Look at Your Hands - Babalith
Matei um mosquito. Posso seguramente dizer que matei um mosquito. Tenho na minha escrivaninha presentes de Natal que comprei e nunca dei a ninguém (por nunca ter voltado a ver um rosto meu semelhante). Uma colecção de livros espalha-se pelas duas divisões da minha casa e chega a escalar o chão tanto como a descer as paredes. Não gosto de móveis. O homem tem de sentir o solo, é o terreno que lhe dá força, o céu e a suspensão só lhe poderá trazer a fome e a fraqueza. Tenho uma cama muito semelhante a uma... tábua de tortura. E mantenho os olhos bem abertos toda a noite, não me permito descansar e ser invadido por essa luz divina, que de manhã (mas só de manhã) recua resignada para se esconder nas fendas húmidas da terra. Tenho latas de comida, gravadores, instrumentos musicais vários, taças, ramos (alguns arrancados e queimados outros arrancados e deixados a cru), incenso, insecticida, punhais, sinos, máquinas fotográficas, desenhos bizarros nas quatro paredes para me proteger de Deus e da justiça dos homens. Papel de prata emoldurado. Todas estas coisas fazem por si mesmas divisões aleatórias, com uma tijoleira de álbuns de música e algumas esculturas que me foram ofertando pelos meus serviços de mágico. Dossiers vermelhos com letras hebraicas sobre a bandeira de Portugal, e que muitas vezes quis queimar. Tenho uma só verdade com muitas versões e tenho um mosquito. Na ausência de persianas tapei as janelas com lençóis. Uma cartola. Uma bengala. Amontoados de roupa. Alguns livros estão assinados com o meu nome, como janelas para o exterior, o mundo dos homens, do qual nunca pude participar. Tenho luz apenas no computador e uma lâmpada encarnada sobre o meu réptil. O réptil, porém, não é o meu companheiro. O mosquito tem vindo, todos as noites, a visitar-me como um amante fiel e a trocar as carícias do sangue. Ao acordar a minha presença liga-se com muitas actividades, os meus sentidos seguem-na por inteiro e desdobram-se nessa direcção incerta, por isso, ausente, nunca havia chamado de mosquito ao mosquito (“aqui está um mosquito”). Apercebendo-me do sucedido, golpeei-o, de forma a entortar-lhe o corpo. Contemplei as suas misérias, as trémulas asas, que desfiz com os dedos à semelhança da cinza, e evocando todo o mundo para dentro de mim como um Deus canibal, friccionei uma mão contra a outra transformando a sua forma de insecto numa reluzente mancha de sangue. De dia, continuo a banquetear-me dos corpos de sonho que os homens deixam cair, como excrementos de sapo, e deposito na massa amarela resultante, uma legião de ovos, fundo, bem fundo, para que o anjo rapina os não encontre.
Belíssimo texto, ó lobo asceta! ;)
ResponderEliminarAbraço!
Sabes...
ResponderEliminarEstes textos (vários da casa de treva e da casa de lâminas), de coração, eu não gosto deles. Mas não poderia deixar de os publicar, também em mim existem vermes negros, tantos, que se lhes aponte a luz (e no entanto, por vezes desconfio que se criam a partir dela).
Asceta... :) eu sei que dizes meio a brincar, mas tenho provavelmente mais dor nesse título do que orgulho.