quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Carta na garrafa


Praia do Rosário – Moita, Erika Alexandra, 2006

Os rádios pousados no Outono verdejante das matas. Trazia o Walkman quadrado, azul. Depois fumávamos, orgulhosos das nossas botas, e conversávamos. Ainda muito novo, tinha a idade das brisas tristes e da brincadeira das luzes. Caíamos sem chão, sempre com mais que uma palavra sobre o voo. Olhava para ti, muito para o alto. Sabia muitas coisas que não te dizia, e tu, de mim, sabias sobretudo essa. “A vida é uma avalanche”, dizias, “uma grandiosa bola de neve a precipitar-se, espumosa e raivosa, na tua direcção,” abrias os olhos, “deve-se dela capturar todas as forças em proveito próprio.” Depois, já não conseguias fechá-los. Todos te desprezavam, a tua liberdade medonha. Eu não. Mas ficou de noite nas matas e eu comprei um rádio para mim, e sem querer, em tua memória. Outro dia, vi-te numa loja para crianças. Gritaste o meu nome de índio com a tua voz de vocalista, e sentámos-nos num café. Querias dizer-me estas palavras, e os teus olhos tão abertos e amados da insónia ocultavam qualquer sinal do teu olhar. “Estou feliz, com mulher dedicada, comprei uma vivenda em Alhos Vedros. O trabalho ao balcão é bom. Agora” disseste “sou uma pessoa normal.” Não te soube responder. Duas semanas a seguir a tua mãe contou-me do teu suicídio. Não lhe soube responder. Olha, fui à escola, há muita gente a comprar vivendas. Os tectos já não chovem e ninguém anda ao ar livre: há vidros e quadrados. Ninguém se lembra de nós, e ninguém queimaria um caixote do lixo. Também amo alguém. Disse-lhe que morreste. Olhou-me, e naquele momento era uma estranha. “Então e conta mais coisas”, soletrou, munida da voz mais bela que conheço. Depois, acho que aquele miúdo selvagem e desconfiado da sabedoria, dos afectos e da vida dos homens quis tomar conta de tudo o que se foi seguindo. Mas tenho algumas palavras agora. Abri um sítio como nós costumávamos sonhar. Um bar a meia luz onde as pessoas vão especialmente para abrir o olhar. Sorrio-te. Foste o primeiro a encontrar um lugar no mundo.


André Consciência

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