quinta-feira, 4 de março de 2010

SAÚDA OS SENHORES NO TRONO

Xibalba Mannequins Marca Hoje um Ano de Existência



“Senhor da doença e da dor, da morte e da destruição nas ruas e nos trilhos, da morte e da destruição através da aguardente, da morte e da destruição através da intoxicação, da morte e da destruição pelo vómito, da morte e da destruição pelo esforço e pela exaustão – apresenta-te, senta-te ante este Mundo de cemitério. E também o mestre da dor e do infortúnio, dos ferimentos por pistola e faca e vidro, apresenta-te, senta-te ante este Mundo de cemitério! E também o senhor do vómito e da indigestão, o senhor da febre e da disenteria, e também o senhor da malária e da tuberculose, do inchaço do abdómen (cancro), da gripe e da bronquite, e também o senhor de toda as doenças menores; e também o senhor da varíola, apresenta-te deste lado ante este montanhoso santuário do cemitério! Senta-te neste lugar, sejam quais forem as tuas manifestações; Olhai por nós aqui ante este Mundo. Sentai-vos, todos vós. Senhores, perdoai as minhas faltas.”
(Bunzel 1952, 390).


Sem que penetrasse a rua a Este, a rua a Este penetrou todas as outras e, por fim, tomou-me, que jazia ainda imóvel no centro, uma gárgula a guardar a aridez do deserto. Vi uma sala rodeada de exóticas e ornamentadas passagens para outras câmaras. Dispostos em tronos, por ordem de hierarquia, encontrei os senhores, e não mais havia nesta sala excepto um mastro no centro do tecto em que, chovendo rosas azuis, um coração se agitava. Abaixo, um rosto oval, de olho escarlate na testa e boca aberta em O, emanava o hálito dos silêncios mais antigos que o tempo. Eis o lugar da assembleia. Pensei sem a verbalização deste pensamento. Nudificado, deixei a pele abrir-se e estendi a consciência (o corpo) até ao primeiro Senhor, o leitor poderá compreender o que procurei fazer no tempo que se seguiu se, imagine-se, se focar no centro da sua mão, onde sentirá uma palpitação. De seguida que se sensibilize, digamos, no seu dedo do meio da sua mão esquerda, sem ignorar o resto do corpo, e com este, se force a roubar toda a vitalidade desse dedo que existe entre os outros quatro dedos. Sentirá de imediato, se não for um babuíno, uma dormência profunda nessa zona. Isto foi o que fiz ao primeiro senhor, o que fiz ao segundo, o que fiz ao terceiro, e depois o que fiz ao quarto. O quarto denota uma simples diferença, e que nada tem de extraordinário, dos outros três. Trata-se de um mistério dos sentidos já por todos conhecido. E se o leitor não se resumir ao chimpanzé (trata-se de mera expressão, pois os chimpanzés já o sabiam ainda o homem estava a aprender a ir à Lua), saberá que existe uma diferença vital bastante perceptiva entre a proximidade que estabelece a uma árvore e a um pedaço morto de madeira. O quarto senhor, era mais, pois, como uma árvore, e os três primeiros como manequins de madeira, a quem chamaram de Pai, de Filho, e de Espírito Santo.

