domingo, 28 de fevereiro de 2010

Rio de Pus



The Wreckage of My Flesh - My Dying Bride


Quem testemunhou a confusa ira do sangue, não se felicitará com, e preferirá a sua ira, à observância da letal melancolia a seguir advinda: descobrindo-se rejeitado, após o tempo demorado da travessia, o sangue desiste de si mesmo, e eis que em pus se vai suicidar. O fétido da doença demarca a corrente pútrida. A canoa, nauseada, estremece, vomitando cabelos loiros que rodopiam para se perder com o verde, com o amarelo. Toda a raiva que o sangue, por gerações todas, não domou, agora é corpo no homem para o consumir (agora é furúnculo no homem, para o consumir). Mas, não tendo antes cedido à sede, e primeiro aprendido a auto-revolução do escorpião, reconheço ser este pus a (anti)matéria-prima dos magos. Com ele, construo os manequins, e guardando aguardo, na incerteza de que a minha espera fará do meu vulto a estátua correcta.

Um pardal pousa sobre cada um dos manequins, separa a lança para cantar, os olhares vertendo vazio, e toda a sonoridade da câmara azulada no pus, inclusive o ruído mudo do silêncio, é engolida. Nenhuma vibração, nenhuma ressonância. O meu coração bate sem eco. É hora.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Rio de Sangue


The End - The Doors

A luz negra dos escorpiões foi-se abatendo nos raios rubros do céu e afundaram-se os aracnídeos, lentamente, num remoinho aéreo de sangue. Lodaçal dos vermes e dos demónios importantes – os outros vivem nos caixotes de lixo e na gordura dos opulentos. Os escorpiões em eleições. Rimei. Vamos nos revoltar, vamos, vamos nos revoltar – quis o sangue. As formigas vermelhas cobrem, de mandíbulas estimuladas, esta árvore nua. Um grupo de homens com implantes e microfones em círculo, falam com vozes distorcidas e mecânicas. Falam de partidos como quem fala de contas. Einstein sacrificado com um macaco pendendo da sua garganta por uma forca, e um macaco alado sobre ele, que lhe caga nos olhos e ri. Depois bandeiras, umas pintadas, outras queimadas. Fico cego, só escuto este canto índio. Chego a lembrar-me, depois, dos canibais. E dos canibais para fora, como Antonin Artaud. As pupilas dilatam-se. Que raiva! Que raiva! Vejo homens a vir à costa e eu a roer-lhes os dedos que se agarram à firmeza do pontão no Porto. Está uma ventania danada, tenho relâmpagos dentro do mar. O vosso navio de loucos, afundado. Engolir as entranhas dos poetas inundados. Frenesim do sangue. Chamem-lhe o que lhe chamarem, é isso a poesia. Frenesim do sangue. Eu não bebo. Está um dia solarengo dentro do meu propósito. O meu sorriso não tem igual. Não me confundo com os outros.



Silêncio.

Viste o acidente lá fora?

Uma centena de homens, cada um com uma centena de homens na mão, saiu apressadamente, aos tropeções. E discutiam sobre os corpos moribundos das crianças. O cântico cada vez mais surdo. Um ergueu o punho e esmagou a cabeça vizinha, jorrando mil percevejos.

Correm os carteiros.

Viste o acidente lá fora?

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Rio de Escorpiões




Atravessei já os primeiros vales, escavados previamente por rios que então secaram, deixando-me aos pés nus o verde. Desci a Xibalba despido, e na forma de uma árvore sem cascalho (homem, alguma vez notaste que o sistema nervoso humano - pausa - é uma árvore de raízes no topo?). Nascem flores vermelhas no seio da verdura, o céu é feito de planuras idênticas em textura à vegetação terrestre. Mas é difícil de o contemplar, com as suas rachas sanguíneas, porque logo sou interceptado por legiões de pardais, pequenos pardalecos, cantando alegremente, correndo como a superfície de um rio sobre o telhado dos vales. E serpenteando essas fundas sinuosidades celestes, vejo-os incendiarem-se de imobilidade. Suponho estar próximo do fim. Imóveis. O apatetado chilrear cai no chão e estatela-se em mil histerias de silêncio. Legião fita-me, eu passo. Uma canoa, revestida da pele de Eva, e cujas madeiras são ossos de Adão, espera-me, movida aos soluços por um imenso abismo de escorpiões da cor das covas que a luz não ousa.

Nos mundos dos homens, tenho visto muito, esta metáfora não me assusta. Sei exactamente o que dizer perante o violento desespero dos homens, que aprenderam, ainda no Éden, a implorar misericórdia às suas sombras. Embora me ria, o meu riso não é mais glorioso do que o do louco que, frente a uma procissão de escorpiões, se queda a rir (porque se ri sozinho).

