águas.

A dor afasta-se, a febre adormece, o mal evapora-se, a infecção,
E a carcaça do touro decompõe-se.


André Consciência

O Zelator & O Sol

O Grito, Edvard Munch, 1893

Contemplei a vida nas mulheres, nas estatuetas de bronze, nos quadros negros e vermelhos. Saboreei a história dos livros e a teoria dos que se calaram para sempre nas suas páginas. Mas as mulheres caíram, como muralhas, a estátua qual granizo, e cai o negro vermelho como o negro branco da neve, a história desfaz-se um pincel contra a pele. Não vejo nada. O teu Rosto é uma permutação.

André Consciência

sábado, 19 de abril de 2014

O Fim da Terra



Huuvola, Peter Murphy, 1995


Derrotado, nas areias húmidas soprado,
O corpo do astro frio, branco como espelho
Incendeia as praias, um farol náufrago
Por qual montes sangram prados.

Dezembro inóspito, quando as cinzas
Desatadas dos nossos tornozelos
Conheceram os dilúvios estrangeiros
De um povo almiscarado.

A barcaça outonal, construída a folhas soltas
É comida pelas rosas que no oceano
Ardem.

A idade foge-lhes dos pulsos,
Pálida imagem que existe
No côncavo da vaga.


André Consciência

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Mar

Water Nymphs - Hans Zatzka 

As memórias que oferta
A voz infante de poetisa
No canto a vaga certa
E acerta, na saudade –
Melancólica Artemisa.

Da bruma nas profundezas
As vozes e harpas
Que fazes soar
Parecem-se ao bramido
Furor da terra por mar.

E se me sento na sombra
Fresca e contemplo a Lua
Lesta, lembro-me dos cânticos
Que surgiam nesse ribombar
Da errância contra o lar,
Em que abismos perfilavam
E de toda a pedra o coração amavam.


André Consciência

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Lua de Outono


Fingal Heads Dawn, David de Groot, s/d


O Tejo sorve o azul e mancha Lisboa de céus. O musgo atravessa a pedra dos castelos onde o Sol não o faz. O salgueiro é dotado de uma tamanhosa barba verde e exibe-a às planuras. As baías cavalgam as pétalas soltas das flores, acenando aos montes. O paraíso verte gotas para os vales e anéis para a Serra. A Terra acorda, estremece e as folhas caem. Ao longe chega o monge, em busca de sombras, imobiliza-se e contempla a Lua adormecer no rio. A música dos passos, o murmurinho do cais. A névoa fica muito quieta e observa o monge olvidar-se na sombra. As planícies gritam o silêncio das árvores. As filhas de Cariocecus no orvalho, pousam a correria e cessam os seus arcos de luar. Empalidecem e voltam o rosto, o rio esconde a beleza e o bosque a nudez. Película fina de treva salpicada por uma chuva de estrelas. O monge e o rio fitam-se como dois corpos de neblina, e fundem-se como dois espíritos na espuma. Uma onda de sonhos azuis mergulha as trepadeiras. Afunda-se o astro frio. A bruma da terra é mais escura, noiva do Tejo. Emudecidas, as rochas ocultam os nossos clamores. O fogo queima e a única luz é cinza. O monge solta um murmúrio com os senhores da tempestade, um leve riso nas câmaras do clarão. Embalado nos ventos, o rio paira sobre uma nuvem. O monge senta-se dependurado na penumbra, cego, emitindo luar.

Ara dos Anciãos



 
Boys sit at the Chalice Well in Galstonbury, Austin Cline, s/d



Vazia, a vida que largo
Sobre a ossada, da sabedoria
E afunda no Navia,
Para dentro de dentro
De todos os rios
Os meus olhos eu deixo
À Taça.

André Consciência

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Luva de Chuva



We Are the Strange, M. dot Strange, 2007

Não há lugar para mim, onde o azul me cerca
De dia pintado, de noite lembrado, e o azul
Me cega, no teu grito cantado, em dança
Roubado, ao Deus que o Inverno enterra.

