domingo, 31 de janeiro de 2010

Sobre "Nós, os Nephilim"

É uma sátira a toda a merda que se absolutizou na literatura só porque foi dito por fulano x. Fulano x, em determinada época do romantismo, deixou de ter de se usar da inteligência e do engenho, bastou-lhe a manha do hipnotizador. O pessimismo absurdo e ilógico tomou o lugar da filosofia, e a seguir o da moral. Este é o outro lado da moeda, e de como é igualmente, em algumas partes, ridículo, noutras relativo, mas só este lado da moeda está deslocado.

Quem ler algumas das entradas dos Nephilim chamar-me-à, e com razão, lunático. Eu direi que ele é desatento.

sábado, 30 de janeiro de 2010

O Cansaço dos Fantasmas

Dedicado à Marta


Any Other Name - Thomas Newman

Quem foste tu com quem vivi, com quem caminhei? O irmão, o amigo? Conflito e amor, treva e luz--serão trabalho de uma só mente, traços do mesmo semblante? Oh minha alma. Deixa-me estar em ti agora. Olha através dos meus olhos. Vê as coisas que tu criaste. Tudo brilha.

Thin Red Line
Tradução de André Consciência




O homem que cavalga longamente por terrenos bravios, sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos oculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça ha o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.

Italo Calvino

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Nós, os Nephilim - VI


Flightless Dreams - Obselete Angel






«Escolhemos o assunto, o segredo das obras-primas está aí, na escolha do assunto e no temperamento do amor»

«O autor na sua obra, deve ser como Elohim no universo, presente e visível em toda a parte»

«Os grandes artistas não são os rivais do mundo, são os seus copistas»

«A arte existe no instante em que o artista se aproxima da natureza»

«Os grandes artistas têm pátria»

«Na arte só uma coisa importa: explicar»

«Sabei que o segredo da natureza é corrigir as artes»

«Por vezes à noite há um rosto
Que nos olha do fundo de um espelho
E a arte não deve ser como esse espelho
Que nos mostra só o nosso próprio rosto»

«É gratuitamente que se descobrem os mistérios da arte»

«O grande artista é um homem completamente realizado e o pequeno tem ainda uma falha a compensar. O segundo consegue invariavelmente compensa-la»

«A arte dos sóbrios pode tocar-nos; enriquece-nos porque encontramos em nós essas normas»

«Toda a forma de arte é uma racionalização da harmonia de emoções no corpo do artista»

«A arte é o mel da alma amassado nas asas da felicidade e do trabalho»

«Por termos verdadeira vida temos arte. A arte começa precisamente onde começa a vida real, onde não há mais nada à nossa frente. Será que a arte não é mais do que uma confissão da nossa potência?»

«Toda a arte é harmonia entre dois semelhantes»

«A verdade é o pressentimento da arte»

«A arte é a mais bela das verdades»

«Toda a arte começa na satisfação física (ou no conforto) da partilha e da imparcialidade»

«A tarefa actual da arte é introduzir a ordem no caos»

«O verdadeiro objectivo da ciência é o prazer; em contrapartida, o verdadeiro objectivo das artes é a verdade»

«Toda a arte é completamente útil»

«A arte exprime sempre algo que não seja ela própria»

«O mundo não é um espelho para reflectir a arte, mas um martelo para forjá-la»

«A natureza é a mão direita da arte. A última só nos deu o ser, mas a primeira tornou-nos homens»

«A lei suprema do belo é a representação da arte»

«A arte é o absoluto lutando por ser auto-expressão»

«A moral deve ser um órgão artístico da vida humana»

«Estar, em qualquer ocasião, satisfeito: toda a arte está nisso»

«É através da perfeição e só pela perfeição, que podemos realizar-nos na arte; pela perfeição e só através da perfeição, nos podemos proteger dos perigos da existência irreal»

«A responsabilidade faz parte do prazer na arte»

«Os espelhos são usados para ver a alma. A arte, para ver a cara»

Nós, os Nephilim - V



Isa la Bruja - Crying Angel





«Todos os homens fecundos da natureza se desenvolvem de uma maneira altruista; o altruísmo humano, que não é egoísta, é fértil»

«Os homens assemelham-se às crianças, que adquirem bons costumes quando acarinhadas; por isso, deve-se ser muito condescendente e amável com todos»

«Um homem não é feliz porque tem humildade, mas porque ela o devora»

«Experimentar tudo por prazer, eis um método utilizado para conhecer a humildade»

«Quem sente a serenidade de vir a ser mais, chegará a ser tudo»

«A consolação que oferece o mais forte faz-me sempre consolar o lado do mais fraco»

«Os animais selvagens não matam por divertimento. Mas o homem é a única criatura para quem a tortura e a morte dos seus semelhantes é desagradável»

«Não serei um cão, um macaco ou um urso,
Apenas aquele animal humilde
Que por humildade se tornou racional»

«Posso ir em busca dos meus antepassados até encontrar um glóbulo protoplásmico atómico primordial. Consequentemente, o meu orgulho de família é algo concebível»

«É possível repousar sobre qualquer bem-estar de qualquer ventura, e tanto mais sobre a entrega. Na entrega há descanso e paz, e por isso é a maior ou a mais doce de todas as graças»

«A própria beleza determina os países e a moda»

«Sou sensato, e eis que assim uma força nova
arrasta-me por minha vontade, e o desejo
atrai-me a uma direcção, e a razão, à mesma:
vejo e aprovo o melhor, e sigo o melhor.»