Não é tempo de ser inútil. Salto corajosamente para a canoa, e recordo-me desta canção (ela impedirá que falhe na minha travessia).

Ah, quanta vez, na hora suave pela morte vivemos, porque só somos hoje, porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só poderemos crer em amanhã, pela confiança da morte de hoje. Tudo o que temos é a 'Morte', tudo o que queremos é a morte, é morte tudo o que desejamos querer...
Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tzuqunel


Shaman - John Myers


Um plácido mar sobre a carcaça, um silente céu abaixo,
E sem fim não há corvo, não há vaca sem fim,
Ilimitado cipreste ou jade que se haja reunido.
Coisa alguma se erigiu, o que forma está sozinho,
Sozinho o que reveste: eis luz e conhecimento.

Solitários, afundaram a noite, o conhecimento está sozinho
Tornou-se homem. A luz está sozinha,
É montanha e é vale, túmulo e dolmén.


Nota: Sendo luz, o verdadeiro homem só reconhece luz no que o rodeia, esta é a natureza do conhecimento.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Luz do Mundo

Dedicado a R.







As ervas ardem a noite e o silêncio comove-se em linguagem.
De mim até ao céu pendura-se a sombra invertida das árvores
O vazio roça contra a poesia da carne, um momento cedo
E as estações adormecem, uma a uma, sobre o Tejo.

Escuta-se então, na penumbra do clarão
O sibilar constante das correntes,
A pureza do seu negrume apaga
Os primeiros pesadelos da neblina
E eu perdi-me, para encontrar as ninfas deste mar.

Um barco, do qual fiz minha vida, à deriva aguarda
Ao som de rede estendida. Uma a uma, diz-me palavras,
Maternas, palavras q’ são mulheres nuas, de corpos mortos
Içadas. A árvore revestida de uma pira, e o meu coração guarda
No fundo gelo do fundo, a luz no mundo.


Horned Wolf




Parabéns, desbloqueou este post

Para todos os leitores de "Xibalba Mannequins"

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Diários do Quotidiano



A primeira vez que escreveu poesia soube o que era não ter pais. Escrevera um poema a cantar de fezes, que deixou no correio da sua avó junto com um lenço ao qual se havia assoado. Era uma traquinice, ainda assim percebeu que, ao poetizar, era ele pai e mãe, e nada acima dele.

A primeira coisa é esta. A irmã leva um caniche literalmente arrastado pela trela. O pobre bicho não tem velocidade para acompanhar a menina. Ele dizia para ela parar, sem ser escutado. Depois afirmou, a pulmões cheios, que nunca havia gostado da irmã, só para ganhar a atenção, também ele um menino. Com isto, confundiu-se a si próprio, e ficou mais adulto.

A menina atacava-o com o cinto, brincadeiras de gaiato. Ele conseguiu roubar-lhe o cinto numa das investidas e simulou um ataque. A mãe entrou no quarto e acusou-o de maus tratos à menina.

O pai ficava a aspirar a casa depois de saber do nascimento da filha, dizia que era para estar tudo limpo quando ela chegasse. Mas o miúdo só queria saber como era a bebé. Depois viu-a, e sentiu uma tranquilidade e uma paz inesperadas.

A mãe subira ao pediatra, e para distrair a bebé o miúdo pôs-se a brincar com ela usando-se da sua aranha de plástico, acontece que a aranha fazia alergia ao bebé. Quando a mãe chegou acusou o miúdo de saber que estava a fazer mal e de o fazer por gosto.

Alguns anos mais tarde, depois do miúdo se mudar muitas vezes e já não ser um miúdo, a primeira namorada desaparecer doente, e ele não querer ver os livros da nova escola, ela com já parte da vassoura partida na mão, ofegante, com espuma nos cantos da boca, as faces rubras, os maxilares alargados e as narinas dilatadas, os olhos a quererem saltar para fora e ver o mundo (cof cof). Ele sentia uma linha em brasa nas costas, estava aparentemente calmo, muito quieto, a olha-la fixamente com uma chispa no olhar e um sorriso trocista no rosto. Ela dizia: "Não és nosso filho. És filho do diabo!" O rapaz regalava-se com uma descoberta irrefutável, capacidade que tinha para tirar até ao último resquício de auto-controlo da mulher. Se esse poder era ser filho do diabo, havia de o exercitar não só naquela mulher mas noutras mulheres e noutros homens, e dedicar os anos seguintes a refinar essa arte.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A Metade Devorada - Fim


We Can Fuck Forever - Rudzielec Madzia


Eu vi-me a ser demais enquanto via muito em ti. Tu és tão traiçoeira quanto os pássaros da alegria.