E os meus dedos azuis (pétalas)
Caiem sobre todos os palpitantes amantes,
Que sorriem, distantes, num sonho de ti,
Em que dançava cego envolta do calor, e queimava-me,
Em peles estrangeiras a neve lembrar,
De como já o corpo foi alma. Dentro do meu peito,
Tudo canta, por não haver leito:

Eis que é espada de coveiro, pá de mago,
A voz que vê, no corvo ofuscado,
Chuva que cai, queda, e escuta
Desfeita, quieta, as aves soltas,
Memórias de terra.


André Consciência

Descobrimentos Verticais


African Fashion Series, Hans Silvester, 2008


Ice Dance, Danny Elfman, 1990

A folhagem que é granizo encontra-se perdida
Nos vidros do telhado, e solta-se a ferida
Desse espelho contemplado – todos os dias
Que a Noite sonhou – esvoaçando
O meu desejo esmagado.

Nada cabe em nada, os flocos de neve
Doridos nos mamilos do Atlântico,
A sandália de Hermes perdida, no deserto
Titânico.

Tudo em tudo transborda,
É impossível a persistência, de um só
Minúsculo homem, no vendaval
Da beleza, licor animal; não
Eu, por minha vez, tornei-me pétala
Que desliza no desfiladeiro do vento
Para visitar os palácios nos casais
Que a forma, em pino dançada, não contém.


Na ausência dos teus lábios, juntou-se
Um exército de sábios, afogados, derramados,
Que nos ombros de elefantes procuram.
A savana uma superfície de geada, e a tua...
Majestosa liberdade recaiu sobre a nossa
Desesperada idade. O enregelado
Retomará a forma do sangue, os teus lábios
Conhecerão o meu manto informe.

Não serei homem,
Apenas canto,
E acordarei quem dorme.


André Consciência

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Das Aves Azuis





O Aterro em 1881; No Cais do Tejo, Alfredo Keil


Chove, as paredes de água deslizam
Luminosidade sobre as cidades, com rostos
De mulheres cansadas, e homens
Embrutecendo o silêncio.


O silêncio principia com a fluidez
Dos momentos parados desta noite que não passa
E sobre a qual os dias são como nuvens
No céu estável que me lembra
Primeiro os fantasmas dos teus olhos
Depois a eternidade do peito ondulante
Nas noites em que principiava
Como um desponte que lá fora o mundo pinta.

As palavras de um poema, este, passam-nos
Ao lado, e assim o grilo, sem se reparar,
Faz parte da tranquilidade escurecida
Dos nossos campos inabitados, que as crianças
E os adultos que passeiam crianças
Pisam, numa manifestação de dedos, nossos,
Entrelaçados para além das cores que compõem
A canção colossal da civilização.

E deixa, os amores morrerem, os pensamentos
Envelhecerem.
Deixa, os temores correrem, os rancores
Esmorecerem.
Nada temos com este tédio
Nem o rio com a garça.

A luz e a sombra são tão duas demoras,
E as demoras são todas horas, nossas,
De assombro com que as olhamos se
Nos olhamos.


André Consciência

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Plaia Hermosa


Rusalki - Konstantin Makovsky


A erva arde de noite, e o silêncio comove-se.
De mim até ao céu uma sombra invertida alonga-se.
O vazio sussurra as poesias da carne, um momento cedo
E as estações adormecem, uma a uma, sobre o Atlântico.

Escuta-se então na penumbra um clarão,
O sibilar constante das correntes
Com a pureza do negrume apaga
Os primeiros pesadelos da neblina
E eu ergui-me, para encontrar as ninfas.

Um barco, do qual fiz minha vida, à deriva aguarda
Pendendo a sua rede de sede e água salgada. Uma a uma,
Maternas, palavras q’ são mulheres nuas, de corpos vivos
Içadas. A árvore revestida de uma pira, e o meu coração guarda
No fundo gelo do fundo, a luz no mundo.


