sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Alma
Video : Possession (Andrzej Zulawski, 1981, starring Isabelle Adjani & Sam Neill)
Music : Kaneda - Monarchs and Heretics (2008)
Curiosidades:
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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Ano Novo
.
.
A planície infinitamente verde espanta-se
Com a massa negra de blocos brancos
No seu seio de prédios.
Se o corpo nos arde, para virmos à cidade
Apanhar os risos frescos
Sabemos a sua invenção
Sós e com a nossa violência
De inocência e perversão.
A memória do silêncio e o espaço da neve
Tudo substituído pela companhia
Das campainhas dos apartamentos.
As pessoas sentam-se alheadas e imóveis
Nos buffets, e o prédio em frente bate
Inesperadamente, contra o Sol,
Iluminando as ruas num clarão.
Na planície infinitamente verde
As sombras abrem-se
Em promessas às searas.
A noite recolhe-se à primeira lâmpada
Das avulsas casas.
O silêncio atira-se aos gritos
Contra os milhafres cegos,
Vindo do fundo da terra
Com o negro escorrimento das raízes.
De noite, o céu é de um azul claro
Que passa devagar.
Tento erguer-me contra este vulto
De não coisas, reúno as vísceras
Da cólera e os ossos do sangue,
A solidão do urro e o abandono da urgência,
E fico, para minha surpresa, só com medo
Com pena de mim mesmo.
A boca, os olhos, os ouvidos
São coisas de afogar,
O mofo esponjoso, o silêncio selado.
A vida senta-se sobre mim e sobre
A massa negra de blocos brancos,
Senta-se, loira, risonha e abundante
Com o seu peso de coisas a renovarem-se
Em constância, sobre a nossa mortificação.
Atira-nos olhares clandestinos, para que imaginemos
Como será a sua submissão no prazer,
Todos cabemos na sua grande vaginação.
Oh, memória agora, de ti,
Uma vontade de chorar estremece à tua volta
E eu tenho um desejo vaporoso de me tornar
Num halo de consolação.
Mas tu foste embora, com as luzes da cidade,
E onde te imagino suponho estar eu,
Ponho a tocar para nós Mozart, depois Bach,
E sento-me sobre o piano, ignorando os trovões
No infinito verde, e os comboios, no infinito
A preto e branco.
É belo ouvir-me nesta hora breve,
Eu, que inventei o Inverno,
E as pérolas que se fecham no silêncio
Para imaginar que as minhas mulheres o são
E não simples rameiras mortais,
Com fedor a medo e vil sobrevivência.
Sofro pela noite e escrevo, enquanto
Um coral de reis e rainhas dança no meu centro
Com deputados e ministros sob as botas reais,
Procuro chegar até à minha fadiga
Para que se ouça o Piano melhor.
Desconfio que o quarto da pensão existe todo
Dentro do cigarro, silêncio adentro.
Horned Wolf
.
A planície infinitamente verde espanta-se
Com a massa negra de blocos brancos
No seu seio de prédios.
Se o corpo nos arde, para virmos à cidade
Apanhar os risos frescos
Sabemos a sua invenção
Sós e com a nossa violência
De inocência e perversão.
A memória do silêncio e o espaço da neve
Tudo substituído pela companhia
Das campainhas dos apartamentos.
As pessoas sentam-se alheadas e imóveis
Nos buffets, e o prédio em frente bate
Inesperadamente, contra o Sol,
Iluminando as ruas num clarão.
Na planície infinitamente verde
As sombras abrem-se
Em promessas às searas.
A noite recolhe-se à primeira lâmpada
Das avulsas casas.
O silêncio atira-se aos gritos
Contra os milhafres cegos,
Vindo do fundo da terra
Com o negro escorrimento das raízes.
De noite, o céu é de um azul claro
Que passa devagar.
Tento erguer-me contra este vulto
De não coisas, reúno as vísceras
Da cólera e os ossos do sangue,
A solidão do urro e o abandono da urgência,
E fico, para minha surpresa, só com medo
Com pena de mim mesmo.
A boca, os olhos, os ouvidos
São coisas de afogar,
O mofo esponjoso, o silêncio selado.
A vida senta-se sobre mim e sobre
A massa negra de blocos brancos,
Senta-se, loira, risonha e abundante
Com o seu peso de coisas a renovarem-se
Em constância, sobre a nossa mortificação.