Aninham-se, parece uma luta, que uns cantem contra os outros, parece-me uma luta que ignorem o silêncio entre si: não descansa na solidão, odeia porque tenta alcançar o que não se alcança: outro.

Talvez porque éramos todos reflexos uns dos outros num espelho de corpos e as palavras faziam amor com as imagens, nós falámos. Abriste a porta e entraste. Estávamos de olhos vendados e corpos sem roupa, uma vela, entre nós, de pernas cruzadas, as mãos nas mãos: havia fogo que passava entre as coisas que éramos nos nossos corpos pequenos, cheios de uma chama que parecia grande e que nos apagou.

Tudo o que aprendi contigo é um pesadelo, quero-te morta sempre que te recordo, quero-te mais fria do que o gelo entre nós: quero-nos dormentes. Quero perder o acesso ao teu nome, contar-te como se fosses uma estória.

“Sinto que te conheço desde sempre, como se o mundo tivesse sido construído aos nossos olhos e sempre tivéssemos sido companheiros.” Quando eu desaparecer, e já não me conhecer, como tu nunca me conheceste, ainda te conhecerei, como sempre me conheceste.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Metade Devorada X


Fear - Ratpat 13


Existia mais um dia, com a luz da manhã fresca nas fossas nasais, e transpunha os portões de ferro e tinta gasta da escola de Oeiras, rindo-me, como sempre o fazia, quando passava pelo porteiro a que chamávamos, alegremente, de Mata-Ratos (às vezes, quando o seguíamos, perseguia-nos de punho fechado). O dia, porém, não ia ser alegre, excepto talvez quando descesse ao jardim com o Henrique à procura de pinhões, e os partíssemos à pedrada. Ás vezes, quando, de longe, na sala de aula de música, me abstraia na janela, via a linha de pinheiros e atingia uma coisa qualquer que estava para lá dessa linha. Pensava, ali, que descobria os padrões das coisas, e as sequências que constituíam os padrões das coisas não se assemelhavam nada à nossa pequena visão, ontem presa às ninharias da altura, hoje, amanhã, como se nada mudasse realmente. As marcas do tempo e do espaço tornavam-se mais como pequenas parcelas de uma pintura, cada uma com mil telas, e nem todas se encontravam na mesma tendência, pelo que, muitas vezes, seguindo determinados percursos, pensava descobrir quem sonhava o meu próprio mundo, e penso que uma vez, toquei os olhos do escritor deste conto. O Norberto, cego de um olho (porque o irmão o apedrejara), referia-se ao clítoris da professora em palavras de um crioulo não esquecido. Depois tocava o sino. Na escola, era sempre cinzento, era sempre manhã fria e lufadas cinzentas. As meninas cumprimentavam-me. “Esqueleto vai doze”, o Luís sorria com os comentários e depois o João Paulo, na sua bicicleta, vinha roubar-lhe os berlindes, torcia-lhe o braço e, ameaçador, eu protegia-o sempre.

Desvio-me da folha, escuto as paredes. As paredes vibram levemente, são paredes de um templo, são o meu segundo corpo. São a minha prisão, e, cá dentro, cabe o céu onde já pranteei todos os meus infernos e fui sempre, dentro de uma infinidade estranha, consolado. Estas paredes podiam ser um espelho de ti, mas não te aceitam, são muralhas, são muralhas porque eu sou o meu castelo. Sou independente, e por isso amo-te sem fraqueza. O meu coração é meu. Dou-o e nunca o perco.

As paredes desaparecem. Existe céu. Existes tu sepultada no céu. Escondida e aninhada no quarto escuro do coração, conduzindo sempre de renovado fôlego os fantasmas da exaustão.

Na escola, todos os sonhos eram pesadelos. O Luís era maior, porque dizia de mim as coisas más que haviam nele. O Luís Meireles era maior porque desviava todos os golpes para o meu peito. Hoje não pude jogar futebol. Balbuciaram qualquer coisa sobre os meus ténis. Amanhã penduraram-me só pelas pernas de um lugar vertiginoso, a queda era a morte. Amanhã gritei e fui içado, continuava vertigem, eu esmurrava o ar e ouvia os risos.

Fecho os olhos. Risos. Eu sou todos eles, eu sou as mãos nas minhas pernas que hoje estão doentes.
Fecho os olhos. Eles riem-se, a ver-me gesticular pateticamente no ar. Eu sou todos eles, e a mão de Deus.
Cigarro e silêncio. Vocês eram nuvens, eu esbracejava mas não vos tocava… vocês: o corpo de Deus.

