sábado, 25 de dezembro de 2010

Ser ou não ser não é a questão


Untitled - Zdzisław Beksiński


A tarde cessara quando saí.
A chuva escurecia rapidamente.
O destino pôs-se a percorrer a cidade perturbada.
Do outro lado, o cansaço trazia um corpo húmido, morno;
O sangue trazia as mãos.

O esquecimento absoluto e o absoluto da ressurreição
Desciam - ligados e siameses - a ribanceira,
Anunciando um subterrâneo pleno.

Eu fugia de mim como se me agradasse também
Percorrer as ruas, e doíam-me subjacentemente
Os ossos das unhas; a água entre nós
Formava pátios, jardins, portas, gradeamentos,
Muros, janelas vazias, gente movimentada,
Céus de esponja, tudo da cor das luas.

O vento inventava-nos olhos cerrados, cólera
Obscura.

Passo pela grande ruína no coração da cidade
Os seus destroços fazem brotar coroas
Como frutos, porque todas as coroas
Provêem do triunfo da ruína.
As crianças fogem, estrugindo na lama,
Os carros brincam em poças pretas.
O silêncio fumega terras ensopadas,
A noite ameaça os vidros entre tudo:
Se as luzes não se acendessem, nunca a noite
Chegaria.

Deus é uma consequência
Da criação.

Ponho um disco no aparelho: “We’re here
Because we’re here.” Ah, seja o meu mal
E sendo suave
Como carícias de folhas de árvore, sexo e mel,
Cause dano à consciência, fissura.

É assim, não vamos ao sono
Sem que Deus esteja com isso satisfeito,
Depois esquecemos Deus
E não vamos ao sono de todo:
Existimos, e isso é que é o sono.
E isso é que é um cadáver de Deus:
Esqueçamos essa carcaça,
Esqueçamos existir,
A ver o que é afinal.

Ponho um disco no aparelho, e do centro da música
Arranco à socapa as flores, talheres, lâmpadas, móveis,
Pratos de sopa, copos de cristal, exposições de arte
E fios de aço. Nisto é que um homem lhe resta
Estar lúcido, e se nele raiou algum vislumbre
Do que é o futuro: a presença de nós próprios
Como alarme do sonho, a interrogação submersa
Na intimidade, como se não escrevesse aqui,
Porque deixou de haver pedra e cardos,
E jazemos dentro das pedras e dos cardos:
A cidade irreal num cerco à terra,
A imaginação sem erguer cidades, mas erguida
Da cidade já de si fantástica, astros, que se põem tão alto
Quanto as chaminés, ah esqueçam! Danem-se
Os espectros das civilizações passadas, esta é a finistérrica
Civilização do espectro, ah cidade! Que é chão e céu
Como uma brilhante cascata de luzes, há só uma morada
De lâmpadas fundidas e todas as outras em fila, nela se esquecem:
Nessa é que eu morava!

As fachadas erguem-se das vozes falecidas, as galerias
Multiplicam-se. Como num labirinto, de volta de um
Apeadeiro.

As esquinas adormecem nas lâmpadas,
Onde quer que seja o fundo.


Horned Wolf

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