Fear - Ratpat 13
Existia mais um dia, com a luz da manhã fresca nas fossas nasais, e transpunha os portões de ferro e tinta gasta da escola de Oeiras, rindo-me, como sempre o fazia, quando passava pelo porteiro a que chamávamos, alegremente, de Mata-Ratos (às vezes, quando o seguíamos, perseguia-nos de punho fechado). O dia, porém, não ia ser alegre, excepto talvez quando descesse ao jardim com o Henrique à procura de pinhões, e os partíssemos à pedrada. Ás vezes, quando, de longe, na sala de aula de música, me abstraia na janela, via a linha de pinheiros e atingia uma coisa qualquer que estava para lá dessa linha. Pensava, ali, que descobria os padrões das coisas, e as sequências que constituíam os padrões das coisas não se assemelhavam nada à nossa pequena visão, ontem presa às ninharias da altura, hoje, amanhã, como se nada mudasse realmente. As marcas do tempo e do espaço tornavam-se mais como pequenas parcelas de uma pintura, cada uma com mil telas, e nem todas se encontravam na mesma tendência, pelo que, muitas vezes, seguindo determinados percursos, pensava descobrir quem sonhava o meu próprio mundo, e penso que uma vez, toquei os olhos do escritor deste conto. O Norberto, cego de um olho (porque o irmão o apedrejara), referia-se ao clítoris da professora em palavras de um crioulo não esquecido. Depois tocava o sino. Na escola, era sempre cinzento, era sempre manhã fria e lufadas cinzentas. As meninas cumprimentavam-me. “Esqueleto vai doze”, o Luís sorria com os comentários e depois o João Paulo, na sua bicicleta, vinha roubar-lhe os berlindes, torcia-lhe o braço e, ameaçador, eu protegia-o sempre.
Desvio-me da folha, escuto as paredes. As paredes vibram levemente, são paredes de um templo, são o meu segundo corpo. São a minha prisão, e, cá dentro, cabe o céu onde já pranteei todos os meus infernos e fui sempre, dentro de uma infinidade estranha, consolado. Estas paredes podiam ser um espelho de ti, mas não te aceitam, são muralhas, são muralhas porque eu sou o meu castelo. Sou independente, e por isso amo-te sem fraqueza. O meu coração é meu. Dou-o e nunca o perco.
As paredes desaparecem. Existe céu. Existes tu sepultada no céu. Escondida e aninhada no quarto escuro do coração, conduzindo sempre de renovado fôlego os fantasmas da exaustão.
Na escola, todos os sonhos eram pesadelos. O Luís era maior, porque dizia de mim as coisas más que haviam nele. O Luís Meireles era maior porque desviava todos os golpes para o meu peito. Hoje não pude jogar futebol. Balbuciaram qualquer coisa sobre os meus ténis. Amanhã penduraram-me só pelas pernas de um lugar vertiginoso, a queda era a morte. Amanhã gritei e fui içado, continuava vertigem, eu esmurrava o ar e ouvia os risos.
Fecho os olhos. Risos. Eu sou todos eles, eu sou as mãos nas minhas pernas que hoje estão doentes.
Fecho os olhos. Eles riem-se, a ver-me gesticular pateticamente no ar. Eu sou todos eles, e a mão de Deus.
Cigarro e silêncio. Vocês eram nuvens, eu esbracejava mas não vos tocava… vocês: o corpo de Deus.
Os montes tapam o rio de vidas que sou. Inscrevo sinais da parede, mudo porque sou cego, e imagino viver o que vivi. De repente, uma linha de pinheiros, e pela janela, uns olhos de criança fitam-me, compreendem-me.
A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende.” Mas eu conheci-te. Conheci-te quando olhaste para mim.
Até nos pesadelos existem momentos de prazer, e mesmo a mente quebrada, embora despreze o seu corpo e o seu ser, ou se conforme na humilhação para se tornar capaz de viver, prevalece na faculdade de perceber que o corpo tem um orgulho singelo de si mesmo, de existir e de estar onde está nas sensações que percorre. Ninguém percorre o meu corpo, o meu corpo percorre as coisas. E hoje, a exaustão, depois do exercício no ginásio da escola, faz-me um brilho forçado nos olhos apagados. Percorro o campo arenoso. Eu vi que ele olhava para mim porque olhei para ele sem medo, ainda não me aprendi a calar, e espero nunca aprender. Existem olhos nos meus olhos que se antecipam de medo e insistem em acelerar o passo, por isso, eu caminho lentamente. De repente, uma dor aguda e a minha cara encontra-se atingida, ao meu lado, uma pedra morre contra o chão, posterior à carne e ao sangue.
Ele disse-me: “As palavras são como pedras que cada um esculpe segundo o capricho próprio, e o egoísmo rouba todas as nossas verdades. Não comunicamos, roubamos. Não existe templo para a nossa expressão, existe o mercado do furto.”
A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende”. Mas eu gostava. Eu gostava de poder, pelo menos, morrer nessa vontade.