Os montes tapam o rio de vidas que sou. Inscrevo sinais da parede, mudo porque sou cego, e imagino viver o que vivi. De repente, uma linha de pinheiros, e pela janela, uns olhos de criança fitam-me, compreendem-me.

A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende.” Mas eu conheci-te. Conheci-te quando olhaste para mim.

Até nos pesadelos existem momentos de prazer, e mesmo a mente quebrada, embora despreze o seu corpo e o seu ser, ou se conforme na humilhação para se tornar capaz de viver, prevalece na faculdade de perceber que o corpo tem um orgulho singelo de si mesmo, de existir e de estar onde está nas sensações que percorre. Ninguém percorre o meu corpo, o meu corpo percorre as coisas. E hoje, a exaustão, depois do exercício no ginásio da escola, faz-me um brilho forçado nos olhos apagados. Percorro o campo arenoso. Eu vi que ele olhava para mim porque olhei para ele sem medo, ainda não me aprendi a calar, e espero nunca aprender. Existem olhos nos meus olhos que se antecipam de medo e insistem em acelerar o passo, por isso, eu caminho lentamente. De repente, uma dor aguda e a minha cara encontra-se atingida, ao meu lado, uma pedra morre contra o chão, posterior à carne e ao sangue.

Ele disse-me: “As palavras são como pedras que cada um esculpe segundo o capricho próprio, e o egoísmo rouba todas as nossas verdades. Não comunicamos, roubamos. Não existe templo para a nossa expressão, existe o mercado do furto.”

A Eduarda tinha corpos que não eram dela, olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes dela diziam: “ninguém te compreende”. Mas eu gostava. Eu gostava de poder, pelo menos, morrer nessa vontade.

Na biblioteca, jogava xadrez, e, ano após ano, chegava, rompendo eliminatórias, à final. Ouvi-a declamar, por detrás de uma secretária trespassada em livros de palavras vazias a roubarem espaço vazio, a sua paixão por mim. Elas a rirem-se. Elas a troçarem de mim e do meu corpo. Elas a troçarem dela. Envergonhada, fitava o chão e desculpava-se. A partir desse momento esqueci o seu nome, e ainda hoje não me lembro. O escritor também não se lembra. Nem os padrões entranhados nos padrões seriam capazes de o recuperar.

Olhares dentro dos seus olhos, e vozes que não eram as vozes.
Estamos muito sós, a flutuar e a atravessar muitos olhos, túneis que desembocam em túneis que em túneis vão desembocar, e existe uma festa de semblantes aberrantes no quarto escuro do meu coração, quando acendem a luz, e o ruído cresce, eu termino em tudo o que conheço. Respiro, em bocas ocas, o desespero que já não desespera.

Risos, a sair de bocas ocas em bocas ocas. Torrentes. A tua mão calorosa? Meu anjo? Gratidão.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A Metade Devorada IX


Hollow Project - Garden of Bad Things


Bruma, não existe nenhuma caixa sobre o meu cérebro, não existe cabeça e não existem pés. Não tenho corpo mas tenho bruma negra e a percepção da bruma negra. Ninguém me ouve, ninguém escuta as minhas palavras, eu não as escuto, não tenho voz, onde estão os meus lábios. Peito, peito, incontinência. Dedos, dedos cheios de palavras e que só soltam musica: dedos que nunca conheceram palavras.

Demência, foi no que nos tornámos. Eras tu a tremer no teu quarto como se a morte da tua mãe, depois de dois anos, fosse ainda febre no teu corpo, a impedir-te de pensar, a impedir-te de amar, a gastar a cor das coisas. Oh como tu me querias magoar. Tornamos-nos em demência, eu quis cuidar de ti, quisemos cuidar de ti, e tu quiseste destruir-te sem aviso. Eu fui a primeira ferida que te fizeste. Éramos demência: éramos eu sem cortar unhas, sem me lavar, sem limpar os dentes: era o teu silêncio desconhecido e insuportável. “Somos estação”, e eu ria-me. “Somos estação”, repetia o absurdo.

Demência, foi no que nos tornámos, eu feria-me e escrevia para ti num sangue rosado pela folha branca. Não via nada, a dor era cegueira. Tu nunca aceitaste a minha carta, nunca leste o meu sangue. Depois era praia, era os meus movimentos nos dias como se fossem todos eles movimentos de fugir. Eram os olhos, naquele dia maiores, da minha mãe, uma presença clara, “Calma, tu queres viver tudo ao mesmo tempo. Calma, ainda és tão novito”. Eu repetia, repetia essa verdade em mim: “Eu sou tudo, vivo, em cada detalhe. A minha presa são os momentos, o meu rebanho os segundos.”
A água de Tróia conseguia, por um momento, eclipsar o resto do mundo, juntei a si as minhas lágrimas, o meu interior, que doía, parava só por um instante, de doer lá fora como carne esfolada, esfolada de ti, de não estares nela.

