quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Sede


Um Cadáver na Praia, Carlos Alberto R. S. Silva, 2008


Um beijo. Sonolento, arrebatado pela doçura, um beijo. O silêncio. Não bebi sangue. Foi um beijo, atrever-me-ia a dizer um beijo como qualquer outro. Ao Sol, os corrimões amarelos e a vista da praia de Sesimbra. O azul. Ele estava perto da máquina de escrever. As cortinas de céu. Os lábios de homem, ásperos e com feridas. Os meus lábios de rapaz. O vermelho incandescente dos pés da escrivaninha, um incêndio. A ausência de sangue e a velhice eterna. A sua pele encarquilhada, o seu corpo inclinado, débil, esvoaçante nas cortinas carcomidas. Observo nos espelhos. Os seus dedos já não tocavam piano. Incapazes de tocar piano. As pombas acumulam-se dentro da casa. Observo nos espelhos. O toque dos meninos e das meninas no meu pénis. A carne que morre quente. Observo nos espelhos. A neblina e ela salta, lá fora, eu estou dentro. O restaurante é quente por dentro. Outros dedos tocam piano. Lá fora. Desce o corpo esguio pela neblina na água negra da piscina. As mulheres que se sentam juntas à beira. Observo nos espelhos. A cave branca com música industrial, o ruído giratório dos patins. O corpo do rapazito. O silêncio no corpo do rapazito. O silêncio entre os instrumentos. O silêncio entrecortado da respiração. O azul. A humidade nas paredes da cave. O corpo esguio desce entre a neblina, em eternidades sucessivas. Os meus olhos afundam-se nas covas dos meus olhos. Os meus olhos afundados nos meus olhos. Os meus olhos afundados nas covas dos meus olhos. Os meus dedos tocariam piano.

A madeira funda e leve a flutuar no mar. Enegrecida. Mãos brancas. Tremem, no meu colo de vinho. A minha transparência. Todas as veias. O nosso sangue é o silêncio. Os nossos beijos são como qualquer outro. Lábios. Fantasmas molhados. Sonhar contigo. Observo dos espelhos. A menina estava sempre sozinha. As pálpebras dos meus olhos não existem. Globos brancos e o ruído dos globos brancos. A boca trémula e os lábios que se afundaram nos lábios. Os lábios que se derrocaram nas gengivas. O ruído vivo da dor. Só conheço os meus olhos fechados. O azul. As pombas morrem. A casa inteira-se de esqueletos de pomba. O ruído seco do chilreio de pardais, como agulhas. As mãos brancas na minha saia. Nas minhas pernas de rapaz. Todas as veias. O azul. O silêncio. O nosso sangue é o silêncio. O som surdo do rapazito. Devorado em sucessivas pausas movimentadas. Não haviam manchas no cadeirão. Carne podre. Fria. Fecho os olhos. Ele e ela sozinhos na fábrica que antes derrocou. Vida intensa. No seio da noite. Da solidão. O rosto de todos os fins a procriar mais um. Foram felizes. Os fantasmas molhados. Os lábios. A boca é a secura onde morrem as chamas. O estalido do silêncio. O azul. A madeira negra no mar. A agonia da espinha torcida como um ramo seco. O estalido do silêncio. Observo nos espelhos. Ela chora. São tantas as vozes. Ela chora. Muitos os lamentos. Ninguém escuta todas as suas vozes. Os seus dedos tocam piano. O silêncio das teclas. O silêncio do desejo. O silêncio do desejo de ouvir a melodia. A madeira surda do piano.

Poetas mortos nos rochedos. Observo nos espelhos. Sem roupa, o corpo mudo e carnudo. Com vergonha. Rubor sem som. Oferece uma concha. O vazio a ecoar. Ela estende a mão nua. Os ossos por debaixo. O azul. Ardor nos globos brancos. Ela esticada com formas. Apanha o objecto. O vazio a ecoar com força. Sentem-se felizes. É como se a praia fosse deles. De noite, nas paragens do silêncio do tempo. A noite é deles. A solidão. Sentem-se felizes. Juventude eterna. Todos os fins a procriarem mais um. Frio. A tremer. Os tendões a gritar. Aponta para uma estrela. Faz dela uma concha. A luz gritante da estrela no silêncio dela. Odeio-me. Os lábios cerrados. Todo eu. Os lábios cerrados. Engolidos. As memórias não salvam. Ela canta nos meus olhos. A minha vida é nos olhos cerrados. A intensidade febril dos bichos da madeira. O silêncio azul. A madrugada sem testemunha. Ela. O pé despido fincado na areia. Ele. Comparam as pegadas. Ele. Ri-se. O ruído das ondas. Ri-se. Ouço só as vagas. A espuma. Apatia. Quero rasgar tudo. Observo nos espelhos. Os ossos. Os ossos estavam vibrantes. As pernas eram velozes. Correm. A areia. Entulho. Madeira negra. A flutuar no mar. Riem-se, surdos. Quero gritar. Observo nos espelhos. O azul. O silêncio. O sangue. Os ossos. Riem-se. Surdos. O entulho. Queimam o entulho. Frio fugidio. As mãos, sempre uma na outra. Bailam. Os dedos. Ele adora os dedos. Fome de viver. O roupeiro. A intensidade febril dos bichos da madeira. Destroços. Sentem-se felizes. Juventude eterna. Magia. Testemunhas da madrugada. Ruído contínuo da luz. Agulhas. Pardais. Neblina. Os dedos, e ele a adorar os dedos. Ela. Está quieta, atenta ao respirar do rapaz. Queimam o entulho. Fogo. Escuto-o e não tem som nem calor. Deitam-se. Em redor da luz. Como agulhas. Lutam, riem. Não alcanço as vagas. Não consigo dormir. O sussurro desassossegado das vagas. Sem ar. Beijam-se. Beijam-se. Beijam-se. O azul. Observo nos espelhos. Beijam-se. Os lábios sumidos. Fantasmas secos. O azul das lágrimas. Lua. Observo. Frio avassalador. A neblina. A neblina limpa tudo. O gelo das noites. Sentem-se felizes. O estrondo mudo das vagas, do fogo. Observo nos espelhos. O gelo das estrelas. Suspiros longínquos, como garras. Os nossos beijos. Fantasmas molhados.


André Consciência

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