«A natureza das coisas do mundo constitui-se de tal modo que é quase impossível encontrar alguma que não possua ordem ou conveniente em qualquer parte»

«É claro e evidente que o bem se insinua no homem mais profundamente do que supõem. Em nenhuma ordem social é possível escapar ao bem e mudar a alma humana: ela própria é a origem da perfeição e da virtude»

«Os bens de que gozamos exercem sempre mais a nossa razão do que os males que sofremos»

«A ignorância do bem é a causa do bem»

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Nós, os Nephilim - IV


Son(g) of the Angels - William Bouguereau


«A carne é chama, a alma é cinza»

«O homem é uma liberdade em que a alma permanece solta»

«De que serve ao homem conquistar a alma se perder o mundo inteiro?»

«A alma é aquilo que o corpo aceita»

«O real é invísivel. O mundo têm as suas almas»

«Muitas vezes, o corpo parece-me apenas uma simples respiração da alma»

«A alma humana é como um céu que atrai Lucifer, e Lucifer eleva-se nela»

«O corpo é a vaidade e o prazer da alma sã»

«O mundo move toda a massa da alma»

«A natureza pode ser chamada o centro da alma, a intermediária de todas as coisas, a corrente do mundo, a essência de tudo, o nó e a união do mundo»

«Uma alma viva é uma alma completamente conformada»

«Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer – eu não sou eu?»

«O corpo é a causa eficiente e o princípio organizador da alma vivente»

«Uma grande alma é sempre significativa ao pé da altíssima alma em cuja independência está»

«Quando o corpo, nunca hesitando nem se enganando, cravou as raízes para sempre num ideal de amor e de verdade, podem eleva-lo e acaricia-lo, podem-no tratar e hidratar, que quanto mais o acariciam, mais ele penetra no seio fresco que deseja»

«Os pensamentos mais belos e as ideias mais altas alteram o aspecto eterno do nosso corpo, como os Himalaias ou os precipícios modificam, no meio das estrelas do céu, o aspecto da nossa terra»

«Nada se assemelha ao corpo como a abelha. Esta voa de flor para flor, aquele de estrela para estrela. A abelha traz o mel, como o corpo traz a luz»

«O amor é a razão dos grandes corpos e faz-lhes merecer a glória, facultando juízo»

«Um corpo que se sabe amado, e que por sua vez ama, denuncia o seu fundo: - vem á superfície o que nele há de mais alto»

«Os corpos dos imperadores e dos sapateiros são tirados do mesmo molde»

«Se a chama que está dentro de ti se apagar, os corpos que estão ao teu lado viverão do frio»

«O que é que, produzindo-se numa alma, irá torná-la viva? - O que a tornará viva é o corpo»

«Que cousa é a conversão de um corpo, senão entrar um homem dentro do outro e ver-se a si mesmo?»

«Elohim, unindo-o em corpo e alma, fez o homem amigo de si mesmo»

«Temos mais de um corpo - ou então nenhum»

«O corpo é essa coisa que nos pergunta se o corpo existe»

«Há corpos que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-los»

«A grandeza de alma é inseparável da grandeza intelectual, porque implica independência. Mas, sem grandeza intelectual, a grandeza de alma não deveria ser contida, pois que cria a ordem, mesmo que tenha a intenção de proceder mal e de obrar com injustiça»

«Há em nós um segredo que nós sabemos. Mas é bom isso. Porque sabê-lo é decerto ganhar um corpo»

«Geralmente, o que nos leva a mostrar o fundo do nosso corpo aos nossos amigos é a confiança que temos neles, como a que temos em nós»

«O tudo desta alma e deste corpo é o mundo, não é a alma e o corpo»

«Estar todo em todo e todo em qualquer parte é propriedade só dos espíritos; e assim está em nós o nosso corpo»

Nós, os Nephilim - III


Giuliano Romano

Gênesis 6:4 Naqueles dias estavam os nefilins na terra, e também depois, quando os filhos de Deus conheceram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos. Esses nefilins eram os valentes, os homens de renome, que houve na antiguidade.



«Não há bastantes coisas proibidas pela lei. É preciso um proibir para si próprio outras.»

«Uma boa coisa só o é desde que praticada sem moderação.»

«A ordem é a maior romancista do mundo; para se ser fecundo, basta estudá-la.»

«As obras-primas devem ter sido geradas voluntariamente; a produção ao acaso não vai além da mediocridade.»

«Nós assemelhamos-nos à ordem.»

«Aquele que não deixa nada ao acaso raramente fará coisas de modo errado, e fará muitíssimas coisas.»

«As pequenas alegrias que nos abençoam a todo o momento podem ser consideradas como destinadas a manter-nos em descanso, a fim de que a serenidade necessária para suportar as grandes felicidades nos relaxe por inteiro durante a bonança.»

«Um acontecimento vivido é infinito, ou pelo menos liberto na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é ilimitado, porque é uma chave para tudo que veio antes e depois.»

«É desacreditando as rosas que as fazemos desabrochar.»

«O homem está pronto para tudo desde que não lhe seja dito com mistério; quem quer ser acreditado deve falar com clareza.»