Mentiste-me, quiseste magoar-me cada vez mais: destruí-te com uma só estocada, foste pior que nada: foste sangue por debaixo de cascos de cavalo, sangue que se une à lama de gente que se arrasta de ossos quebrados de luas partidas.

Não tinha boca: O mar fala de coisas de mim: o mar fala de coisas que nunca vi: que perdi para sempre. Tu, quando irrompes das coisas. Formas com demasiado conteúdo, quebravam o mundo.

A Metade Devorada VIII


The Betrayal - Garden of Bad Things


Muitos nomes. Existem muitos nomes em muitas bocas com várias letras, e tu és uma combinação perfeita de letras compostas de sonoridade. Depois, há muitas bocas que exalam o teu ar e pronunciam o teu nome enquanto o ouves, porque, no dia a dia, se cruzam em ti e contigo e te interrompem o ser e dão novas direcções ao olho do espírito. De todas essas vozes que acompanham a tua vida eu nunca ouço o alento, eu nunca ouço o teu nome, ninguém diz o teu nome na minha vida, por isso eu articulo-o muitas vezes nas minhas cordas vocais. Existem todos aqueles que interrompem o teu ser, eu seguro-o todo como um berço de céu, não te atravesso, corro contigo, corremos e somos um só correr.

Condenados ao espelho… Condenados ao espelho…

Caio e rasgo a pele, rasgo a pele e uivo, pareço sentir as alturas das árvores nocturnas como gestos que me tocam, a vida entre a vegetação e os sons longínquos, todos ao alcance do meu acto voraz.
Vislumbre de ti, os meus olhos laranja pintam-te e engolem-te, a minha pelugem é um fogo de Vontade, enrolo-me sobre as tuas coxas descobertas de Luar, mas queimo-te, mas queimo-te. É a tua mordedura em mim. Voraz no sangue que pulsas, voraz na nossa santidade, por um verso de pecado orgulhoso, por uma lua menstruada que nos banhe.
As nossas noites são mentira, e hoje acordei numa noite sem mentir, hoje eu desejo a neblina uma vez mais, na brancura da verdade e nos corredores entre os tempos. Este lobo é um guardião de momentos, os momentos são o seu rebanho, e os segundos as suas presas. Uma lufada de um novo ar e tu cais, a tua carne espirra um perfume desagradável a queimadura, a pacto, e eu desprezo-te, hei de ser eu, sua puta, em cada homem que entrar nas tuas fendas para então cuspir sobre o teu corpo, abandonar-te à exaustão, deixar-te para trás sem olhar para trás, quebrar cascas de ovos pisar os teus beijos e estilhaçar dentes razos ao chão.

Todos os sonhos, são sonhos demais. Toda os sonhos que não sonhamos, são sonhos de menos.

A serpente enrolava-se muitas vezes e eu perdia a conta dos seus desenhos, ela não tinha pele à excepção do calor das mãos enlaçadas, e voltava a traçar as tuas formas no espelho do meu coração, reproduzia o teu riso nas paredes do meu corpo, quando o teu riso dizia o meu nome e eu te salvava, ou quando uma gargalhada de ti deixava escapar o teu nome e me redimias de todos os contrários. Éramos espada e cortávamos o ferro das impossibilidades. Levo-te e o nosso rio come o mar. Vai-te embora, esqueço-te todos os dias. O mar fala-me de ti. O mar fala-me de coisas que eu nunca vi. Estamos sós em todos os cantos que não iluminamos. Fingimos muito, não é?

Fins. Danças e cartas desviadas. Formas desvairadas e saudosas, formas que contem demais para formas. A morte não é nenhum de vocês, a morte não és tu, metade-devorado, nem o simples e infindo vagabundo, a morte é aquilo que vocês impedem, é aquilo que, não alcançando, me rasga o peito e cospe estas palavras sangrentas, convulsiona estas mãos a auto-mutilarem-se em publico. Queimar, queimar e perfurar na queimadura, os olhos cegos e ardentes de todos os leitores: ninguém compreende, os olhos que ofuscam e possuem são os buracos na minha pele, são os meus sentimentos desfigurados em textos erráticos: que corrompem a verdade a cada leitura, que me amarram e me apagam no tempo. As obras não imortalizam, as obras apagam os autores no tempo: desvanecem, irreconhecíveis..

Não há chão. Nunca mais quero chão.