André Consciência

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre O Vento


Saudade - Sara Conde


Desta vez, a simplicidade
Da noite em branco, a história
De vida, o haver tudo passado
A viola miudinha e uma claridade
De casas em cinza.


André Consciência

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Traje de Romaria



Azulejo alusivo às lanchas e catraias, Póvoa do Varzim


O mar também não conhece a imobilidade, e por isso transmite perpétuamente esta benéfica quietude. Normalmente a minha mulher sabia as histórias, os conflitos e as amizades das vagas que, por me rodearem, rodeiam a doca. Normalmente durante a hora de almoço, a minha mulher, sentada numa cadeira de tábuas, ouvia o mar falar-lhe de raparigas. Das suas humildades, dos seus egoísmos, dos seus cepticismos, das suas coragens, das suas expansividades. Ela dava-lhes nomes como quem baptizava futuras filhas.

Aos domingos, parece ser noite de manhã, e por isso a noite demora mais a chegar. A ausência da minha esposa entrou na doca. É o princípio do dia de trabalho. Senta-se na sua cadeira que algum calafete que não eu improvisou com despojos de uma Lancha Poveira do Alto. A ausência da minha esposa pousa a cabeça entre as mãos e os meus movimentos tornam-se mais rápidos. Quase no fim do Verão, a jovem que ali passava fechava os olhos e era inocente. No fim do verão ela era sempre inocente, e vivia e estava completamente viva. O seu coração estava separado dela, por isso, o seu coração era uma doca que havia sempre e em todo o lugar. Mas era meio-dia de segunda-feira, em Outubro, ela não vestia na cabeça flores douradas nem no peito moedas, quando ele chegou da Galiza. Às vezes, no fim das manhãs o marujo esperado vinha e abanava o seu listrão de ouro. Era o sombreado de uma tarde de Outono e eles sorriam, analisavam os objectos que ele fazia regressar do além-mar.

A minha mulher deixou a casa desarrumada, não a limpou no começo desse dia nem na duração dos seguintes, e fugiu para nos casarmos. Saiu com uma única mala na mão, com o olhar cheio de esperança, acreditava que nunca mais me ia perder. Durámos essa noite abraçados, e o dia que antecedeu essa noite, e esquecemos-nos até de casar. Aconteceu no crepúsculo do dia seguinte. Eu habituara-me a presenciar o pó que Deus agarra às coisas, como sinal da sua mão sobrenatural, e o meu corpo ia-se tornando nesse aperto. Na primeira manhã, já ela, com a sua camisa de algodão branco oculta no pano de lã vermelho, lenço estampado na cabeça e chinelos de bico arrebitado, limpava as prateleiras em que ninguém tocava desde que a minha mãe morreu. As panelas voltaram a ter a cor das panelas. A madeira voltou a ser madeira. Os cantos das divisões ganharam claridade, a loiça brilhou. Lavou e cozeu a minha roupa. Raspou o chão e desapareceu com a humidade das paredes. A minha mão deixou de querer escrever sonetos. Os meus olhos de procurar os pergaminhos de mistérios antigos, o meu pensamento de se preocupar com o sentido (que é uma preocupação dos homens sem sentido), nos ditames filosóficos, que apenas são facas que afiamos em tempos de tormenta. Levei a toalha às mãos e as mãos levei-as ao rosto. Jantámos, e decidi ser calafate. Ela podia ver-me todos os dias a ser calafate. Ela podia estar comigo, se eu fosse calafate ou pintasse as siglas nos navios. A minha mulher despe um vestido azul e pensa vagamente na eternidade. Mesmo depois desse dia, o vestido continuará.

A forma de me ligar a esse outro além-mar é escrever uma sigla na minha roupa, as únicas iniciais que gostaria de ver em todas as embarcações, fosse eu nelas ou não, e que são as iniciais da minha falecida. Sou feliz assim.


André Consciência

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Deslizamento de terras


Hercules - Júlio Cezar Ramos Lobo

Os ermos soluçam silêncios íngremes,
Os bosques esqueceram o nome dos deuses,
Assim, os deuses despertaram (n)os bosques.