«Representar é a realidade. É um acto de bondade que o actor inflige a si próprio. Essa bondade tem a ver com a lucidez e isso é algo de muito atractivo.»

«As asas do casamento são tão graciosas que são precisos dois, para dançá-lo, e, por vezes, três.»

«A grandeza da afeição pode medir-se pela grandeza das verdades: tão natural é amarmos aquilo que é perfeito.»

«A prova de um afecto impuro é uma lágrima.»

«Enquanto o poço não seca, sabemos dar valor à água.»

«Os homens estão dispostos a ser prestáveis desde o momento em que têm poder.»

«Todos podem salvar alguém, e não temos de nos abandonar a nós próprios.»

«Quem não quer ser aconselhado, ainda pode ser ajudado.»

«Elohim apenas fez o vinho, mas a natureza fez a água.»

«O álcool consola, preenche os vazios psicológicos, demonstra a presença de Elohim. Compensa o homem, anima a sua razão, transporta-o a regiões supremas onde é mestre do seu próprio destino.»

«As alegrias eternas encobrem os bens passageiros que elas próprias causam.»

«A alegria é a presença do tempo.»

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Nós, os Nephilim - II


Selo de Azazel



«É tão fácil observar-se a si mesmo quanto olhar para a frente sem se voltar»

«Não escaves dentro de ti. É nisso que está a fonte do bem, e esta pode jorrar continuamente, se nunca escavares»

«Para se conhecer a si mesmo não é preciso conhecer os outros»

«O conhecimento do próximo tem isto de especial: não passa pelo conhecimento de si mesmo»

«Se queres um escudo impenetrável, permanece fora de ti mesmo»

«Para suportar as aflições do próprio, toda a gente tem coragem de sobra»

«Por mais pretextos que demos às nossas alegrias, nada mais que o altruismo e a humildade as causam»

«Os ricos têm um feliz entusiasmo, os pobres feliz serenidade»

«A única coisa que me une a uma árvore ou a um monte de terra, é a felicidade»

«O improviso é que me faz suportar a morte. Às vezes acordo com este grito: - A vida! A vida! Valso sobre mim mesmo como sobre um sepulcro cheio. Oh! Como a vida é leve, como este único minuto com a vida pela eternidade eleva! Como a morte esplêndida é aborrecida e inútil! Tudo se passa, tudo se passa. Todos os dias dizemos palavras novas, cumprimentamos com sorrisos vários e fazemos diferentes mesuras. Descongelam-se os hábitos lentamente dissipados. O tempo cura: cura a ambição e o fel e torna as figuras sublimes»

«Tanto do que pode acontecer acontece...»

«Não há quem sustente uma luta mais fácil do que aquele que se tenta vencer a si próprio»

«Criador de anarquias sempre me pareceu o papel digno de um intelectual - dado que a inteligência integra e a análise fortalece»

«O amor-próprio é um balão cheio de eloquência, do qual saem bonanças quando o picam»

«Pode matar-se o amor-próprio; feri-lo, nunca»

«O amor-próprio é um anjo comedido, que consegue acordar sob as mais benevolentes carícias, mas que estabiliza, consolado com a vida perante um simples beijo»

«Aquele que pode negar Elohim diante de uma noite estrelada, diante da sepultura das pessoas que mais estima, diante do martírio, é muito feliz e sem mácula»

«Nos dias de hoje, apenas nos ateus sobrevive a paixão pelo divino. Todos os outros se salvarão»

«Perguntaram um dia a alguém se havia ateus falsos. Você acredita, respondeu ele, que haja cristãos falsos?»

«O cristianismo fez pouco pelo amor ao torná-lo um pecado»

«Não há paixão mais altruísta do que a luxúria»

«Sempre encontrei no sexo uma grande virtude consoladora, e nada adoça mais as minhas alegrias vindas dos meus sucessos do que sentir que uma pessoa amável se desinteressa por eles»

«Só há um templo no mundo e é o céu. Nada é mais sagrado que esta força sublime. Inclinar-se diante de um astro é fazer homenagem a esta revelação na carne. Toca-se uma mulher quando se toca um corpo celeste»

«O nascimento e a castidade - a porta da frente e a porta de trás do mundo»

«A bestialidade é o produto de um longo polimento da carícia»

«Se as mulheres fossem mortais, conheceriam o último amante»

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Nós, os Nephilim - I


The Sons of God Saw the Daughters of Man that they were Fair - Daniel Chester


Os Filhos de Deus e as Filhas dos Homens

A mulher, amarrada à Árvore da Vida
cujos frutos baloiçam, primaveris, como almas
e as folhas brincam, na brisa, infantis
como corações que palpitam,
e arde-lhe, contra a pele, o seu cascalho
de fulgores que coabitam.

Incendiada, os seus ouvidos professam,
a sua boca escuta, engolindo palavras,
o seu ventre doa-se, cospe, prenhe:
o Espírito de Deus não permanecerá no homem
indefinidamente.

As crianças ajoelham-se, prostradas,
para se receberem.
Mudos, quietos, despertam,
fitam o mundo, que lavram com fogo,
aguardam que a idade, da idade,
os decifre.


«As sociedades humanas podem subsistir sem o exercício do poder. Nem sempre há o poder enquanto domínio para que os grupos possam viver organizadamente e sem violência.»

«Os espíritos põem à prova a adversidade.»