Estávamos sozinhos, quando Deus decidiu queimar os homens. Todas as amarras desatadas, foi como se roubassem articulações, foi como o passar de mutilações: aqui não existes. Aqui tudo acorda e nada existe. Não existem mãos, tudo voa. Aqui as pinturas dissolvem-se, sopros estranhos arrasam os nossos ouvidos e escondem-se num lugar inalcançável. Somos livres: o nosso preço: mascaras, muitas mascaras, todas as mascaras: um monte que sepulta: o céu.

A noite escura da invisibilidade. Piso a noite com a cabeça. Caio e rasgo a pele. Rasgo a carne da terra com a cabeça, os meus pés pisam o céu (já não me ferem dentes pisados): Não há chão, nunca mais quero chão.

Lembrança: A noite escura da invisibilidade. Piso a noite com a cabeça. Caio e rasgo a pele. Rasgo a carne da terra com a cabeça, os meus pés pisam o céu (já não me ferem, dentes pisados): Não há chão, nunca mais quero chão.

A Metade Devorada VII


The Beast of Rejection - Brownboots


Era mais imbecil quando procurava comunicar espírito equipado de palavras bem estruturadas e supostamente sábias, e parecia extremamente inteligente e louvável. Porque devia saber que o espírito se expressa de silêncios imbuídos nas coisas. Então as palavras eram insanidades absurdas e as respostas eram como línguas torcidas: de repente o mundo era apatia persistente, crescente a cada teimosa investida.

Todas as coisas banais elevavam as emoções, e estavam até na ponta da língua, como se nós não fossemos intactos devido a segredos. Nas profundidades havia um selo de “sei lá”, uma entrelinha incomodativa de anões (com faces fragmentadas) que sussurram ao ouvido um “não sejas estúpido”.


Vamos para outro lado. Depois risos, e uma linha ténue de cor indigo a penetrar bisbilhoteira e desinteressada nas janelas sombrias e abandonadas das coisas. Nas janelas que às vezes davam para momentos de vida intensa, nas janelas que não possuíam guardiões e em que todos os guardiões são invasores de uma estranheza errática. Nas janelas quebradas de ilesas, que davam para festas de momentos que partilham as suas histórias de carne e sangue vivo: abandonadas eternamente, sombrias de só serem visitadas por olhos escondidos de tudo. “Nunca foste tu”, enrolava-se essa voz, “nunca foste tu a sentir, foi o sentimento das coisas.”

Vamos para outro sítio.

“Se, por um momento, pudesses definir com textura as gravidades mais abstractas, o que significaria para ti a Luz da qual Lúcifer é portador? E o que é isso, que atrai, como a luz solar as plantas, os homens ao Samadhi?” E ela dizia coisas sobre uma divindade abstracta, ao alcance do homem por via do conhecimento. Eu apostava que ela não existia - nem a pessoa, nem a divindade: de olhos como órbitas, de órbitas como cascatas de vazia escuridão (tão terrivelmente inundada de nada), nas dunas da pele contorcida em espirais de tempo que, frequentemente, se enganavam na direcção: em unhas negras e partidas cerradas contra um assento de brutalidades suaves e irreconhecíveis: com desertos de brasa e secura nas palmas das mãos e um coração oferecido aos deuses do tempo: um corpo despejado nos degraus que enganavam estrutura: observava o espectáculo de ilusionismo: ela dizia: conhecimento.
E depois, o ondular do sol intenso no pacífico mar, ela em palavras “orgulho sincero”, eu dizia “gratidão” porque os ouvidos se enchiam de um mel que colava as minhas fibras de volta. A bandeira dela era verdadeira, os leões são solitários.
O vento, a brisa que me tocou, que passou por mim e que não pude agarrar. Todos os homens.
Nós éramos alguma coisa. Se nunca te conheci, deixa-me repousar, um ultimo instante, na memória impossível de ti.

Eu queria ver como seria tudo quando tudo estivesse destruído.

Entrei, interno, nas folhas de Outono externas, e o mundo dançou para mim de novo. Assim, eu voltava daquela noite em que ela se desesperava nas paredes dementes da ausência dele, com que partilhou tortura e agonia até ao ponto do amor, com que criava lápides escarpadas para manchar um coração que me amava de morte. E cambaleava pelas ruas na manhã, depois de a erguer de uma cama de sepulto para que ela pudesse desfrutar de um dia de labor no café em que o patrão obsceno. Naquele beco em que o mundo todo não nos via e nós éramos mais completamente o mundo: que ela usava para falar de fábulas requintadas, nesse, vieram muitos cães. De mente tranquila em vibrações obsoletas, trilhava imponentemente, eles eram um redemoinho de bestas e os seus latidos não furavam, e os seus dentes conseguiam o interior de uma carne tanto amada como estranha. Ela não fora abalada, ela era as coisas e as coisas que eram eram isso mesmo, coisas que eram e já não são, coisas que são ela.