Na biblioteca, jogava xadrez, e, ano após ano, chegava, rompendo eliminatórias, à final. Ouvi-a declamar, por detrás de uma secretária trespassada em livros de palavras vazias a roubarem espaço vazio, a sua paixão por mim. Elas a rirem-se. Elas a troçarem de mim e do meu corpo. Elas a troçarem dela. Envergonhada, fitava o chão e desculpava-se. A partir desse momento esqueci o seu nome, e ainda hoje não me lembro. O escritor também não se lembra. Nem os padrões entranhados nos padrões seriam capazes de o recuperar.
Olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes.
Estamos muito sós, a flutuar e a atravessar muitos olhos, túneis que desembocam em túneis que em túneis vão desembocar, e existe uma festa de semblantes aberrantes no quarto escuro do meu coração, quando acendem a luz, e o ruído cresce, eu termino em tudo o que conheço. Respiro, em bocas ocas, o desespero que já não desespera.
Risos, a sair de bocas ocas em bocas ocas. Torrentes. A tua mão calorosa? Meu anjo? Gratidão.
Desvio-me da folha, escuto as paredes. As paredes vibram levemente, são paredes de um templo, são o meu segundo corpo. São a minha prisão, e, cá dentro, cabe o céu onde já pranteei todos os meus infernos e fui sempre, dentro de uma infinidade estranha, consolado. Estas paredes podiam ser um espelho de ti, mas não te aceitam, são muralhas, são muralhas porque eu sou o meu castelo. Sou independente, e por isso amo-te sem fraqueza. O meu coração é meu. Dou-o e nunca o perco.
As paredes desaparecem. Existe céu. Existes tu sepultada no céu. Escondida e aninhada no quarto escuro do coração, conduzindo sempre de renovado fôlego os fantasmas da exaustão.
Na escola, todos os sonhos eram pesadelos. O Luís era maior, porque dizia de mim as coisas más que haviam nele. O Luís Meireles era maior porque desviava todos os golpes para o meu peito. Hoje não pude jogar futebol. Balbuciaram qualquer coisa sobre os meus ténis. Amanhã penduraram-me só pelas pernas de um lugar vertiginoso, a queda era a morte. Amanhã gritei e fui içado, continuava vertigem, eu esmurrava o ar e ouvia os risos.
Fecho os olhos. Risos. Eu sou todos eles, eu sou as mãos nas minhas pernas que hoje estão doentes.
Fecho os olhos. Eles riem-se, a ver-me gesticular pateticamente no ar. Eu sou todos eles, e a mão de Deus.
Cigarro e silêncio. Vocês eram nuvens, eu esbracejava mas não vos tocava… vocês: o corpo de Deus.
Os montes tapam o rio de vidas que sou. Inscrevo sinais da parede, mudo porque sou cego, e imagino viver o que vivi. De repente, uma linha de pinheiros, e pela janela, uns olhos de criança fitam-me, compreendem-me.
A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende.” Mas eu conheci-te. Conheci-te quando olhaste para mim.
Até nos pesadelos existem momentos de prazer, e mesmo a mente quebrada, embora despreze o seu corpo e o seu ser, ou se conforme na humilhação para se tornar capaz de viver, prevalece na faculdade de perceber que o corpo tem um orgulho singelo de si mesmo, de existir e de estar onde está nas sensações que percorre. Ninguém percorre o meu corpo, o meu corpo percorre as coisas. E hoje, a exaustão, depois do exercício no ginásio da escola, faz-me um brilho forçado nos olhos apagados. Percorro o campo arenoso. Eu vi que ele olhava para mim porque olhei para ele sem medo, ainda não me aprendi a calar, e espero nunca aprender. Existem olhos nos meus olhos que se antecipam de medo e insistem em acelerar o passo, por isso, eu caminho lentamente. De repente, uma dor aguda e a minha cara encontra-se atingida, ao meu lado, uma pedra morre contra o chão, posterior à carne e ao sangue.
Ele disse-me: “As palavras são como pedras que cada um esculpe segundo o capricho próprio, e o egoísmo rouba todas as nossas verdades. Não comunicamos, roubamos. Não existe templo para a nossa expressão, existe o mercado do furto.”
A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende”. Mas eu gostava. Eu gostava de poder, pelo menos, morrer nessa vontade.
Na biblioteca, jogava xadrez, e, ano após ano, chegava, rompendo eliminatórias, à final. Ouvi-a declamar, por detrás de uma secretária trespassada em livros de palavras vazias a roubarem espaço vazio, a sua paixão por mim. Elas a rirem-se. Elas a troçarem de mim e do meu corpo. Elas a troçarem dela. Envergonhada, fitava o chão e desculpava-se. A partir desse momento esqueci o seu nome, e ainda hoje não me lembro. O escritor também não se lembra. Nem os padrões entranhados nos padrões seriam capazes de o recuperar.
Olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes.
Estamos muito sós, a flutuar e a atravessar muitos olhos, túneis que desembocam em túneis que em túneis vão desembocar, e existe uma festa de semblantes aberrantes no quarto escuro do meu coração, quando acendem a luz, e o ruído cresce, eu termino em tudo o que conheço. Respiro, em bocas ocas, o desespero que já não desespera.
Risos, a sair de bocas ocas em bocas ocas. Torrentes. A tua mão calorosa? Meu anjo? Gratidão.
Bom Carnaval.
ResponderEliminarVou para longe do mundo dos homens e para perto do mundo do mundo.