terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aos que se aquecem no frio

Ao Nodula de Nomada, por ser um poeta da memória (sem especiais pretensões literárias e escrito primeiro para o Fórum Abismo Humano)




Recordo-me. Eu e a vida não éramos dois. Eu e o mundo não éramos dois. As pessoas falavam e das suas bocas saíam as cores dos sons. Todas tinham painéis de fundo, como se estática de televisão mas com padrões próprios, às vezes imagens nítidas do que seriam, talvez, memórias. Nunca o soube ao certo. Não acreditava em Deus nem deixava de acreditar, ele estava lá, em toda a sua presença, e por isso eu não entendia como é que as pessoas tinham a coragem ou a necessidade de falar com Ele tantas vezes. Comunicava com Ele uma vez de cinco em cinco anos. Depois haviam as outras coisas. Havia o meu irmão ter medo de ficar sozinho comigo em casa, havia a minha mãe que deitava água benta em meu redor. O meu pai que acordava muitas vezes de noite para me ver.

Os Mestres separaram-se de mim e foi assim que se deu o começo da minha adolescência, e com os mestres o mundo. As vozes passaram a ser vozes que já não eram minhas (deixei de ver as coisas cá fora e passei a vê-las cá dentro). Pensava sobre tudo e tinha respostas sobre tudo que ninguém queria escutar ou compreender, respostas sobre tudo que levantavam o terror no conformismo da formatação social. Mas os mestres gritavam e eu gritava também e cada vez me sentia mais mudo, mais surdo, sobretudo mais zangado.

Depois, mudávamos de casa tantas vezes. Não sei ao certo para fugir ao quê. A última vez mudei para um sítio muito longe. Um lugar para o qual não me queria mudar, as pessoas eram totalmente diferentes, não conhecia nada nem ninguém e estava muito longe de tudo o que conhecia e encontrava-me suficientemente longe de todos os que conhecia para, naquela idade e naquelas circunstâncias, saber que nunca mais os ia ver na vida.

As respostas que eu tinha e que de um momento para o outro já não se inseriam no mundo, porque eu e o mundo nos havíamos tornado dois, sem aviso, tornaram-se mordaças. Já não estava zangado, estava irremediavelmente deslocado. De noite, quando todos dormiam, sentava-me no escuro e encostava a navalha às veias. O novo sentido da minha vida era o suicídio.

Lembro-me de estarem a gritar comigo, de pegar na faca de cozinha e dos estragos que me fiz. Os seus rostos aturdidos. A minha satisfação pelo silêncio. Como eu era ridículo…

Esqueci-me disso quando, no deserto da minha vida, a vi, no barco que seguia para Tróia. Ruiva, belíssima, ao vento. Apaixonei-me pela primeira vez e à primeira vista. Conheci-a nesse dia. A conversarmos ao vento, junto ao mar. Sem aviso, de súbito, nós dois a caminhar pelas praias sem destino, só os olhares e o som e as palavras e a intimidade repentina. Então eu, que não falava com ninguém, com absolutamente ninguém.

Ela estava doente, porque se procurara suicidar demasiadas vezes e o seu coração se tornara demasiado débil e frágil. A minha rosa. As coisas já não eram como antigamente mas eu sabia que, se tentasse, ainda a podia salvar. Se falasse com Deus mais uma vez, mesmo que Ele já não estivesse lá a minha vontade faria a ponte.

Ficava os dias e as noites a ouvir Nine Inch Nails, Depeche Mode, U2, Radiohead, Lenny Kravitz, Led Zeppelin e Pearl Jam, deitado no meu beliche, onde ninguém me podia ver, e pensava obsessivamente nela. Não pensava muito sobre o nosso futuro, pensava sobre o futuro dela. Esperava-a dentro de meses uma operação de alto risco vital. As probabilidades apontavam todas para a sua morte. Chorava na minha beliche. Um dia, antes de adormecer, falei com Ele. Na semana seguinte, já muito próxima da operação, ela voltou do médico com um sorriso naquele rosto, que era todo iluminado pelos olhos grandes e pelos lábios vermelhos, e disse-me que estava tudo bem. Que estava curada. Que não precisava de ser operada. “Os médicos estão incrédulos”, disse-me. Recordo-me como me preocupava, se ela morresse, eu sem saber a sua morada (porque tinha problemas em casa), ninguém me avisaria. Eu não falava com mais ninguém, ela não falava com mais ninguém, e por isso não conhecíamos ninguém em comum. Recordo-me de como olhava, ainda assim, tristemente para o céu e me dizia, apontando para Vénus, que se ela me faltasse e eu a quisesse, deveria dirigir-me àquela estrela. Disse “prometo que te escutarei”. Acho que foi a coisa mais cruel que ouvi até hoje.