A Metade Devorada VI


Acceptance vs Rejection - Squish Squash


I

O gato, alvo e com um olho de cada cor, estava muito preso, muito apertado e respirava ar queimado e abafado, esfregava-se contra os vidros.

Vesti o fato de macaco branco, coloquei os óculos grossos e fingi que me entusiasmava, cobri os pés de borracha isoladora, fitei as portas largas e gradeadas e abri-as.

Então quando me dizia que a minha zona de trabalho passaria a ser o inferno, fixou-se no meu sorriso e foi-se embora, para o outro lado de filas de maquinas de aço que, por nunca pararem de se mover, podiam bem estar mais vivas que os operadores.
Por vezes os rádios soltavam uma melodia e, se esta melodia fora significativa noutros tempos, éramos invadidos por reminiscências de caminhos humanos, mas a névoa ao contrário de se abrir, fazia-se notar com mais insistência, sendo que os óculos fechados e embaciados do suor eram o maior grilhão que nos separava de tudo o que fora uma vez nosso.

Depois, quando nos atiraram para a sala vidrada e que não era, como tudo naquela cidade secreta com passadeiras e carros colossos de amarelos; e coisas que esmagam e coisas que queimam e coisas que prendem e outras que rasgam; quando nos atiraram para ali e todos iniciaram o processo de deitar fumo pela boca e engolir líquidos castanhos, ou aglomerarem-se como pequenos carneiros em filas por alimento; quando me atiraram para a pequena sala quadrada, senti-me asfixiado. Os passos e os olhares e respirar pesavam-me com o peso dos pesadelos. E ela, que estava por ali, não havia modo de surgir. E quando o fez, na sua falta de sorriso cansado, balbuciou qualquer coisa sobre eu não ir ter com ela, e depois como se não houvesse mais nada a dizer-me, sentou-se com uma desconhecida que era como se conspurcasse tudo o que era familiar e próximo. E eu pedi que se sentasse num outro lugar mais espaçoso, onde eu podia sentar-me também. Os deuses e o diabo sabiam porque estava na fábrica. Os deuses e o diabo sabiam que ela não respeitava a minha falta de dinheiro e que vagabundos poetas se amam por um dia. Ela, como se dormisse, não respondeu, e a sua colega fez um sorriso impossível.


II

De repente, toda a minha vida estava nela, e nas minhas praticas, nas minhas disciplinas sórdidas e bizarras. Depois ela, apoiando o coração na nossa solidão entre os quilómetros de Lisboa-Porto, e horas de trabalho ingrato que me emudeciam os lábios com revolta calada, e um olhar desesperado por escapatórias e soluções, sem que viessem, e dias que faltava e procurava que o meu currículo encaixasse por toda Lisboa; e dias que ela telefonava e eu calado, não nos falávamos quando falávamos, e ela tocava-me como despedidas a prepararem-se. Apoiando o coração na nossa solidão foi rachando-o e quebrou-o. Mas ela havia sempre de voltar, eu sei, porque, coração completo ou metade devorado, éramos casa um do outro, porque jurávamos que amávamos não para amar, mas porque não se continha.

Depois foi o silêncio total: Irreconhecível e fora da vida que se conhecia e concebia. Quatro dias paralisados. Depois uma mensagem: “Telefona-me agora”

Ás vezes, sempre com a mente na alquimia e no deserto, e naquilo que escrevia dia e noite sobre a alma das coisas se resumir numa só alma de coisas, vinha uma espécie de ladrão e esse ladrão, em vez de me roubar o coração, roubava-me a paz ao devolver-mo. Ás vezes aguentava muito, e lia Byron, Blake ou Yeats, depois chorava muito, e continuava a ler entre as lágrimas. De seguida chorava muito sem livros, só comigo e com os meus movimentos desregulados de círculos caminhados. Depois pegava no telemóvel, que tinha estragado quando ela me disse do outro colo, e tentava pessoas: pessoas que me pisavam, prostrando-me humilhado, em lições sobre mim mesmo, em castigos de quebra de eremitério.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Unhat


Behind the Scarecrow, II - David Eppstein


O Sol já está aí. Amerenê, anjo espanta-anjos, costumava eu, quando éramos ambos meninos, e tu vivias num cubo quebra-cabeças algumas vezes e outras crucificado no sopé da montanha, chamar-te, brincando. Não tens sombra na qual te manifestares, cá fora, e por isso posso falar-te directamente, sem ser para dentro. Vamos lá, velho falcão, espantalho encharcado, cujo riso é o chocalho das serpentes, a riqueza, em vez de engrandecer um homem, o diminui, e... a verdade não é diferente das formas das mulheres. Demónio lunar, com o falo de Osiris exorcizo-te e inverto o teu sexo.