Atira-nos olhares clandestinos, para que imaginemos
Como será a sua submissão no prazer,
Todos cabemos na sua grande vaginação.
Oh, memória agora, de ti,
Uma vontade de chorar estremece à tua volta
E eu tenho um desejo vaporoso de me tornar
Num halo de consolação.
Mas tu foste embora, com as luzes da cidade,
E onde te imagino suponho estar eu,
Ponho a tocar para nós Mozart, depois Bach,
E sento-me sobre o piano, ignorando os trovões
No infinito verde, e os comboios, no infinito
A preto e branco.
É belo ouvir-me nesta hora breve,
Eu, que inventei o Inverno,
E as pérolas que se fecham no silêncio
Para imaginar que as minhas mulheres o são
E não simples rameiras mortais,
Com fedor a medo e vil sobrevivência.
Sofro pela noite e escrevo, enquanto
Um coral de reis e rainhas dança no meu centro
Com deputados e ministros sob as botas reais,
Procuro chegar até à minha fadiga
Para que se ouça o Piano melhor.
Desconfio que o quarto da pensão existe todo
Dentro do cigarro, silêncio adentro.
Horned Wolf
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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Haifisch
Dedicado ao The Poisonous I
Great Whte Shark - Autor Desconhecido
Levou o irmão para junto às águas salgadas, porque houvera notícia de naufrágio. As pessoas agarravam-se umas às outras, apinhando-se e indo ao fundo, e viam-se barbatanas inquietas farejando à beira da tempestiva electricidade. Para lhe falar dos anjos que caíram, esperou que um tubarão saltasse à superfície e enfiasse um gritante naco humano, todo palpitante e a estalar vermelho, nas cerras dentadas, manipulando-o pelas mandíbulas. “Vê, que este tubarão tem lágrima, como o têm todos, e os oceanos salgam.” Disse-lhe, sem que ele compreendesse. “Essa lágrima é o filho de Deus, a segunda pessoa de uma trindade” fez-se continuar. “É impossível ver Deus, o que se vê d’Ele são os efeitos, também é uma revelação saber o choro do tubarão, porque vive já de si submerso nas águas.” Abanando a cabeça, procurou o outro disto a negação, e ripostou com uma interrogação: “Porque choraria?” E ele, personificando: “É do desassossego, se pára, morre. É do frio, o fundo do oceano é glacial. Porque se afastou de Deus, e só a ferocidade lhe resta como calor. Pranteia pelas vítimas de se haver tornado vitima. Como sabes, o tubarão é possuído de sangue frio, não sobreviveria aqui de outro modo. O frio só tocou aquele cuja essência se tornou. Olha, que Deus, no fundo do Oceano, está na fome, mas o seu filho na lágrima. No fundo do Oceano, é Deus que é visível e o homem invisível.”
Horned Wolf
Great Whte Shark - Autor Desconhecido
Levou o irmão para junto às águas salgadas, porque houvera notícia de naufrágio. As pessoas agarravam-se umas às outras, apinhando-se e indo ao fundo, e viam-se barbatanas inquietas farejando à beira da tempestiva electricidade. Para lhe falar dos anjos que caíram, esperou que um tubarão saltasse à superfície e enfiasse um gritante naco humano, todo palpitante e a estalar vermelho, nas cerras dentadas, manipulando-o pelas mandíbulas. “Vê, que este tubarão tem lágrima, como o têm todos, e os oceanos salgam.” Disse-lhe, sem que ele compreendesse. “Essa lágrima é o filho de Deus, a segunda pessoa de uma trindade” fez-se continuar. “É impossível ver Deus, o que se vê d’Ele são os efeitos, também é uma revelação saber o choro do tubarão, porque vive já de si submerso nas águas.” Abanando a cabeça, procurou o outro disto a negação, e ripostou com uma interrogação: “Porque choraria?” E ele, personificando: “É do desassossego, se pára, morre. É do frio, o fundo do oceano é glacial. Porque se afastou de Deus, e só a ferocidade lhe resta como calor. Pranteia pelas vítimas de se haver tornado vitima. Como sabes, o tubarão é possuído de sangue frio, não sobreviveria aqui de outro modo. O frio só tocou aquele cuja essência se tornou. Olha, que Deus, no fundo do Oceano, está na fome, mas o seu filho na lágrima. No fundo do Oceano, é Deus que é visível e o homem invisível.”