Abri também eu uma boca invisível, em O. Arranquei-lhe, como o vendaval arrasa a resistência da floresta, o seu sangue. Escutei-lhe um lamento, e, sabendo que o lamento é o nome manifesto da coisa que lamenta, reconheci “Morte Uma”. Repeti o processo, identificando “Morte Sete”. Tinha agora ambos os senhores dos juízes, e que são o inicio e o fim, representando as húmidas ventosas do tempo e do vento. De seguida feri aquele Coberto de Crostas, Ferida Voadora, cujo ofício é adoecer toda a vida sobre a terra, permitindo as libações de sangue que amarram os demónios à obediência. Depois, o que Recolhe o Sangue, sempre que o chão o recebe, e o distribui aos Senhores, fundindo a mortalidade à eternidade dos mundos (criando o Sol e a Lua). A seguir, e obediente aos primeiros, o Demónio do Pus, servo da criação, e o Espírito Maligno, servo da acção. O domínio dos dois Senhores é derreter as formas dos homens e das mulheres que caminham na terra, sem o qual não poderia, neste momento, pica-los qual angélico mosquito. Depois, o Báculo de Osso e o Báculo de Caveira, cuja obra é retirar do homem sem forma todos os resquícios mortais, o que conseguem por agência da fome e pela ausência total das divindades.
Ainda, o Demónio dos Resíduos, e o Demónio da Punhalada, cujo labor é voltar a cobrir de imundície aqueles que, depois de orientados pelos prévios Senhores, cessam de velar pela sua própria essência. Esses arrastar-se-hão nas formas grosseiras até conseguirem retornar à morte através delas. Por sua vez, aqui trabalha o Senhor Asa, que administra o acidente e o acaso fatal, levando a liberdade caótica até ao vulto mais fixo, e o Inquerideira, que mede o caos pelas gravidades essenciais em relação com as gravidades periféricas, usando-as para assassinar. Os dois consomem os viandantes, como é caso do narrador, pela garganta e pelo peito, levando-os a misturar-se com os seus trajectos, desde que fora dos seus lares, por milagre da morte.
Assim, todos eles foram nomeados. E disse uma voz, cujo som se resumia a “ooooooooooooooooooooooooooooo”, “Saúda os senhores do trono”. Mas eu, sorri. E sorrindo ria-me deles. Eu que sou Tsuk’ te, a Árvore do Mundo, e o fruto de Tsuk’ te. E lembro-me do quadro de Francis Bacon, com todos estes senhores na raiz do corpo, o cérebro, pois o mundo, fora do espelho dos olhos, é do avesso. “Senta-te, ó voz! Eu que reconheço na vida a simples porta para a morte, na morte a simples transição para a vida! Eu, que desposei os femininos corpos despidos dos másculos e incorpóreos deuses da morte, e através dos seus corpos nasci, te digo que nenhum destes é um Senhor, e todos são manequins. Como a manequins que se desejam como eu os saúdo. Manhã, Morte Um! Manhã, Morte Sete.” A todos saudei. Fui então, depois de cada um se apresentar, convidado a sentar-me no trono acima de todos os outros tronos do Lugar do Medo e dos Fantasmas, porque os senhores de Xibalba invejam o conhecimento dos homens e não poderão desenvolver-se sem eles.
Sabendo que se tratava de um trono em brasa, o não fiz, antes tomando a palavra: “Eu, que sou Garras Sangrentas e Dentes Sangrentos; Eu, que desci aqui não como um macaco ou como um artesão, mas como o corpo nu do amor que toma forma a partir da incorpórea guerra para tomar as outras formas, para assimilar o macaco e o artesão na sua sabedoria, te dito: aqui me posarei para vos governar após a travessia da Casa do Fogo.”

Foi assim que vim a conhecer “Casa de Treva”.

15 comentários:

  1. cortejo,no bom sentido,pá :P
    e de admiração,também.

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  2. Parabéns, pelo aniversário do espaço e pela expressão :)*

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  3. Ufa, que texto! ;)

    Eu, por acaso, até sou macaco - uma virgem macaca, melhor dizendo! LOL!


    Quero desejar-te continuação de bom trabalho e que este espaço continue a inspirar-nos com a sua sabedoria.



    Abraço!

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  4. Ora, muitos parabéns, que este seja o primeiro de infinitos anos.

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  5. Infinitos?
    Já estou a imaginar "O Fantasma do Blogue".
    Ainda vai é sobrar para mim :P

    Obrigado :) em nome do blogue.

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  6. Embora atrasada (falha imperdoável, bem sei; bato fundo no peito, mea culpa) não podia deixar de vir aqui saudar-te e saudar a obra com que nos tens brindado ao longo deste último ano.
    Acompanho este espaço desde que nasceu, lá bem no inícizinho, quando ainda só existia um template inspirador, ainda antes de chegarem as palavras, as tuas... E, ao longo destes meses, foi-se tornando viciante voltar cá e ler-te. As tuas palavras já me arrancaram lágrimas e sorrisos, gargalhadas (até!) e mudos espantos; já daqui saí com a alma pequenina como se tivesse sido espremida ou dilatada como se lhe tivessem dado asas; já senti as tuas palavras como garras capazes de perfurar a carne e arrancar o coração, ou como compressas quentes capazes de amenizar a dor...

    Tudo isto te agradeço e, peço-te apenas que nunca deixes de escrever. Não creio, no entanto, que tenha de to pedir; é esta a tua natureza: nasceste Poeta, para o bem e para o mal. Foi essa a benção com que Deus te amaldiçoou e tudo o que podes fazer é viver com ela.
    Aos Poetas não estão reservados os sonhos dos restantes mortais, nem os seus gozos, tão-pouco as suas dores, embora lhes seja dado experimentá-los, ao longo da vida. Essas quimeras, no entanto, nunca passam disso: são o combustível que alimenta o Fogo.

    Deixo-te um abraço apertado e uma festa na cabeça.
    Gosto muito, muito de ti.
    Tu sabes.

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  7. :) Frankie...

    Um dia ainda hei de escrever algo quase digno sobre o teu génio.
    E isto é seguro, quem não vir o teu génio é in-génuo.

    Obrigado pelas tuas palavras. Só por causa delas o blogue já acha que viveu um aniversário feliz.

    Forte abraço :)

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  8. $ nhec; assim até fico encabulada...



    (E olha que não é fácil eu calar-me; sou uma gralha!!!)

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  9. (...só "um bocadinho" mais palradora...)

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