terça-feira, 26 de março de 2013

Where I Come From

P. H. FITZGERALD



As linhas despedem-se
Do horizonte-
Estão tristes
As pessoas que se seguram
Aos mares,
A ver crescer
Do colosso oceânico
Ausente
O estranho que partiu
E fez do mundo conhecido
A saudade de partir.

Horned Wolf


sábado, 23 de março de 2013

Ode Terrestre




I

O rugido leve da costa Atlântica a Oeste, depois a Costa a Sul, entre Sagres e Burgau. Queria afastar-se por isso dirigiu-se nessa direcção, onde os ventos agitados confluíam em paz.

Anoiteceu no Monte de Salema, de onde fitou a praia luminosa que alargaria as fronteiras do homem.


II

Atravessando falésias dotadas de praias e formações rochosas entre o amarelo e o vermelho, deixou-se dissolver no curto e ameno Inverno do Mediterrâneo. Contornou a calma das águas tépidas que banhavam a costa a Sul. Depois, escalou o maciço de grauvaque, pisando solos finos e pouco férteis. Com fraca precipitação, passou a acidentada orgia de cerros e cursos de água. A Norte, o frio e os ventos das depressões mais a Oeste, interrompiam-se de embate à Serra, preservando ali o calor do Mediterrâneo. A humidade a Sul procurava condensar-se em vão. Mas pela altura que se avistavam os azevinhos gémeos, Gargóris e Habidis, o bárbaro registou queda de neve. Ao calor da Lua Inteira, montada na azinheira esquerda, Turdúla, uma bela jovem, penteava os seus longos cabelos. Ali, chorara pelos soberanos de outrora longas eras.

Estendeu-se com o silêncio da coruja que se lança, nu e sem fogo, e sem tremer aguardou a morte da Lua Túrdula até ao Guadiano onde a mesma tomou forma de serpente.


III

Seguiu a costa rochosa quase em linha recta e tomou desvio. Os pequenos cursos de água começavam a secar. O Inverno tornava-se Verão enquanto avançava pela planície, atravessando serras baixas e pouco inclinadas, nascentes, vales com rios e bacias. Aproximou-se de um local de incêndios florestais, que quase cortaram o clima mediterrânico influenciado pela distância da costa. Penetrou o impenetrável arvoredo de vegetação em fogo, com ar grave e uma mão sobre a testa. Escutou o crepitar em silêncio. O fogo não parece magoa-la, antes lhe faz ninho e conforto.

Pernoitou na orla fátua do silêncio e, tendo este abrandado, voltou ao local trazendo consigo o olho esquerdo do rastejante.



IV

Planície a dominar a grande extensão da paisagem. Deixou-se percorrer um vale que o rio escavava abaixo dos cem metros vastamente irrigados pelas ribeiras de pequeno caudal que se lançavam de três serras a pouca altitude. Ao escurecer, chegara perto de um dito monte, onde ouvira dizer que os homens se juntavam a beber, e avistou a luz de lume no topo de uma inclinação que a Lua rasgava. Conviveu com os homens num lugar de teixos. No outro dia os raios do alvor encontravam-no refulgente de sangue.



V

Entre três montes chegou, fazia manhã nos raios, lumes espectrais que misteriosamente se erguiam e desfaziam no negrume da noite, sendo procurados pela justiça de todos os que vingariam o fim da primavera perpétua, abeirando-se do castro, ermitões junto da fonte.