Aliviado, não obstante, e pronto a viver a vida, escrevi-lhe o meu primeiro poema digno desse nome (se alguma vez escrevi um poema digno desse nome), um poema de amor. Via-a nos quadros que tinham flores, passava as mãos por eles e deixava-lhe uma mensagem em sussurro. Nunca mais a vi, nunca mais falei com ela (nunca leu o poema). Desesperei. Continuei a escrever, sobre dor, desespero, ódio (escrevi uma vez que, se não houvesse morrido, a mataria por me ter morrido). Descobri aquele tipo que era fã de Garbage e que a conhecia, disse-me: “A chavala estava doente. Morreu.” Assim, sem mais, com os óculos de sol irritantes e o sorriso cínico que o caracterizava.

Não falava com ninguém e por isso não falei com ninguém. Tinham-me deitado para uma fornalha fechada. Não foi uma fase difícil, nem complicada, foi uma fase absolutamente absurda. Em casa, constantemente sangrava e fazia os meus pais sangrar. Dia sim e dia não destruía o meu quarto. Quiseram internar-me, tinham fabricado uma teoria patética de que eu estava a ser violado nas casas de banho da escola. Mas a raiva retirou-me as ideias de suicídio, cresceu ao ponto da vida, a morte era-lhe totalmente insuficiente. Na escola, caminhava com outro rapaz, o Fanica, chamavam-lhe. Estávamos sempre os dois juntos e nunca conversávamos. Por vezes conversávamos com as outras pessoas, nunca um com o outro. Atirávamos tijolos aos vidros dos carros e fugíamos e queimávamos-nos com cigarros. Fechava os olhos, quando estava sozinho, e via um outro mundo, bárbaro mas harmonioso. Via um réptil cheio de luz. Durante todo aquele período, é a única coisa boa de que me recordo. Por mais estúpido que pareça, disso e de ter montado um teatro de fantoches, a minha personagem era um lobo malvado. Gostei muito disso.

Depois deixei o Fanica, e fiquei só comigo. Procurava entendimento e encontrei-o na literatura, na música, na pintura, na filosofia (principalmente a renascentista) e na espiritualidade. Encontrei-o em Allan Poe de amores pela sua esposa falecida, em My Dying Bride com a sua “For My Fallen Angel”, com o folclore que procurava ressuscitar dos mortos os amores perdidos, o mito vampírico, a saudade de um W. B. Yeats, a alma viúva de Garret, o “Elizyum” dos Fields of the Nephilim, as fantasmagóricas curtas metragens de Samuel Beckett. Foi a arte que me acalmou, especialmente o romantismo, o neo-romantismo, o surrealismo e o absurdismo, e com ela o gótico. As minhas paredes eram um conjunto de textos, poemas, e pinturas (parte textos meus e poemas meus).

Vestia-me ao estilo de vagabundo, tirava fotografias em caixotes de lixo, e passei a vestir-me de preto, um pouco mais arranjado.

Aqui onde moro, não existia nenhum gótico, nenhuma gótica, e eu não conhecia nenhum gótico nem nenhuma gótica, nunca tinha falado com nenhum.

A contina perguntava-me: “sempre tão triste, de preto, morreu alguém?” Se apenas soubesse. Mas respondia-lhe com um sorriso forjado: “Estou de luto pela sociedade – não sabia que ela morreu e que nem deu no noticiário? Além de que, todos os dias, perecem incontáveis indivíduos por serem tratados discriminadamente, sem dignidade ou respeito.” Entristecia-me, embora pareça divertido, se pensava nela e me interrompiam com um “estás a pensar na morte da bezerra?” Dizia que estava a pensar num trecho qualquer do Livro do Desassossego, lido na biblioteca durante o almoço.

Gotchise. Baptizaram-me de Gotchise, por causa de Cotchise, o último chefe de tribo apache a morrer livre, e do gótico. Esse ainda é o meu apelido hoje em dia, aqui onde vivo. As novas vagas adolescentes provêem de infâncias problemáticas, e encontram, algumas, conforto na estética e na música. Hoje, os ditos góticos não faltam em número. Podem não se interessar por arte além da música, dos filmes e do estilo visual, mas é a vida que conta, é aquela qualidade secreta. Não os abomino como vejo tantos fazer. Amo-os e olho por eles com a vida.

Costumo lembrar-lhes de como ganhei interesse no humanismo mas sobretudo na humanidade: por toda a incompreensão sofrida, há que compreender duplamente. Só assim nos tornamos sábios, cultos e astutos como serpentes. Compreender a humanidade (que não se compreende a si mesma), todavia, é mergulhar de cabeça no pacto com o Diabo. É encarar de frente tudo aquilo que o vulgo homem disfarça; encontrar a besta em campo aberto e ela sermos nós, e faze-lo com a benevolência maternal, a calma e a paz que à morte dizem respeito.

2 comentários:

  1. Não posso comentar... Tu sabes.
    Mas posso dizer-te que gostei, que lia o livro inteiro, se isto fossem duas páginas de um livro.

    Beijo, Gotchise. (Adorei o nome: adoro índios e sou gótica ;)

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  2. Wolf, escrevi aqui uma resposta mas, uma vez que o espaço não o permite (existe um limite de 4,096 caracteres, não sabia), vou deixar-ta no meu blog.

    Abraço!

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