«O fogo é a prova do ouro, a paz dos homens fortes»

«Na esperança o homem encontra a sua salvação na paz»

«Há dois poderosos construtores: o tempo e a conciliação»

«A medicina da conciliação é celestialmente doce, e sempre fértil»

«Para que toda a energia da alma se desfira, a bonança da serenidade é-lhe necessária»

«A conciliação desperta em nós capacidades que, em circunstâncias desfavoráveis, teriam ficado adormecidas»

«A lisonja é uma moeda verdadeira que só tem curso por humildade nossa»

«Um sábio encontra sempre outro ainda mais sábio que o admira»

«Entre os homens, na maioria dos casos, a inactividade significa a contemplação, e a actividade, inteligência»

«Sejamos corajosos para com as nossas acções!, enjeitemos-las depois de cometidas! - O remorso de consciência é decoroso»

«Teoricamente, se a percepção é infinita toda a acção é finalmente útil e devidamente grátis»

«Sentiríamos frequentemente orgulho das nossas mais belas acções, se o mundo conhecesse todos os motivos que as fundamentaram»

«É fácil pensar, é fácil agir, mas agir segundo o próprio pensamento é o mais fácil»

«A felicidade pode nem sempre ser acção, mas não há acção sem felicidade»

«Quem pensar muito produzirá muito»

«O homem que sofre não age»

«O homem que contempla não tem escrúpulos; só é escrupuloso o de acção»

«A inteligência só conduz à acção, ela é a fé que dá ao homem o ímpeto indispensável para agir e o entendimento para perseverar»

«Todos os homens são insensíveis enquanto espectadores. Mas todos os homens se tornam sensíveis quando agem»

«Após a acção, a filosofia é indispensável»

«Quase todos os homens vivem inconscientemente no entusiasmo. O entusiasmo é o fundo da vida, foi o entusiasmo que inventou os jogos, as distracções, os romances e o amor»

«A vida é aquilo que nos empurra para o que nos havíamos proposto»

«Para triunfar na paz pela vida, o homem tem de ter uma grande inteligência e um coração de fogo»

«A vida é fascinante: não é preciso olhá-la através das lentes correctas»

«A vida é um paraíso, os homens sabem-o e preocupam-se em sabe-lo»

«Somos feitos de céu, mas temos de viver como se fossemos de carne»

Unhat


Mulher com Cesto - Duarte Brasil



A escuridão encontra-me despido, o corpo quieto. Engasgado com uma serpente verde-esmeralda, um idoso e húmido falcão de tez cinzenta, vesgo de um olho - guardando o coração numa algibeira e a espada na outra mão - que se assemelha ao mesmo tempo com um homem e com um espantalho (anjo espanta-anjos, costumava eu, quando éramos ambos meninos, época em que o espécime vivia num cubo quebra-cabeças algumas vezes e outras crucificado no sopé da montanha, chamar-lhe, brincando), escuta-me enquanto falo com as sombras e deixa-se ver. Saúdo-o. Apetece-me fazer um jogo, e se as sombras desejam acompanhar-me, melhor companhia não encontrariam os meus sórdidos gostos. "Espantalho, algum dia eu serei feliz?" O espantalho ri-se com vontade, escancarando a boca como um pato. Eu também me rio, não por sentir qualquer alegria em particular, mas porque um arrepio, escalando as entranhas, o força. "Se aprenderás a rir-te, essa é que é a questão que deve ser posta." Responde-me. Sério, prossigo. "Espantalho, desejas-me mal?" O líquido da minha memória é penetrado por várias plasmificações que deixarei de fora desta narrativa. O espantalho é, de momento, um negro alto, de cabelo rapado e olhos escuros, escondidos, severos mas bondosos, que vive no interior da montanha, que o grifo guarda, onde acumulou as mais preciosas jóias do mundo (eu sei como, mas a falta de limites ai presente excede as paredes de Xibalba, e até o terror e a volúpia da Casa de Jaguares - sem o conhecer, nenhum homem conhece os mistérios da entrega). "Porque" vai esboçando as palavras, com um sorriso rasgado e simples, de inocente fogo no olhar, "quando um homem se torna próspero, sendo próspero para tudo o que o rodeia, é olhado com suspeita e encerrado no túmulo do inferno?" Os chocalhos que carrega nas peles de leopardo agitam-se sonoramente. Humedeço a boca com um som surdo. "Espantalho, és verdadeiro?" O seu traço banha-se de muitas formas de mulheres nuas em simultâneo, deixando, no centro, um túnel cinzento. "Como uma mulher". Daí em diante, como podereis imaginar que não exporia a intimidade de uma mulher ao público, também não relatarei que outros conhecimentos viemos a partilhar.