Horned Wolf
Cubismo Hermético
O Pintor e o seu Modelo - Georges Braque
Solto dos ramos derretidos
O Sol acorda-me pela vidraça
E transpõe os instantes que o frio
Cristalizou.
Filetes de água de uma gravura,
Que se destrói.
Uma toalha brilha em alegria
Dentro da bacia.
Cobre-lhe a boca
A minha roupa desmanchada -
A cadeira abandonada à dormência da manhã.
No espelho não há frio e abro a janela.
A invasão do Sol sem tempo
Um estranho mundo de plástico.
Golpes avulsos ressoam nuvens num céu de vidro.
Portas que se transformam em lenha,
A lenha em lume.
Subitamente, o pátio ecoa pelo buzinar forte
Os ramos de azevinho consomem-se também
Nas dobras dos sinos.
Horned Wolf
domingo, 26 de dezembro de 2010
Os Sete Anos de Fome
Os Sete Anos de Fome - Friedrich Overbeck
No dia em que Adão saiu para fora da bíblia
Comeu barro e bebeu água, pôs-se a pensar
Com os olhos além da carne e da memória.
“Serei”, afirmou, "o primeiro materialista,
Uma música que atravessa a vidraça,
Um raio de sol que se ouve pela primeira vez,
Uma dimensão absoluta que cada noite possam
Abrir lá ao longe, numa vaga de luar:
Não há nenhum mistério nisto
Pois é bem sabido que a vida vai
Para além da memória
E nascia já nos espaços desertos muito tempo
Antes de se haver tomado a morte,
Era então a visão de uma plenitude sem risos."
A harmonia ignota da sua presença imediata,
Logo que se pôs a ruminar, esvaziava-se.
De pólo em pólo, os an(j)os vibravam assim como corda
E com eles, de Adão, os longos olhos retumbantes.
Esvaziava-se e persistia, porque persistir
É ficar íntimo, nu e humilde. Imaginou
A primeira Jerusalém Celeste sem livro
E embora fosse ele morto, a cidade
Era nossa, da voz que era sua, e que éramos
Nós, ele ouvia-se e perguntava-se
Afinal quem era.
Não há consumismo que do eco não venha.
Dentro da nossa inquietação, Jerusalém é real,
Raízes de sombras, tudo o resto miragem.
Horned Wolf
sábado, 25 de dezembro de 2010
Ser ou não ser não é a questão
Untitled - Zdzisław Beksiński
A tarde cessara quando saí.
A chuva escurecia rapidamente.
O destino pôs-se a percorrer a cidade perturbada.
Do outro lado, o cansaço trazia um corpo húmido, morno;
O sangue trazia as mãos.
O esquecimento absoluto e o absoluto da ressurreição
Desciam - ligados e siameses - a ribanceira,
Anunciando um subterrâneo pleno.
Eu fugia de mim como se me agradasse também
Percorrer as ruas, e doíam-me subjacentemente
Os ossos das unhas; a água entre nós
Formava pátios, jardins, portas, gradeamentos,
Muros, janelas vazias, gente movimentada,
Céus de esponja, tudo da cor das luas.
O vento inventava-nos olhos cerrados, cólera
Obscura.
Passo pela grande ruína no coração da cidade
Os seus destroços fazem brotar coroas
Como frutos, porque todas as coroas
Provêem do triunfo da ruína.
As crianças fogem, estrugindo na lama,
Os carros brincam em poças pretas.
O silêncio fumega terras ensopadas,
A noite ameaça os vidros entre tudo:
Se as luzes não se acendessem, nunca a noite
Chegaria.
Deus é uma consequência
Da criação.
Ponho um disco no aparelho: “We’re here
Because we’re here.” Ah, seja o meu mal
E sendo suave
Como carícias de folhas de árvore, sexo e mel,
Cause dano à consciência, fissura.
É assim, não vamos ao sono
Sem que Deus esteja com isso satisfeito,
Depois esquecemos Deus
E não vamos ao sono de todo:
Existimos, e isso é que é o sono.
E isso é que é um cadáver de Deus:
Esqueçamos essa carcaça,
Esqueçamos existir,
A ver o que é afinal.
