domingo, 12 de janeiro de 2014

Estava Escuro



Darkest Dreaming - David Sylvian
Estava escuro, quando ele abriu a boca e tentou sorver
Um pouco mais daquela substância almiscarada
De coisas que são nada.

Engoliu outro copo, com o olhar perdido no limiar
Do lume perdido no copo.

Vida madrasta e puta e gasta. Caralho
Para esta merda.

Depois viu as pessoas a passar, à frente,
Da escuridão evasiva. Decidiu libertar um pasmo
Uma onda de caos espasmódica. Uma soltura
De coisa nenhuma.

Ah, quem me dera a juventude que não cheguei a ter,
Os poemas que nunca fiz, as bocas que beijei,
Mas fazer amor de todas as maneiras que ficaram
Em cada pessoa. Que merda de vida, pensar que tu,
André, não estás aqui. E eu que sempre te odiei em segredo.
Nada passava por cima de ti e não estendias a mão a ninguém,
Tinhas raios, como esse esterco de astro que é a Lua.

Agora olha, como és mais um peixe no abismo fundo do oceano
E a vida largou tudo o que esperava que tivesses tido,
E não te sobrou nada, não conheceste o teu túmulo para te
Visitares e sobreviveres.

Deixa estar, nós nunca nos esquecemos de ti.
Espalhamos-te pelas coisas, as tuas cinzas, e lembramos
De nos lamber no espaço entre elas.

Não abras os olhos, muito menos
Nesta hora. Por agora, deixa-te levar
Como o Tubarão Martelo, pelas formas
Serem um veiculo de nunca se preencher
E deita-te nos planaltos do vazio, sem dormir
Insone como a mãe de mil filhos que se cospem dela
Como da água fervida se elevam as bolhas e a carne húmida
E esquecida, do amor antigo, ou da ferida indetectável que te roubou
O corpo e os membros forçando a tua alma a ganhar corpo e membros nas raízes
Cheias de sapos e fungos e putrefacções de corações humanos e algas negras com seringas.

Que gemido é este agora que se solta da tontura das estrelas amarem o raiar da manhã
E nada amanhecer deste lado do Sol, que arrefece com a leveza da morte
Ó, teu rosto amado pelo qual trocaria o poema e a luz e a centelha
Trocaria a vida e a estrela e a veia por essa mão pequena
O que faz na sarjeta o teu corpo exausto de morrer?
Quero lembrar-me de ti todos os dias como quem
Caixão próprio não tem.

André é só o nome no gotejar das grutas
Repletas de putas.


André Consciência

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