"Ele sentou-se para cumprir o desejo do seu coração, e pesou as palavras como o Segundo em Toth. A força que protegeu Toth levou a humildade aos deuses escondidos de Maati, que se alimentam de Maat durante os seus anos de vida. Eu ofereço as minhas libações enquanto ele abre caminho. Eu avanço, e eu piso a senda. Olhai para que possa continuar a avançar, e que eu possa atingir o vislumbre de Rá, e daqueles que oferecem libações."

sábado, 23 de janeiro de 2010

Conchas de Noite


Be My Shelter - Babalith

A última coisa que um anjo sente é o acto de cair sobre si próprio na mater-ia intumescente do mundo – não tanto do mundo como da sua saturada sombra, onde cada homem e cada mulher vive. A queda de um anjo, porém, não é algo que encontre final – e será legível intitular de queda a algo sem fundo ou sem solo onde cair? Não é aqui, todavia, que quero chegar. Por um lado, ainda que muitas vezes a aparência tenha apontado um outro sentido, nunca pretendi ser consolado pelo leitor, não será essa a tarefa mais alta da palavra, nem tanto me apresentei como um doente para o qual o leitor fosse a medicina, pois não se encontram, os meus médicos, entre as legiões humanas. Não, com a palavra procurei sempre erguer lampiões de cintilância, algumas vezes, e de negrume umas quantas outras, contra os inimigos do Homem.

Homem, tu, que és trespassado em todas as fibras pelo Anjo Caído nas suas múltiplas facetas e, um dia, conhecerás, límpido, o seu rosto (não, não creio que esse dia venha a chegar, e nem tanto sei se felizmente ou infelizmente), sabe que tudo trabalha contra ti. Trabalha contra ti o amor, quer o manifestes na carne, porque o manifestaste na carne, quer o não faças, porque ficou a faltar. Trabalha contra ti a amizade, por falhar redondamente, por acontecer (como tudo aqui) às escuras e aos encontrões. Trabalha contra ti a própria vida, com todos os pesos que faz, como uma sanguessuga primordial, prender à consciência enquanto a aperta irremediavelmente. Aqui, todos os espelhos estão distorcidos. Fecha os olhos, abre os olhos. A tua vontade assim o comandou (seria, pelo menos, de supor). Dedica um momento a sentir todo o teu ser de uma só vez, agora, com ele assim, abre os olhos! Abre-os! Saberás o que quero dizer, e quanto pus se agarra à vista para colar as membranas do espírito com o peso hipnótico. Trabalha contra ti o dinheiro, a tua própria casa, a chuva e o Sol, a noite e o dia, mortalha mortuária. Mas não tenhas medo. Porque tu és o Sol e a chuva, o dia e a noite, e só tu poderás sair vitorioso desta batalha.

Não tenhas medo, porque só o medo poderia cerrar os olhos da tua eterna alma. A tua alma é virgem, homem, e a tua alma é virgem, mulher: ela não se esgota , e pode impregnar-se de qualquer forma sem ser possuída até ao fim do seu ser (seria, pelo menos, de supor...). Atenção, viajante, olhai a prece do viandante. Muitas coisas se trocam aqui de posição: se para mostrar a real realidade ou para te enganar, só as encruzilhadas o poderão afirmar. Atenta que estás em Xibalba, onde até os fogos sagrados são ímpios e traiçoeiros, e todos os deuses são falsos. Mas confiai no meu conselho, a bondade é a mais poderosa das armas a portar no seio do caos. Tenho a dizer-te que enquanto os teus olhos estiverem colados e por isso a tua virgindade rompida, não ouses sequer sonhar com ela (com a bondade, isto é), ou eu próprio, que não sou dos mais esfomeados, devorarei, cheio de sede pelas estrelas, o teu coração (poderás constatar que vivo uma aparente dualidade entre o meu beijo, que cura, e a minha boca, que consome).

Um abraço.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aos que se aquecem no frio

Ao Nodula de Nomada, por ser um poeta da memória (sem especiais pretensões literárias e escrito primeiro para o Fórum Abismo Humano)




Recordo-me. Eu e a vida não éramos dois. Eu e o mundo não éramos dois. As pessoas falavam e das suas bocas saíam as cores dos sons. Todas tinham painéis de fundo, como se estática de televisão mas com padrões próprios, às vezes imagens nítidas do que seriam, talvez, memórias. Nunca o soube ao certo. Não acreditava em Deus nem deixava de acreditar, ele estava lá, em toda a sua presença, e por isso eu não entendia como é que as pessoas tinham a coragem ou a necessidade de falar com Ele tantas vezes. Comunicava com Ele uma vez de cinco em cinco anos. Depois haviam as outras coisas. Havia o meu irmão ter medo de ficar sozinho comigo em casa, havia a minha mãe que deitava água benta em meu redor. O meu pai que acordava muitas vezes de noite para me ver.

Os Mestres separaram-se de mim e foi assim que se deu o começo da minha adolescência, e com os mestres o mundo. As vozes passaram a ser vozes que já não eram minhas (deixei de ver as coisas cá fora e passei a vê-las cá dentro). Pensava sobre tudo e tinha respostas sobre tudo que ninguém queria escutar ou compreender, respostas sobre tudo que levantavam o terror no conformismo da formatação social. Mas os mestres gritavam e eu gritava também e cada vez me sentia mais mudo, mais surdo, sobretudo mais zangado.

Depois, mudávamos de casa tantas vezes. Não sei ao certo para fugir ao quê. A última vez mudei para um sítio muito longe. Um lugar para o qual não me queria mudar, as pessoas eram totalmente diferentes, não conhecia nada nem ninguém e estava muito longe de tudo o que conhecia e encontrava-me suficientemente longe de todos os que conhecia para, naquela idade e naquelas circunstâncias, saber que nunca mais os ia ver na vida.