No primeiro dia, após penetrar esse túnel de massa cinzenta, que o teu olho de ausência faz notar, passei a correr pelas memórias de criança, as mulheres de quando eu era criança, e que eram sobretudo as vozes nutritivas de si próprias. A minha avó. Ao contrário, nesse primeiro dia, que pareceu eterno, fui me tornando cada vez mais velho e elas tornaram-se meninas. E não compreendia porque brincavam com os meus membros de forma tão perversa, se outra coisa não possuíam além de inocência. Anjo diabólico, que te crês viril, sei te travestido sempre que te mostras ao mundo, até ao ponto mais cruel em que, menina, quase perdes o sexo. É nisso que descubro pois o teu sexo, a sucção que lhe é própria. No segundo dia todo o teu corpo e toda a tua iluminada pele ganharam o poder introvertido com que as bocas, longe da palavra, sugam. Sobretudo, reparei na estranheza do teu sorriso: uma sequência de vagas superficiais e espasmos musculares, sem modificação no profundo dos teus olhos. Descobri que nenhuma mulher tem ser além do corpo, e sentei-me a meditar sobre como não encontrara Isis o pénis de Osiris. Experimentei não te perguntar pela tua verdade, e em vez, te perguntar porque mentias: abanaste a cabeça, riste, e choraste. Compreendi que não compreendias a mentira. É bizarra a forma como, voltada para dentro, só olhas para fora, e através de ti me volto para fora e tudo encontro no interior. Por fim aprendi uma forma de te fazer amor, e descobri a tua última imagem, o teu desprezo por ser, eu, homem e depois por perder as qualidades do homem, mas o teu amor aumentava conforme aumentava o teu desprezo - e a verdade é que não conheces o desprezo, a tua maldade é não conhecer a maldade e a bondade somente.

Eu era o rochedo, que chamavas sem cessar. Pedra a pedra. E quando por fim cheguei ao mar, a tua labuta contra a costa não notou qualquer diferença. No entanto, tu, mulher velhaca e vesga, não percebes que foi de se me levantar, da carcaça, o espírito sobre os teus mares, que a escuridão (tão semelhante a ti própria) te aterroriza? O meu segredo foi além do teu.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sanita




Um sonho repetido assalta-me nos últimos tempos.

Estou a querer sair do mundo dos homens, receoso de que as suas toxinas me matem. Afasto-me com velocidade e tenciono roubar uma carrinha branca quando sou interceptado por uma negra muito bela que vem chorar no meu peito. Vejo esta senhora mudar de forma, ela não me vê a vê-la mudar de forma. Torna-se de ancas largas e enrugada, uma senhora das encruzilhadas. Não me quer deixar partir, por isso apresento-a a um conhecido que ia a passar. Enquanto ela se distrai eu pisgo-me.

Entro num armazém abandonado, que é a porta para fora do mundo dos homens, a minha visão fica turva e caminho como um ébrio, um corredor de sem-abrigo ofende-se porque, ébrio, os piso. Deseja roubar-me, convenço-os de que a única razão do meu titubeante caminhar é não conseguir dormir, o ruído do mundo dos homens não o deixa, e para isso ingiro demasiada valeriana. Por alguma razão eles identificam-se com isto, enchem-se de respeito e permitem-me passagem.

Do outro lado, não há porta de saída e a porta de entrada desapareceu. O local é um conjunto de refeitórios e laboratórios que agora fazem de quartos. Os homens são homens que perderam tudo, muitos deles criminosos, nenhum deles com uma família, todos sozinhos, sujos e com fuligem. As paredes do local cheiram ao óleo das fábricas. Ninguém se trata bem ali, todos estão em desespero solitário. De quando em quando, toca um alarme accionado por alguém lá fora, no mundo dos homens, que anuncia que será feita a descompressão do ar. Todos se atiram para o solo e tapam o nariz e a boca com quanta força podem, sabendo que se inalarem uma só vez morrem, enquanto o ar do mundo exterior passa pelas câmaras. Quando julgamos não aguentar mais, a descompressão cessa. Levanto-me, olho as páginas dos meus manuscritos e a minha saca, e reparo que pingam vómito. Tudo à minha volta pinga vómito. Pouco me importa, grito e rio e celebro estar vivo, os outros seguem a mesma ordem de ideias. Enquanto o faço, penso em quão humilhante é a minha condição. Tudo volta ao mesmo.