domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Metade Devorada IX


Hollow Project - Garden of Bad Things


Bruma, não existe nenhuma caixa sobre o meu cérebro, não existe cabeça e não existem pés. Não tenho corpo mas tenho bruma negra e a percepção da bruma negra. Ninguém me ouve, ninguém escuta as minhas palavras, eu não as escuto, não tenho voz, onde estão os meus lábios. Peito, peito, incontinência. Dedos, dedos cheios de palavras e que só soltam musica: dedos que nunca conheceram palavras.

Demência, foi no que nos tornámos. Eras tu a tremer no teu quarto como se a morte da tua mãe, depois de dois anos, fosse ainda febre no teu corpo, a impedir-te de pensar, a impedir-te de amar, a gastar a cor das coisas. Oh como tu me querias magoar. Tornamos-nos em demência, eu quis cuidar de ti, quisemos cuidar de ti, e tu quiseste destruir-te sem aviso. Eu fui a primeira ferida que te fizeste. Éramos demência: éramos eu sem cortar unhas, sem me lavar, sem limpar os dentes: era o teu silêncio desconhecido e insuportável. “Somos estação”, e eu ria-me. “Somos estação”, repetia o absurdo.

Demência, foi no que nos tornámos, eu feria-me e escrevia para ti num sangue rosado pela folha branca. Não via nada, a dor era cegueira. Tu nunca aceitaste a minha carta, nunca leste o meu sangue. Depois era praia, era os meus movimentos nos dias como se fossem todos eles movimentos de fugir. Eram os olhos, naquele dia maiores, da minha mãe, uma presença clara, “Calma, tu queres viver tudo ao mesmo tempo. Calma, ainda és tão novito”. Eu repetia, repetia essa verdade em mim: “Eu sou tudo, vivo, em cada detalhe. A minha presa são os momentos, o meu rebanho os segundos.”
A água de Tróia conseguia, por um momento, eclipsar o resto do mundo, juntei a si as minhas lágrimas, o meu interior, que doía, parava só por um instante, de doer lá fora como carne esfolada, esfolada de ti, de não estares nela.

Mentiste-me, quiseste magoar-me cada vez mais: destruí-te com uma só estocada, foste pior que nada: foste sangue por debaixo de cascos de cavalo, sangue que se une à lama de gente que se arrasta de ossos quebrados de luas partidas.

Não tinha boca: O mar fala de coisas de mim: o mar fala de coisas que nunca vi: que perdi para sempre. Tu, quando irrompes das coisas. Formas com demasiado conteúdo, quebravam o mundo.

2 comentários:

  1. E esta é a minha colecção para este dia de S. Valentim.

    Enjoy.

    ResponderEliminar
  2. Aqui sentado...prostei-me a ler...
    E fiquei a pensar sobre caminhos!

    ResponderEliminar