Cotz'na
Fui deixado por morto na Casa de Morcegos. Não é verdade? Pois olhai bem para os meus destroços e do que são feitos, de que forma a lâmina dos focinhos quirópteros se enterra em mim. A questão a traduzi-lo põe-se: como posso ser inteiro se momentos vários da minha vivência inteiros são? Sou assim dividido e sendo dividido o sangue escorre. É fácil adormecer e deixar que os morcegos operem o seu milagre às escondidas da vigilância, mas eu deverei penetrar a minha Palavra viva na insónia eterna e sobreviver como testemunha. Mas os morcegos penetram até a Palavra, e a palavra fragmenta-se em várias nuvens de memória movediça. Tal como na morte, toda a minha vida passa na minha percepção, excepto que não com ordem e seguimento, não! Em vez, todas as lembranças guincham em simultâneo. Eu lembro-me. Sim. Recordo-me. Não! Talvez. E se. Vi que foi. Aqui e agora. Tantas vezes. E sempre que. Nunca mais. O eterno repetir da lentidão dos ponteiros. Ninguém agarra os ângulos, desfazemos-nos no tempo. Salteadores nas ameias do crepúsculo. Vagar humano. Velocidade felina. Tudo se calou para sempre. E isso não se cala. Caramba! Sh… Os pardais nunca foram pardais. O nome destes morcegos é Legião. Calaram-se muito. Não tenho cabeça. Espera, ainda tenho cabeça. Coça-me as costas. Fodia e quanto mais fodia mais me energizava. Não faz mal. O quanto podes. Mas nunca te deixes vir na rapariga errada ou envelheces 3 anos. Absurdo. De há um mês para cá, ganhei verrugas. A cantina com a mulher que me quer. Sh… Daquela vez apanhei uma enorme serpente a caminho do mosteiro abandonado, fiz com ela uma Oroboros que usei à cintura e no fim deixei-a em 8. Não sei quem, mas alguém a vandalizou. Desenterrou o ovo e a rosa. Mesmo assim ela está grávida. Espero que não faça um aborto. Se o fizer engravidará de novo. Fecha as portas caralho! Está a entrar uma bruma que ainda nos vai separar a todos. Quem é que está a gritar? Primeiro acordo os animais todos, naturalmente. Mas quando começo assim a floresta fica estarrecida em silêncio. Os outros dizem que me transformo numa serpente negra e muito alta. Alentejo. E Cabeço das Fraguas. Isso tudo já foi, não é? Fui apanhado a dormir em Marrocos. Estava lá aquele gajo cujo nome é o sussurro da respiração. É ASV. Parecia. Hehe. Já não sei o que fazer com ela se não pára de gemer. Tanta merda. Que rios são estes? Falésias. Rios. Portugal está entre a terra e o mar. Se quiseres falar com Ele, vai para lá. Morcegos no meu cabelo. Não vou quebrar a asana. A bófia tem rondado a gruta. Um dia ainda conto e decoro quantas árvores existem nesta serra sem usar um único número. Esse dia é hoje. Não importa quantas vezes me perco, o caminho de volta é perder-me. Mas quando volto trago as vozes de tudo por quanto passei. Ervas e rochas e areia. Essas vozes, sabes. Estás louco! Claro que estou. Vês aquele túnel? Estamos cá em cima, no segundo mosteiro. Vês aquele túnel? Pára de escrever e não cantes. Não pises as folhas e não dances. As 3 e picos a Lua põe-se exactamente em alinhamento com aquele túnel que desemboca a meio da parede. O que metes no altar é a tua sombra. Cala-te! Os telhados estão sempre a cair. Não sei como nunca morri. Os outros partem sempre a cabeça pelo menos. Sim! Ela! Ela! Como é que os olhos dela podem brilhar tanto?! Em Tróia. Morreu-te. Essa bruxa ruiva. Agora já é tarde para chorar, não achas? Os pombos em Faro são muito diferentes dos pombos em Lisboa, e há ainda os do Porto, que cantam Anathema perto da feira. Espera lá. Não, no Alentejo não há. O que há mais é rapinas. Mas vais conhece-las a todas. Dorme em cima desta pedra, é o que eu faço sempre. Não digas mais nada. Esses livros não eram para ti próprio. Por isso é que os tivemos de queimar. A Santa não se esquece de nada. A míuda se calhar nem era maior. Agora já foi apanhada. Quantos corpos de prostituta tem o teu corpo, virgem? Não sei quantas mais mulheres aguenta a chama. E homens. Vais ficar gordo. Cala-te! Já há muito tempo que estou perdido. Eles acham que eu invento estas histórias! Se soubessem ahah. Com quantos camelos se faz o Sol? Ups. Nada como o Salvador Dali. Os morcegos, já não se ouvia deles nem um piu. Saí da palavra, pus só a cabeça de fora da sua boca, e procurei verificar se era manhã. Um Morcego da Morte, com o chocalho de ossos e as órbitas pendentes, decapitou-me em voo tal como decapitaria o fruto do ramo. Mesmo sem cabeça, ainda ouço asas a roçarem. Mas é só isso.
Um Morte e Sete Morte levaram a minha cabeça. Ainda escuto e vislumbro, mas não com os órgãos da cabeça. Sempre pensei que se separassem a cabeça do meu corpo, a minha consciência se agarraria sobretudo à cabeça. Isto era mentira. Sem cabeça, porém, podia controlar todos os animais existentes na Grande Árvore dos Mundos. Pedi a cada um que trouxesse o seu alimento e o deixasse junto da minha carcaça viva. Acho que Morte Um e Morte Sete se riam, e acho que os outros Senhores estavam sérios e com receio. Finalmente encontrei o que queria, quando vi o meu próprio corpo através da cabeça Ornada de um Lobo, que vinha sendo trazida pela boca de uma fêmea de Coiote. Vejam, se não é Lúcifer, o Corção do Céu, que desce, o próprio para acender estes olhos. Um anjo entre os morcegos. Durante quatro dias o céu encheu-se de lama e a terra escureceu. Por fim o diabo incendiou o esterco, dando luz ao mundo e abrindo o céu para o azul do Sol. Por esta altura a cabeça do lobo e os seus chifres estava bem assente sobre os meus ombros. Vejo-me a mim próprio neste preparo e vendo-me neste preparo vejo-me a mim com corpo de lobo e cabeça humana.
Reconheço, assim, ser os gémeos Ascendido e Descendido. Todos os senhores se riem e festejam. Pois no seu seio têm o meu corpo humano, vivo e derrotado. Como sempre fomos o conselheiro da Corte Abaixo da Superfície, ordeno que o meu eu seja sentado no trono em brasa e depois deitado ao rio. Restam-lhe cinzas. Estas cinzas criarão os primeiros peixes à superfície, e um dia serão homens e mulheres para governar com todos os poderes subterrâneos. Quanto a mim, os Gémeos, não temos nós os rostos de todos os bobos? Operámos milagres, ardemos as casas sem que elas ardessem, dançámos, matando-nos e ressuscitando-nos, e tanto deslumbrámos Morte Um que nos pediu que com ele o repetíssemos. Só o repetimos por metade, a primeira. Morte Sete pediu clemência. Não a obteve, porque tomámos as suas poltronas no Lugar da Esperança.
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