As respostas que eu tinha e que de um momento para o outro já não se inseriam no mundo, porque eu e o mundo nos havíamos tornado dois, sem aviso, tornaram-se mordaças. Já não estava zangado, estava irremediavelmente deslocado. De noite, quando todos dormiam, sentava-me no escuro e encostava a navalha às veias. O novo sentido da minha vida era o suicídio.

Lembro-me de estarem a gritar comigo, de pegar na faca de cozinha e dos estragos que me fiz. Os seus rostos aturdidos. A minha satisfação pelo silêncio. Como eu era ridículo…

Esqueci-me disso quando, no deserto da minha vida, a vi, no barco que seguia para Tróia. Ruiva, belíssima, ao vento. Apaixonei-me pela primeira vez e à primeira vista. Conheci-a nesse dia. A conversarmos ao vento, junto ao mar. Sem aviso, de súbito, nós dois a caminhar pelas praias sem destino, só os olhares e o som e as palavras e a intimidade repentina. Então eu, que não falava com ninguém, com absolutamente ninguém.

Ela estava doente, porque se procurara suicidar demasiadas vezes e o seu coração se tornara demasiado débil e frágil. A minha rosa. As coisas já não eram como antigamente mas eu sabia que, se tentasse, ainda a podia salvar. Se falasse com Deus mais uma vez, mesmo que Ele já não estivesse lá a minha vontade faria a ponte.

Ficava os dias e as noites a ouvir Nine Inch Nails, Depeche Mode, U2, Radiohead, Lenny Kravitz, Led Zeppelin e Pearl Jam, deitado no meu beliche, onde ninguém me podia ver, e pensava obsessivamente nela. Não pensava muito sobre o nosso futuro, pensava sobre o futuro dela. Esperava-a dentro de meses uma operação de alto risco vital. As probabilidades apontavam todas para a sua morte. Chorava na minha beliche. Um dia, antes de adormecer, falei com Ele. Na semana seguinte, já muito próxima da operação, ela voltou do médico com um sorriso naquele rosto, que era todo iluminado pelos olhos grandes e pelos lábios vermelhos, e disse-me que estava tudo bem. Que estava curada. Que não precisava de ser operada. “Os médicos estão incrédulos”, disse-me. Recordo-me como me preocupava, se ela morresse, eu sem saber a sua morada (porque tinha problemas em casa), ninguém me avisaria. Eu não falava com mais ninguém, ela não falava com mais ninguém, e por isso não conhecíamos ninguém em comum. Recordo-me de como olhava, ainda assim, tristemente para o céu e me dizia, apontando para Vénus, que se ela me faltasse e eu a quisesse, deveria dirigir-me àquela estrela. Disse “prometo que te escutarei”. Acho que foi a coisa mais cruel que ouvi até hoje.

Aliviado, não obstante, e pronto a viver a vida, escrevi-lhe o meu primeiro poema digno desse nome (se alguma vez escrevi um poema digno desse nome), um poema de amor. Via-a nos quadros que tinham flores, passava as mãos por eles e deixava-lhe uma mensagem em sussurro. Nunca mais a vi, nunca mais falei com ela (nunca leu o poema). Desesperei. Continuei a escrever, sobre dor, desespero, ódio (escrevi uma vez que, se não houvesse morrido, a mataria por me ter morrido). Descobri aquele tipo que era fã de Garbage e que a conhecia, disse-me: “A chavala estava doente. Morreu.” Assim, sem mais, com os óculos de sol irritantes e o sorriso cínico que o caracterizava.

Não falava com ninguém e por isso não falei com ninguém. Tinham-me deitado para uma fornalha fechada. Não foi uma fase difícil, nem complicada, foi uma fase absolutamente absurda. Em casa, constantemente sangrava e fazia os meus pais sangrar. Dia sim e dia não destruía o meu quarto. Quiseram internar-me, tinham fabricado uma teoria patética de que eu estava a ser violado nas casas de banho da escola. Mas a raiva retirou-me as ideias de suicídio, cresceu ao ponto da vida, a morte era-lhe totalmente insuficiente. Na escola, caminhava com outro rapaz, o Fanica, chamavam-lhe. Estávamos sempre os dois juntos e nunca conversávamos. Por vezes conversávamos com as outras pessoas, nunca um com o outro. Atirávamos tijolos aos vidros dos carros e fugíamos e queimávamos-nos com cigarros. Fechava os olhos, quando estava sozinho, e via um outro mundo, bárbaro mas harmonioso. Via um réptil cheio de luz. Durante todo aquele período, é a única coisa boa de que me recordo. Por mais estúpido que pareça, disso e de ter montado um teatro de fantoches, a minha personagem era um lobo malvado. Gostei muito disso.

Depois deixei o Fanica, e fiquei só comigo. Procurava entendimento e encontrei-o na literatura, na música, na pintura, na filosofia (principalmente a renascentista) e na espiritualidade. Encontrei-o em Allan Poe de amores pela sua esposa falecida, em My Dying Bride com a sua “For My Fallen Angel”, com o folclore que procurava ressuscitar dos mortos os amores perdidos, o mito vampírico, a saudade de um W. B. Yeats, a alma viúva de Garret, o “Elizyum” dos Fields of the Nephilim, as fantasmagóricas curtas metragens de Samuel Beckett. Foi a arte que me acalmou, especialmente o romantismo, o neo-romantismo, o surrealismo e o absurdismo, e com ela o gótico. As minhas paredes eram um conjunto de textos, poemas, e pinturas (parte textos meus e poemas meus).