Ponho um disco no aparelho, e do centro da música
Arranco à socapa as flores, talheres, lâmpadas, móveis,
Pratos de sopa, copos de cristal, exposições de arte
E fios de aço. Nisto é que um homem lhe resta
Estar lúcido, e se nele raiou algum vislumbre
Do que é o futuro: a presença de nós próprios
Como alarme do sonho, a interrogação submersa
Na intimidade, como se não escrevesse aqui,
Porque deixou de haver pedra e cardos,
E jazemos dentro das pedras e dos cardos:
A cidade irreal num cerco à terra,
A imaginação sem erguer cidades, mas erguida
Da cidade já de si fantástica, astros, que se põem tão alto
Quanto as chaminés, ah esqueçam! Danem-se
Os espectros das civilizações passadas, esta é a finistérrica
Civilização do espectro, ah cidade! Que é chão e céu
Como uma brilhante cascata de luzes, há só uma morada
De lâmpadas fundidas e todas as outras em fila, nela se esquecem:
Nessa é que eu morava!
As fachadas erguem-se das vozes falecidas, as galerias
Multiplicam-se. Como num labirinto, de volta de um
Apeadeiro.
As esquinas adormecem nas lâmpadas,
Onde quer que seja o fundo.
Horned Wolf
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Vozes da Encruzilhada
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Transfiguração de Jesus
Transfiguração de Jesus - Teófanes, o Grego
Todos os dias o cão ladra para uma janela que se não abre.
Aconteceu uma memória, a revelação abala a chuva.
É o passado que faz vibrar a natureza, a manhã solar,
O Verão opressivo, Março a atirar-se pelos ventos
E a Lua sem conseguir, no silêncio, parar de cair,
As massas nubladas, a música fria e cristalizada
Que povoa, e abre as esferas no labirinto dessa chuva
Que é aura.
Todos os dias o cão ladra para uma janela que se não abre,
E sabe não haver retórica possível.
A vertigem baloiça-se nas massas cinza
Por dentro da janela, a água forma horas e salas de jantar
E fizeram praças nos locais inatingíveis.
A colina desce as casas em toalhas aquosas
Os prédios adentram-se pelos sinos das Igrejas
Ninguém o vê, mas o cão percebe, e ladra.
A água cai, sim, mas é gente silenciosa
Que se levanta dela.
Nas livrarias, o chão de tábuas apodrece de humanidade
E o vento atira-a pela porta.
Eu gritei aos astros até enlouquecer
E a consciência esgotou até às fezes
A minha condição animal.
Todos os dias o cão ladra para uma janela que se não abre.
Horned Wolf
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
O Sol Treme
Homem de Vitrúvio - Laonardi da Vinci
A luz a estalar o crânio. Imaginei
Que o Sol se enchia de terror.
Nessa prolongada meditação
A gordura que me enchia o rosto contente
Espalha-se pelos campos que se estendem
Até perder de vista, um clarão acende
O oxigénio, e o mundo aparece
Uma absurda estupidez.
Ó, é que não há nenhum esforço
Em nascer, mas para morrer
É necessário o esforço total
Do não esforço de nascer.
Toda a gente sabe, que qualquer criança
Assusta o Sol até à velhice.
As carroças, com homens de pénis
E alecrins na mão, perfilham
Martelando a memória da cidade
De terra e de estrume:
Isto, o Sol não sente em si
Tanto quanto sente a penumbra
De um quarto, como ela é
Para uma criança
No seu terror as secretárias estampam-se
Nas lâmpadas dos candeeiros.
O Sol todo treme, quando
No fundo da noite, uma mulher
Fala alto – isto é tão sobrenatural
Que nos é proibido falarmos sozinhos:
Significa que o céu não é o lugar do Sol.
Por exemplo, o oriente tem sempre varandas
Onde a noite absorve mais o fresco abrasador, que nas outras
Varandas. Aí, as serras gostam de se colocar por detrás
Das luas breves, à espera dos silêncios ásperos de Antares
E das melodias dos espaços no grande vazio das órbitas.
Se olharmos para cima, percebemos as estrelas deitarem-se ao comprido
Para nos verem melhor, pensamos que pensamos tudo isto,
Sem na verdade o ver, até ao dia que na escuridão
Um espelho nos diz sermos um ladrão.
