quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Vorcego


Infinitum Mr. Autumn - Mia Lavernne

Vários homens situam-se num cruzamento de estradas largas, munido de sinais luminosos, por onde não passam carros ou se avistam prédios. Por vezes, nas esquinas, cruza uma rapariga de negro e cabelos rubros, com o coração doente, e por onde passa existiram sempre edifícios. Todos se encontram frenéticos. Uns com os olhos parados, outros com os mesmos inquietos de ausência de objecto a ausência de objecto. Todos desviam o olhar da rapariga que vai morrer excepto um, que não vê mais nada. Deles há aquele que não era esse, e que estava vestido a gabardine de escuro cinzento e uma cartola, recebe um telefonema. O Sol tem um som ensurdecedor e agudo, como o orgasmo da terra. Cada floco de neve contém os braços de uma mulher (diferente da que dobra esquinas) cujo nome ele disse. O sujeito de gabardine riu e, sem mais, desligou o telefone. Pensou, antes de interromper as coisas que são pensamentos, e nós sabemos só uma certa chuva invisível e que talvez seja mais uma particularidade dos nossos corpos do que da cidade. Fitou o que havia em seu redor: a enorme urbanização de prédios espelhados, invisíveis e altos. Outro sujeito, de pendente e manga curta, e que não era o que olhava a rapariga, usava um veludo apertado e disparou “absurdo”. Um, que estava nu, com os cabelos sobre os mamilos, era o desejo liberto do que olhava a rapariga, e independente. Estava calmo pois tudo o que ele fitava lhe obedecia à sabedoria. Vez em vez, porém, tomava figuras de um lobo de cabelo fogoso, olhos clamorosos, e arturianos chifres de veado. Dirigia-se às coisas invisíveis, que os outros viam como cortinas ao vento ou sombras numa caverna, e, ao mesmo tempo, sempre para a rapariga ruiva, que devorava por causa do sangue e do sal da sua neve. Respondeu-lhes: “Nesta encruzilhada parada passam muitos carros que não sabemos, e nos atropelam. É preciso evocar a existência, para depois existir, primeiro criar um deus para que depois possamos ser, à sua imagem. É esse espectro, esse fantasma boreal que alguns apelidaram de Lua, ou de pus amarelado na lixeira.” Determinou. De repente, viam-se muitas térmitas, nas paredes invisíveis das coisas. O de gabardine cinzenta, acrescentou por fim que lhe apetecia voltar a beber, era um homem angustiado, porque no geral se encontrava demasiado embriagado numa espécie de profundidade e calmaria carnal para sentir o efeito dos licores que fazem acreditar que a vida algo tem a ver com uma sequência de eventos.

O Corvo Cego tentava imitá-los no que diziam: “Caiem e morrem as prostitutas do meu nome. Existir em todas as árvores e em nenhuma floresta.”


André Consciência

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