segunda-feira, 8 de abril de 2013

Infinitamente





Uma granada-coração atirada ao espírito do tempo, rebenta em invisível. A Babalith disse-me, "Depois do mundo findo, uma coisa subsistir é ser templo, quer dizer, é haver um local de prece a outra coisa". Na praia, ficávamos a falar da dimensão universal, e das angústias que a percorriam. Por exemplo, cada novo filósofo com uma nova filosofia é um talhante a torturar a carne inocente da consciência não enquanto algo abstracto, mas enquanto dia a dia desde o homem simples ao complexo. Gostava muito que estivesses aqui, a dar sentido a Kiekrgaard, Bergson, Nietzsche, Freud, porque o equilíbrio encontrado no teu silêncio se exalta e proclama. "Não houve nenhum grande poeta", respondo-lhe. "Só os que se conheceram em mesas de café" e ela fica sem resposta, sabe que acredito precisamente no contrário: não há nada que se diga no papel, mas muito menos no café. James Joyce, Eliot, Rilke, como feridas amarelas na explosão de um coração que só queria saber o cascalho contra a electricidade húmida da pele no odor. Babalith, ruiva e com os cabelos ao ar, é uma mulher jóia e despida de jóias. É a minha mecenas, segura todas as minhas mentiras numa mão e trata-as com a simplicidade que se trata a folha de outono a descer a rua ao baloiço do vento, e isso tudo fica uma honestidade de me expressar verdadeiramente. Ela podia ter sido freira, amante abandonada, infeliz, em vez decidiu ser uma parte de mim, um consolo por eu ter nascido sem escolha a não ser aprofundar-me como se a alma fosse uma úlcera na percepção. No Inverno, surgiram os anjos, e eu enlouqueci. Nesta altura não havíamos ainda privado mas ela cantava já as minhas grandes amantes futuras. E sempre que as cantava dizia só: a meio de silêncios: dizia só: «Passagem para o Aberto».

Ela não gosta de Picasso, Picasso interrompe-nos de nós mesmos e por isso um do outro, mas não vê os saltimbancos como eu, nos saltimbancos vê o que eu no Picasso vejo. "Já reparaste como vivemos energicamente a imagética dos castelos? Quando estás num castelo. Certo? Há uma pertença maior que nos tumores da cidade." Sim, respondo-lhe. "E no entanto todos são ruínas. Os índios sabiam que tudo era música. Atrás, há poucas ruínas de verdade, porque a época medieval era uma época sonora. Não era visual, e a escrita pouco se usava. No som há pertença, a vista queima. AS RUÍNAS sâo por isso do futuro, que apenas se visualiza." Gosto muito de conversar. Digo-lhe: "Se fosse ela dizia: anota", mas Babalith nunca ouve, se falo de outras mulheres, fica onde está, com a luz dentro do ar da Primavera também dentro dela a passar como o ar passa e a ficar como fica o ar. De repente ela imobiliza-se triste, os olhos a brilhar de beleza humilde e eu soluço pesadamente, contraído. E ficamos assim, a contactar as coisas na sua inefável realidade. "És um tolo." Interrompe. "O poeta aceita, não recusa. Sente recusa o universo não-poético: o homem que segue uma imagem escapa dela. O poeta aceita porque se aceita, e não segue. É facilidade, não ascese." Eu interrompo e sorrio e fico embelezado de olhar também. "É triste em que não há para ele conquista, tudo é dádiva."


André Consciência

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