Nos campos, o Sol quieto, mais, até, nos campos que no céu.
Porque os campos estão quentes.
As filhas avançam, sentadas, nesses tronos
De calor. Impeço a minha imaginação de ser minha.
Pendem arcos com elas, temperados com flechas de Abril.

Do Oriente rios de negritude atingem
Como uma brisa refrescante, os cabelos das Noivas.
Os lobos confiam nas neblinas.

De dia. As noivas brandem lanças: ou seja, há pedras
E é só.

Ó Portugal, por que terras te escondes? Choves por todo o hemisfério.
Chove aqui e eu, como uma nuvem na colina, e um amante nos abraços
Da Eterna Juventude, desposaria
Os rostos azuis dos oceanos, e voltaria.


André Consciência

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Embondeiro Que Sonhava Pássaros


Detalhe de Elefante - Jeanne Marie
Os reis são adorados pelos povos, porque crêem que vieram do céu, e falam-lhes sempre com grande acatamento, à distância e de joelhos. Muitos destes reis, para maior cerimonial, nunca se deixam ver quando comem, para não modificarem a opinião que os povos deles têm, de que vivem sem tomar alimento. Adoram o Sol e crêem que as almas são imortais, e que depois da morte vão habitar junto ao Sol. No reino de Benim têm um costume mais antigo do que entre os outros, o qual tem sido observado até ao presente: quando morre o rei, todo o povo se junta num grande campo, no meio do qual abrem um poço muito fundo, ficando largo em baixo e vindo a apertar para a boca. Dentro deste poço deitam o corpo do rei morto, e apresentando-se todos os seus amigos e servidores, aqueles que se julga terem-lhe sido mais caros e favoritos (no que não há pequena contenda entre eles, desejando todos esta honra), voluntariamente descem a fazer-lhe companhia; e logo que estão em baixo, põe-se uma grande lage sobre a boca do poço, e o povo não sai dali, nem de dia nem de noite. No segundo dia vão alguns deputados descobrir a pedra, e perguntam aos de baixo se algum deles já foi servir o rei, e respondem-lhe que não. No terceiro dia fazem a mesma pergunta, e algumas vezes lhes respondem que fulano (dizendo-lhe o nome) foi o primeiro a partir, e fulano o segundo, porque é reputado coisa de grande louvor ter sido o primeiro. E de tudo isto, o povo que está à roda fica falando com suma admiração, considerando-o bem-aventurado e feliz. E ao fim de três ou quatro dias morrem todos aqueles desgraçados. Os que estão em cima, ao pressentirem isto, e vendo que ninguém lhes responde, informam imediatamente o rei sucessor, o qual manda fazer um grande fogo sobre o dito poço, onde assa muitos animais, que dá a comer ao povo. E com esta cerimónia entende ser verdadeiramente rei, e ter jurado governar bem.
Autor Desconhecido (Navegação de Lisboa à Ilha de São Tomé Escrita por um Piloto Português)


Crescer em leveza, eis ao que se propunha
O rei asceta, que sobre o reino compunha.
Da raça do céu, desceu em cidades papagaio
De papel, tocando a terra então tendas, flores
E mel.

E as pedras, pegadas de Lua,
Dos prédios cansados,
Faria rendilhados.

E os rios, descansos solares,
Do cal das paredes,
Transparentes nenúfares.

E a árvore, estrela em repouso,
Das casas empilhadas,
Folhas ceifadas.

E nem cresceu o reino para dentro,
Para ter de crescer para fora,
Cresceu em leveza, e será a Aurora.


André Consciência

terça-feira, 1 de abril de 2014

Milagre das Rosas


Rainha Santa Isabel - Bezeguinho

Em pleno Janeiro, vi, a boa Rainha Isabel,
Dar a comer aos anjos, rosas de sangue.

E o peito
Abre olhos de Ouro.
E a dúvida
Ao amor, com a certeza adora.

Ao reinar namora, o lume delicado
Nas meninas juízes, os olhos
Que são flores aos molhos.


André Consciência