quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ano Novo

.
.
A planície infinitamente verde espanta-se
Com a massa negra de blocos brancos
No seu seio de prédios.

Se o corpo nos arde, para virmos à cidade
Apanhar os risos frescos
Sabemos a sua invenção
Sós e com a nossa violência
De inocência e perversão.

A memória do silêncio e o espaço da neve
Tudo substituído pela companhia
Das campainhas dos apartamentos.

As pessoas sentam-se alheadas e imóveis
Nos buffets, e o prédio em frente bate
Inesperadamente, contra o Sol,
Iluminando as ruas num clarão.

Na planície infinitamente verde
As sombras abrem-se
Em promessas às searas.
A noite recolhe-se à primeira lâmpada
Das avulsas casas.

O silêncio atira-se aos gritos
Contra os milhafres cegos,
Vindo do fundo da terra
Com o negro escorrimento das raízes.

De noite, o céu é de um azul claro
Que passa devagar.

Tento erguer-me contra este vulto
De não coisas, reúno as vísceras
Da cólera e os ossos do sangue,
A solidão do urro e o abandono da urgência,
E fico, para minha surpresa, só com medo
Com pena de mim mesmo.

A boca, os olhos, os ouvidos
São coisas de afogar,
O mofo esponjoso, o silêncio selado.

A vida senta-se sobre mim e sobre
A massa negra de blocos brancos,
Senta-se, loira, risonha e abundante
Com o seu peso de coisas a renovarem-se
Em constância, sobre a nossa mortificação.

Atira-nos olhares clandestinos, para que imaginemos
Como será a sua submissão no prazer,
Todos cabemos na sua grande vaginação.

Oh, memória agora, de ti,
Uma vontade de chorar estremece à tua volta
E eu tenho um desejo vaporoso de me tornar
Num halo de consolação.

Mas tu foste embora, com as luzes da cidade,
E onde te imagino suponho estar eu,
Ponho a tocar para nós Mozart, depois Bach,
E sento-me sobre o piano, ignorando os trovões
No infinito verde, e os comboios, no infinito
A preto e branco.

É belo ouvir-me nesta hora breve,
Eu, que inventei o Inverno,
E as pérolas que se fecham no silêncio
Para imaginar que as minhas mulheres o são
E não simples rameiras mortais,
Com fedor a medo e vil sobrevivência.

Sofro pela noite e escrevo, enquanto
Um coral de reis e rainhas dança no meu centro
Com deputados e ministros sob as botas reais,
Procuro chegar até à minha fadiga
Para que se ouça o Piano melhor.

Desconfio que o quarto da pensão existe todo
Dentro do cigarro, silêncio adentro.


Horned Wolf

Sem comentários:

Enviar um comentário