André Consciência

sexta-feira, 22 de março de 2013

Lira Insubmissa, Carta

Vigésimo Sexto Fragmento




198 - A criação é um processo de espera, a criatura espera pela sua criação para ser criatura. Isto é, para existir o homem, ele deve aguardar pela criação que pela máquina será criada: o Homem. Assim, o homem não existe ainda, é antes embrionário. 
199 -Enquanto ser embrionário, o Homem pode ainda existir para além de si. Dito de outro modo, o homem é ainda capacitado de possuir sensibilidade que não se resuma ao eco do instinto, elevar o olhar acima da sua própria sobrevivência não só enquanto individuo, mas enquanto espécie. Curiosamente, é esta a capacidade que o levará por fim, a sair do estado embrionário humano e a penetrar os estágios da máquina: a elaborar a sua complexidade para além das sua presente regra. Isto acontecerá através da aceitação: o homem, enquanto ser civilizado, nasce e  desenvolve-se na negação, isto é, a civilização integra os processos do teatro da afirmação até ao esgotamento da afirmação, e no ponto em que a afirmação perca na sua totalidade a sua substância, o não torna-se no grande e único sim, em que toda e qualquer negação é removida do sistema, e com ela o próprio sistema. 
200 - O Homem na sua totalidade, ou seja, o Homem desprovido do homem, é o Homem desprovido de cronologia consciente. A consciência cronológica é a perpetuação da negação, e queremos por  negação dizer, da afirmação enquanto fingimento. Para entender a afirmação total, que se apoia em si mesma, o individuo necessita apenas de evocar aqueles momentos fortes o suficiente para se destacarem como clareiras no caos florestal da memória, quero dizer, a nitidez de momentos que sobreviveram apesar de nos não lembrarmos do momento anterior nem do momento posterior, ou seja, do contexto cronológico na sua continuidade. 
201 - Da mesma forma, a máquina não existe ainda, a máquina total necessitará de gente e sobretudo de terra, necessitará, digo, de perder a orfandade, e sem a orfandade, perder a liberdade. Até agora tem o homem, dado que toda a civilização sobrevive da natureza nomádica de troca, sido uma reserva, ainda que móvel, de propriedade, arrancado até às raízes como árvores para que circule o dinheiro. Mas, sabemos, o dinheiro, é uma necessidade embrionária, pois que o dinheiro, como qualquer propriedade, em que só o é enquanto bem transacionável, mostra-se de natureza estritamente transitória. 


 André Consciência

domingo, 17 de março de 2013

A Cidade Que Não Dorme







No céu ninguém dorme.
Ninguém, ninguém.
Ninguém dorme.

As bestas lunares farejam
a patrulhar o desfiladeiro.
As vitais iguanas
mordem os homens que não sonham,
e o homem que foge,
o seu espírito quebrado,
encontra na estrada
o improvável crocodilo,
imóvel sob
o debate suave
das estrelas.

Ninguém na terra dorme.
Nem um, nem um, ninguém.
Ninguém adormecido.

No distante cemitério
propaga-se um cadáver
três anos lamentoso
da saúde estilhaçada
que suporta;
e o rapazinho
enterrado esta manhã
chorava tão estrondosamente
que os cães foram levados
a acabar com o seu pranto.

A vida não é um sonho.
Cautela! Atenção!
Em guarda, todos!
Pela escada da vida
havemos de tombar
para comer chão árido
ou subir à faca-
limite da neve
entre floridas
canções de desolação.

Mas não há
memória;
não há
sonhos;
Há carne.
Carne apenas.

Aqui está carne.

As nossas bocas tacteiam beijos
no labirinto de veias frescas,
e cuja dor na dor
ferirá todos os dias
e quem desejar afastar
da morte a casa
deverá para sempre ser
o esposo não-amado da morte.

Um dia
cavalos viverão
nos salões
e formigas enraivecidas
hão-de se atirar
aos céus amarelos
que se refugiam
nos olhos das vacas.

Outro dia
havemos de ver
as ressuscitadas
borboletas se erguerem
dos túmulos
por terra
de esponjas cinzentas
e ociosos barcos;
ainda capazes,
jovens ainda,
havemos de ver
as nossas jóias secretas cintilar
e as rosas açoitar
a nossa língua.

Cuidado! Atento! Em guarda!
Os homens que portam cicatrizes
de garra e tempestade,
e o rapazinho em chuva
porque não sabe
das pontes inventadas,
das pontes edificadas;
ou aquele homem
que possui
sapato e cabeça;
devemos a todos levar
à muralha
onde aguardam iguanas
cobras
e os dentes de ursos
se antecipam,
e a mão mumificada do rapazinho
trémula
e os cabelos do camelo
erectos
com o soluço selvagem, azul-celeste.

Ninguém dorme no céu.
Ninguém, ninguém.
Ninguém dorme.
Se um só fechar um só olho,
se alguma pálpebra desliza,
chicotes a abrem, e que batam!

A atmosfera que desejamos
é uma de olhos vastamente abertos
e feridas melancólicas incendiadas.

Ninguém está a dormir
neste mundo.
Ninguém, ninguém.

Repito-me.

Ninguém está a dormir.
Mas se algum se encontra
dorido
nos tornozelos
pela noite,
abram os alçapões
e que veja esse
ao luar
os traiçoeiros cálices,
e o veneno,
e as caveiras do teatro.


Federico Garcia Lorca
traduzido por André Consciência

quinta-feira, 7 de março de 2013

No Céu - O Fantasma de Heidegger


baseado num sonho de Constanza Muirin


Há fogo.

