Atravessei já os primeiros vales, escavados previamente por rios que então secaram, deixando-me aos pés nus o verde. Desci a Xibalba despido, e na forma de uma árvore sem cascalho (homem, alguma vez notaste que o sistema nervoso humano - pausa - é uma árvore de raízes no topo?). Nascem flores vermelhas no seio da verdura, o céu é feito de planuras idênticas em textura à vegetação terrestre. Mas é difícil de o contemplar, com as suas rachas sanguíneas, porque logo sou interceptado por legiões de pardais, pequenos pardalecos, cantando alegremente, correndo como a superfície de um rio sobre o telhado dos vales. E serpenteando essas fundas sinuosidades celestes, vejo-os incendiarem-se de imobilidade. Suponho estar próximo do fim. Imóveis. O apatetado chilrear cai no chão e estatela-se em mil histerias de silêncio. Legião fita-me, eu passo. Uma canoa, revestida da pele de Eva, e cujas madeiras são ossos de Adão, espera-me, movida aos soluços por um imenso abismo de escorpiões da cor das covas que a luz não ousa.
Nos mundos dos homens, tenho visto muito, esta metáfora não me assusta. Sei exactamente o que dizer perante o violento desespero dos homens, que aprenderam, ainda no Éden, a implorar misericórdia às suas sombras. Embora me ria, o meu riso não é mais glorioso do que o do louco que, frente a uma procissão de escorpiões, se queda a rir (porque se ri sozinho).
Não é tempo de ser inútil. Salto corajosamente para a canoa, e recordo-me desta canção (ela impedirá que falhe na minha travessia).
Ah, quanta vez, na hora suave pela morte vivemos, porque só somos hoje, porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só poderemos crer em amanhã, pela confiança da morte de hoje. Tudo o que temos é a 'Morte', tudo o que queremos é a morte, é morte tudo o que desejamos querer...
Fernando Pessoa
Nos mundos dos homens, tenho visto muito, esta metáfora não me assusta. Sei exactamente o que dizer perante o violento desespero dos homens, que aprenderam, ainda no Éden, a implorar misericórdia às suas sombras. Embora me ria, o meu riso não é mais glorioso do que o do louco que, frente a uma procissão de escorpiões, se queda a rir (porque se ri sozinho).
Não é tempo de ser inútil. Salto corajosamente para a canoa, e recordo-me desta canção (ela impedirá que falhe na minha travessia).
Ah, quanta vez, na hora suave pela morte vivemos, porque só somos hoje, porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só poderemos crer em amanhã, pela confiança da morte de hoje. Tudo o que temos é a 'Morte', tudo o que queremos é a morte, é morte tudo o que desejamos querer...
Fernando Pessoa
O Escorpião é imune ao seu próprio veneno.
ResponderEliminar"(...) um imenso abismo de escorpiões da cor das covas que a luz não ousa." - Brutal!
ResponderEliminarEu não sou, definitivamente, um escorpião. O meu veneno já meu fodeu muito bem.
Abraço fraterno.
P. S. Enviei mais umas modinhas. Espero que gostes. ;)
Não se esqueçam de sublinhar acima do Pessoa :P
ResponderEliminarO comentário do escorpião encaixa aqui:
"Sei exactamente o que dizer, perante o violento desespero dos homens, que aprenderam, ainda no Éden, a implorar misericórdia às suas sombras."
Olha, já agora, manda-me o album que tens dos Nosferatu se não for pedir muito :p, o que eu tenho é outro.
Agape