Vestia-me ao estilo de vagabundo, tirava fotografias em caixotes de lixo, e passei a vestir-me de preto, um pouco mais arranjado.

Aqui onde moro, não existia nenhum gótico, nenhuma gótica, e eu não conhecia nenhum gótico nem nenhuma gótica, nunca tinha falado com nenhum.

A contina perguntava-me: “sempre tão triste, de preto, morreu alguém?” Se apenas soubesse. Mas respondia-lhe com um sorriso forjado: “Estou de luto pela sociedade – não sabia que ela morreu e que nem deu no noticiário? Além de que, todos os dias, perecem incontáveis indivíduos por serem tratados discriminadamente, sem dignidade ou respeito.” Entristecia-me, embora pareça divertido, se pensava nela e me interrompiam com um “estás a pensar na morte da bezerra?” Dizia que estava a pensar num trecho qualquer do Livro do Desassossego, lido na biblioteca durante o almoço.

Gotchise. Baptizaram-me de Gotchise, por causa de Cotchise, o último chefe de tribo apache a morrer livre, e do gótico. Esse ainda é o meu apelido hoje em dia, aqui onde vivo. As novas vagas adolescentes provêem de infâncias problemáticas, e encontram, algumas, conforto na estética e na música. Hoje, os ditos góticos não faltam em número. Podem não se interessar por arte além da música, dos filmes e do estilo visual, mas é a vida que conta, é aquela qualidade secreta. Não os abomino como vejo tantos fazer. Amo-os e olho por eles com a vida.

Costumo lembrar-lhes de como ganhei interesse no humanismo mas sobretudo na humanidade: por toda a incompreensão sofrida, há que compreender duplamente. Só assim nos tornamos sábios, cultos e astutos como serpentes. Compreender a humanidade (que não se compreende a si mesma), todavia, é mergulhar de cabeça no pacto com o Diabo. É encarar de frente tudo aquilo que o vulgo homem disfarça; encontrar a besta em campo aberto e ela sermos nós, e faze-lo com a benevolência maternal, a calma e a paz que à morte dizem respeito.

domingo, 17 de janeiro de 2010

O Mosquito de Cristo e o Polvo de Freud


Look at Your Hands - Babalith


Matei um mosquito. Posso seguramente dizer que matei um mosquito. Tenho na minha escrivaninha presentes de Natal que comprei e nunca dei a ninguém (por nunca ter voltado a ver um rosto meu semelhante). Uma colecção de livros espalha-se pelas duas divisões da minha casa e chega a escalar o chão tanto como a descer as paredes. Não gosto de móveis. O homem tem de sentir o solo, é o terreno que lhe dá força, o céu e a suspensão só lhe poderá trazer a fome e a fraqueza. Tenho uma cama muito semelhante a uma... tábua de tortura. E mantenho os olhos bem abertos toda a noite, não me permito descansar e ser invadido por essa luz divina, que de manhã (mas só de manhã) recua resignada para se esconder nas fendas húmidas da terra. Tenho latas de comida, gravadores, instrumentos musicais vários, taças, ramos (alguns arrancados e queimados outros arrancados e deixados a cru), incenso, insecticida, punhais, sinos, máquinas fotográficas, desenhos bizarros nas quatro paredes para me proteger de Deus e da justiça dos homens. Papel de prata emoldurado. Todas estas coisas fazem por si mesmas divisões aleatórias, com uma tijoleira de álbuns de música e algumas esculturas que me foram ofertando pelos meus serviços de mágico. Dossiers vermelhos com letras hebraicas sobre a bandeira de Portugal, e que muitas vezes quis queimar. Tenho uma só verdade com muitas versões e tenho um mosquito. Na ausência de persianas tapei as janelas com lençóis. Uma cartola. Uma bengala. Amontoados de roupa. Alguns livros estão assinados com o meu nome, como janelas para o exterior, o mundo dos homens, do qual nunca pude participar. Tenho luz apenas no computador e uma lâmpada encarnada sobre o meu réptil. O réptil, porém, não é o meu companheiro. O mosquito tem vindo, todos as noites, a visitar-me como um amante fiel e a trocar as carícias do sangue. Ao acordar a minha presença liga-se com muitas actividades, os meus sentidos seguem-na por inteiro e desdobram-se nessa direcção incerta, por isso, ausente, nunca havia chamado de mosquito ao mosquito (“aqui está um mosquito”). Apercebendo-me do sucedido, golpeei-o, de forma a entortar-lhe o corpo. Contemplei as suas misérias, as trémulas asas, que desfiz com os dedos à semelhança da cinza, e evocando todo o mundo para dentro de mim como um Deus canibal, friccionei uma mão contra a outra transformando a sua forma de insecto numa reluzente mancha de sangue. De dia, continuo a banquetear-me dos corpos de sonho que os homens deixam cair, como excrementos de sapo, e deposito na massa amarela resultante, uma legião de ovos, fundo, bem fundo, para que o anjo rapina os não encontre.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Coração Punho


Exodus - Babalith


Farei do meu coração sanguíneo, um punho fechado
E sentir-me-eis impelido, a esmurrar
Sem que nenhum sentimento em particular
Me venha a impedir, o rosto frágil e pedinte dos afectos.