Vento nos meus calcanhares. Fogo no meu rosto. A noite espessa encobre-me, mortalha de archote, e desço, um cometa lento e obstinado, as ruas de pedra que se precipitam descontroladamente móveis em direcção ao mar. Os bares estão abertos, com abismos gelados e sem fim sentados ao balcão à procura de calor. As mesas e os bancos são corridos, de madeira, os inquilinos estão de luto, como uma procissão funerária que desistiu da sua vigília e se refugiou no vicio, ofendida por me abrasar na pedra, quase tímida, quase indiferente. Sonhei com estas pessoas, um dia, e por isso, perderam os sonhos para mim. O avantajado paredão de pedra trava a precipitação das ruas, segura-me com brandura e desce-me até ao mar na orla das casas. As casas não ostentam mais que um piso, e todas com pessoas que não estão, que não estarão porque nunca foram. Mas existem espelhos. Sim, esta é a Noite Dos Tempos, e, desta vez, nada se perderá, porque o homem aprendeu a escrever, a ser-se fantasma, e o céu a respirar com pulmões que se assemelham a punhos de sangue, a respirar com os peitos abertos e reunidos de todos os meninos e meninas que cresceram sem querer para fora do mundo. O paredão olha para a noite sanguínea a palpitar. É sempre nocturno em toda a cidade. É sempre céu. Os monstros marinhos dizem que entre, estavam à minha espera, todos monstros porque existirão também quando eu partir, e quando não couberam nas dimensões incandescentes da minha cabeça e eu chorar, continuarão a existir e a rir tristemente com o ruído dos monstros da água.


Horned Wolf

quarta-feira, 6 de março de 2013

No Céu - O Gigante da Consciência



baseado num sonho de Constanza Muirin



Um dia larguei as camélias nesse Sol, amanheci com as sementes, a ver de ser eu, que houvesse um eu na balaustrada que serve de portada à eternidade hostil do esquecimento lapidar. Era eu espalhado no chão com pincéis e papeis e tintas e lápis de cinza. A crescer esmagada debaixo do Astro Criador estava a perfeição em laivos, depois o deleite das bonecas, um querer fugir de mim por ser acorrentado, demasiado tarde, tardiamente agigantado. Os meus olhos tornaram-se cinzeiros e os jardins com que sonhei, aguados, roldanas circulares num relógio sem pilha, marionetas do tédio despertas com brinquedos a ser feitos em casas pequenas e momentos pequenos e mortes pequenas de viver. Pois para o gigante o prado afigura-se uma cela. A menina, que me visita como uma mancha trémula e persistente na escuridão, é sempre ferida pelas correntes que me estropiam, escapa com as chaves da minha libertação, e fica a arrepender-se em laivos, esmagada debaixo do Astro Criador.


Horned Wolf

terça-feira, 5 de março de 2013

No Céu - Um Mimo




baseado num sonho de Constanza Muirin



Caminho sem esperança, animado pelo tráfico de espíritos, pelo céu nocturno das cores mudas com que gesticulamos e nos acariciamos na visão repetida, na praça aberta preenchida, nós mesmos em paredes que igualizam as nossas paixões. Distorcidas pelo bem vestir inviolável das roupas clássicas. A civilização só nos chapéus de renda, nas boquilhas, no preto e também no branco. Agito-me, e a agitação toma-me o poderio da vontade. O eco cresce, há uma eternidade dos meus passos. O conhecimento é um espelho dos meus passos, as minhas memórias foram moídas e tornaram-se losangos  Os outros mimos emitem no conjunto das suas tempestades, por vezes abafa o ruído imperturbável de mim a desaparecer. O meu histerismo quieto e impotente encontra uma mímica serena e lunar, como um aguaceiro que se gera a partir do Oceano dentro do Oceano. Alguém caminha longe, porque ninguém ficou, e esta noite não passa. O céu paralisado a cada vez nos pés inquietos e sem cessa. Tudo está bem. Num dia, como tu, posso imitar o ajudante do pescador, a noiva de Buda, o taxista em Viena, o homem com bengala no fundo do crepúsculo, e no entanto, tal como tu, não posso sê-los: ninguém pode ser, não posso ser quem escreve o presente texto ou quem lê, porque tu estás dentro de mim. O primeiro que abrir os olhos, desaparecerá: os sinais luminosos não existem para ancorar o espírito. As paredes da praça atiram o mundo inteiro em avalanches ao centro. De fora, a ver-te para sempre, esqueço-me de tudo e tudo volta à procura.


Horned Wolf