terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Unhat


Mulher com Cesto - Duarte Brasil



A escuridão encontra-me despido, o corpo quieto. Engasgado com uma serpente verde-esmeralda, um idoso e húmido falcão de tez cinzenta, vesgo de um olho - guardando o coração numa algibeira e a espada na outra mão - que se assemelha ao mesmo tempo com um homem e com um espantalho (anjo espanta-anjos, costumava eu, quando éramos ambos meninos, época em que o espécime vivia num cubo quebra-cabeças algumas vezes e outras crucificado no sopé da montanha, chamar-lhe, brincando), escuta-me enquanto falo com as sombras e deixa-se ver. Saúdo-o. Apetece-me fazer um jogo, e se as sombras desejam acompanhar-me, melhor companhia não encontrariam os meus sórdidos gostos. "Espantalho, algum dia eu serei feliz?" O espantalho ri-se com vontade, escancarando a boca como um pato. Eu também me rio, não por sentir qualquer alegria em particular, mas porque um arrepio, escalando as entranhas, o força. "Se aprenderás a rir-te, essa é que é a questão que deve ser posta." Responde-me. Sério, prossigo. "Espantalho, desejas-me mal?" O líquido da minha memória é penetrado por várias plasmificações que deixarei de fora desta narrativa. O espantalho é, de momento, um negro alto, de cabelo rapado e olhos escuros, escondidos, severos mas bondosos, que vive no interior da montanha, que o grifo guarda, onde acumulou as mais preciosas jóias do mundo (eu sei como, mas a falta de limites ai presente excede as paredes de Xibalba, e até o terror e a volúpia da Casa de Jaguares - sem o conhecer, nenhum homem conhece os mistérios da entrega). "Porque" vai esboçando as palavras, com um sorriso rasgado e simples, de inocente fogo no olhar, "quando um homem se torna próspero, sendo próspero para tudo o que o rodeia, é olhado com suspeita e encerrado no túmulo do inferno?" Os chocalhos que carrega nas peles de leopardo agitam-se sonoramente. Humedeço a boca com um som surdo. "Espantalho, és verdadeiro?" O seu traço banha-se de muitas formas de mulheres nuas em simultâneo, deixando, no centro, um túnel cinzento. "Como uma mulher". Daí em diante, como podereis imaginar que não exporia a intimidade de uma mulher ao público, também não relatarei que outros conhecimentos viemos a partilhar.


"Ele sentou-se para cumprir o desejo do seu coração, e pesou as palavras como o Segundo em Toth. A força que protegeu Toth levou a humildade aos deuses escondidos de Maati, que se alimentam de Maat durante os seus anos de vida. Eu ofereço as minhas libações enquanto ele abre caminho. Eu avanço, e eu piso a senda. Olhai para que possa continuar a avançar, e que eu possa atingir o vislumbre de Rá, e daqueles que oferecem libações."

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