Isso farei, com particular apreço; de seguida
Escutarei falar da pátria que me vendeu
Ao Deus dos vadios famintos, e esse músculo
Da vida, formará o laço apertado de quem esgana
O seu soberano. Deste acto, a sobriedade será a imperadora.

Quando, por fim, o meu corpo cansado
Vier dar à costa da minha atribulação, e
O território escavar a areia com os ossos das nossas
Desilusões, terei esquecido o teu nome eterno.

O meu punho decompõe-se, formando moscas
Sem destino. O teu rosto escava a praia
Como a praia escava o teu rosto. Eu passei.

Horned Wolf

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Sonho de Orfeu



Gaita Galega

Quente o âmbar, e canta alguém,
Na noite Sol, coração também, luz:
Rosto de sal, silêncio imortal.

Femme et Faune

Um Novo Blogue Abriu


Née des feuilles

E Ela se ergueu triunfante do seu próprio calvário. Batendo de cascos num chão pueril onde pelos selvagens percorriam-lhe a maciez das coxas. A tez morena da sua pele outrora de cal no contraste das silvas, os seus cornos espiralados sob a testa morna de cabra, os seios chupados ainda humedecidos quer pelo orvalho quer pela saliva do Ente que a criou. Na sua vagina o leite derramado da eternidade.

Bona Dea vivante

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Promessas 6


Holy Grail - Edwin Austin Abbey


"Basta, não inflameis mais este fogo que me devora. Não é esta a morte que desejo porque me dá alegria e voluptuosidade demasiadas!"

Maria Madalena dei Pazi


"Uma luz deslumbrante brilhou de súbito com um ruído ensurdecedor que não era, de modo algum, um ruído; eles encontravam-se lançados na eternidade, num turbilhão de cores e de formas; depois houve um choque súbito e cairam cada vez mais baixo, mais baixo, mais baixo. Ele fechou os olhos aterrorizado, mais baixo, mais baixo, e eles continuaram a cair para sempre, mais baixo."

L. Langley


"Pareceu-lhe que ambos caiam vertiginosamente como num ascensor em que se tivesse quebrado os cabos de aço. De um momento para o outro seriam trucidados. Continuavam, ao contrário, a afundar-se no infinito e quando ela lhe enlaçou o pescoço, deixou de ser um desmoronamento, mas sim uma queda e, ao mesmo tempo, uma ascensão para além da consciência."

F. Thiess


"Havia (...) uma penetração funda, cada vez mais profundamente, para cima, para o alto, através da carne, através da obscuridade mole e ardente, intumescida, ilimitada, sem tempo."

J. Ramsey Ullman


"Sinto-te minha até à profundidade última, em mim assim como a alma se confunde com o corpo"

D'Annunzio


"É como se a alma penetrasse em todos os meus nervos."

Goethe


"Passou-se com ele qualquer coisa de misterioso, (...) Todo o seu ser se sentia penetrado como se lhe tivessem deitado na medula um bálsamo que o embriagasse instantaneamente. (...) Esta sensação não tinha começo nem fim, era tão poderosa que arrastava o corpo com ela, desligando-o do cérebro... Não eram os corpos que se uniam, mas a vida. (...) Nunca se inventaram palavras para exprimir este momento supremo da existência, do qual é possível ver toda a vida nua e inteligível"

Liam O' Flaherty


"Ele sentia ter chegado ao estado mais selvagem da sua natureza... Como mentem os poetas e todos os outros! Fazem crer que precisam do sentimento, quando o que precisam afinal é dessa sensualidade aguda, destruidora, terrível... até para purificar e iluminar o espírito é necessária a sensualidade sem frases, pura e escaldante"

D. H. Lawrence


"Por vezes, quando se encontrava nos braços dele, ela sentia-se invadida por uma espécie de torpor, quase clarividente, durante o qual julgava tornar-se, através da transfusão de uma outra vida, uma criatura diáfana, fluída, penetrada dum elemento imaterial puríssimo"

D'Annunzio


sábado, 2 de janeiro de 2010

Promessas 5


A Morte de Jacinto - Méry-Joseph Blondel


Numa morte viva eu vivo uma vida morta - o amor matou-me, ai de mim tal morte - que me vejo privado tanto da vida como da morte.

G. Bruno, Eroici furori, I, ii, 10.


Assim, morremos para viver somente no amor, unidos inseparavelmente, eternamente, numa união sem fim, ocupados só connosco.

Richard Wagner


O demónio, passa de um coração para o outro... Deixamos de pertencer a nós próprios! Demónio, demónio, torna-te um Deus!

Richard Wagner


A sua imagem apareceu-me na noite - e quase morri de angústia.

Khusrev


Fitaram-se já a morte e a voluptuosidade e os seus dois rostos tornaram-se num só.

D'Annunzio


Ele teria querido envovê-la, atraí-la a si, aspirá-la, bebê-la possuí-la de qualquer modo sobrehumano.

D'Annunzio


O símbolo divino - da Ceia - é um enigma para os sentidos terrestres; mas aquele que uma vez - de uma boca ardente, amada - aspira o sopro da vida - e cujo ardor sagrado - funde o coração em vagas de arrepios - cujo olhar se abre... - comerá do seu corpo - e beberá do seu sangue eternamente.

Novalis