domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Metade Devorada VI


Acceptance vs Rejection - Squish Squash


I

O gato, alvo e com um olho de cada cor, estava muito preso, muito apertado e respirava ar queimado e abafado, esfregava-se contra os vidros.

Vesti o fato de macaco branco, coloquei os óculos grossos e fingi que me entusiasmava, cobri os pés de borracha isoladora, fitei as portas largas e gradeadas e abri-as.

Então quando me dizia que a minha zona de trabalho passaria a ser o inferno, fixou-se no meu sorriso e foi-se embora, para o outro lado de filas de maquinas de aço que, por nunca pararem de se mover, podiam bem estar mais vivas que os operadores.
Por vezes os rádios soltavam uma melodia e, se esta melodia fora significativa noutros tempos, éramos invadidos por reminiscências de caminhos humanos, mas a névoa ao contrário de se abrir, fazia-se notar com mais insistência, sendo que os óculos fechados e embaciados do suor eram o maior grilhão que nos separava de tudo o que fora uma vez nosso.

Depois, quando nos atiraram para a sala vidrada e que não era, como tudo naquela cidade secreta com passadeiras e carros colossos de amarelos; e coisas que esmagam e coisas que queimam e coisas que prendem e outras que rasgam; quando nos atiraram para ali e todos iniciaram o processo de deitar fumo pela boca e engolir líquidos castanhos, ou aglomerarem-se como pequenos carneiros em filas por alimento; quando me atiraram para a pequena sala quadrada, senti-me asfixiado. Os passos e os olhares e respirar pesavam-me com o peso dos pesadelos. E ela, que estava por ali, não havia modo de surgir. E quando o fez, na sua falta de sorriso cansado, balbuciou qualquer coisa sobre eu não ir ter com ela, e depois como se não houvesse mais nada a dizer-me, sentou-se com uma desconhecida que era como se conspurcasse tudo o que era familiar e próximo. E eu pedi que se sentasse num outro lugar mais espaçoso, onde eu podia sentar-me também. Os deuses e o diabo sabiam porque estava na fábrica. Os deuses e o diabo sabiam que ela não respeitava a minha falta de dinheiro e que vagabundos poetas se amam por um dia. Ela, como se dormisse, não respondeu, e a sua colega fez um sorriso impossível.


II

De repente, toda a minha vida estava nela, e nas minhas praticas, nas minhas disciplinas sórdidas e bizarras. Depois ela, apoiando o coração na nossa solidão entre os quilómetros de Lisboa-Porto, e horas de trabalho ingrato que me emudeciam os lábios com revolta calada, e um olhar desesperado por escapatórias e soluções, sem que viessem, e dias que faltava e procurava que o meu currículo encaixasse por toda Lisboa; e dias que ela telefonava e eu calado, não nos falávamos quando falávamos, e ela tocava-me como despedidas a prepararem-se. Apoiando o coração na nossa solidão foi rachando-o e quebrou-o. Mas ela havia sempre de voltar, eu sei, porque, coração completo ou metade devorado, éramos casa um do outro, porque jurávamos que amávamos não para amar, mas porque não se continha.

Depois foi o silêncio total: Irreconhecível e fora da vida que se conhecia e concebia. Quatro dias paralisados. Depois uma mensagem: “Telefona-me agora”

Ás vezes, sempre com a mente na alquimia e no deserto, e naquilo que escrevia dia e noite sobre a alma das coisas se resumir numa só alma de coisas, vinha uma espécie de ladrão e esse ladrão, em vez de me roubar o coração, roubava-me a paz ao devolver-mo. Ás vezes aguentava muito, e lia Byron, Blake ou Yeats, depois chorava muito, e continuava a ler entre as lágrimas. De seguida chorava muito sem livros, só comigo e com os meus movimentos desregulados de círculos caminhados. Depois pegava no telemóvel, que tinha estragado quando ela me disse do outro colo, e tentava pessoas: pessoas que me pisavam, prostrando-me humilhado, em lições sobre mim mesmo, em castigos de quebra de eremitério.

Sem comentários:

Enviar um comentário