Por isso, quando o Sol se apercebe de si mesmo num homem,
Aterrorizado, destruirá a sua civilização, mas os ralos
E os grilos, permanecerão de noite, o céu em plena Lua
E a sabedoria não terá piscado um olho. O calor
Crepitará nas coisas que pairam, e as cigarras
Estalarão.
Por exemplo, uma pedra não significa nada
Se for sabida de cor, uma madeira, ou uma estrela,
Mas no nada que significam, não são iguais umas às outras.
Sobretudo isto aterroriza o Sol, até que,
Rendendo, se arda.
Horned Wolf
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Casa Sem Paredes
Rooms by the Sea - Edward Hopper
Não haver ninguém nos céus
É que te fez, como a um grito
Contra o mesmo angustiado.
Na tua vida há o teu canto
Só, o mistério da violência
Do sangue, a vitória do desastre.
A loucura ilumina-se
No ardor do teu canto
No pecado ácido do teu olhar
No esguio corpo da tua lembrança
Á luz do meu Inverno
Nos domingos pelos campos
As abobadas coalhadas na tua súbita
Imagem.
Depois, o frio mineral das catacumbas
Perfuradas estivalmente por explosões de palmeiras.
No céu sem ninguém habitam granadas
O mar torna-se castanho como a planície
Uma luz inquieta mastiga-te os olhos
És como a minha terra, difícil de desvendar
Como um silêncio de revoluções subterrâneas
As tuas mãos e as minhas são calor
Triste. A nossa nudez saciada na tranquilidade
Cálida do chão.
Nada em ti está seguro, não és de tempo algum
Nem dos lugares, somente aparição.
Horned Wolf
sábado, 18 de dezembro de 2010
Tango to Évora
Vede, a cidade, e como continua branca
Plantaram na planície ruínas, semearam
Nas ciladas, ruas. Ocultaram-nas com santos
Partidos por muitas eras, e nichos de arcos
Évora está dorida com a lembrança,
Com o vento que fustiga as vozes de sonho
Do ossário dos homens, Évora
Uma gigante encruzilhada mortuária
Um luar silencioso e luminoso
Encostado ao vazio do casarão do espaço
E da desolação.
A manhã ao Sol mórbido, descobre
Os camponeses em espiral, cantando
Uma tragédia calada nas colunas em coral
E na floresta móvel que Diana atravessa
Suspenso de memória e sem ruído
Um murmúrio oblíquo desce as velhas ruas
A passo apressado, à procura de outras
Mais obscuras, na busca dos contornos
Da face estranha e intocável
Que errou as construções.
Que contou a evolução da vida
Para a explicar, mas nem eu, nem Évora
Somos nós, anjo que se passou por criança
Anjo que não deixou passar a cidade.
A noite da Lua é lavada por um grande Setembro,
Uma oração mutilada habita os claustros longínquos
A manhã não passa e as ruínas da planície
Ganham ar de planície. As rosas do Verão
Também não cessam de morrer nos jardins verdes
E no lago há uma antiga taça de mármore
Que bebe, sem parar, os pombos,
Com fortes descargas de água.
A planície é tão imensa, que um homem,
De pé, sente-se deitado, e quanto isto mais é
Mais a planície ganha contornos de mar
E estar deitado, de o olhar do topo
Da falésia.
Abandonado ao Sol, assobio,
Como uma criança, como uma fita negra
Ao longo da estrada. As coisas pousam
Ao de leve, na melancolia do Sol
Porque arrefeceu repentinamente,
As folhas secas sopram em coro
As andorinhas baloiçam nos fios eléctricos
E os seus olhos tornam-se distância.
Horned Wolf
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
O Assassino
.
.
Sento-me aqui, e o vazio relembra-me,
Uma sala quente de Verão, uma jarra
Iluminada pela Lua da varanda.
Flores, no quarto de estar.
Na água da velha casa o chão da Lua
Adormece-me devagar
A inacessibilidade da lembrança
É o cedo esquecimento.
O vazio relembra-me, como uma noite ofegante
Enorme e deserta. A minha voz primordial
É o lento respirar de um morto.
A aragem quente não me banha a face.
As quintas dos cães tão escuras…
Os insectos iludidos pelo Sol
Colam-se defuntos no meu corpo
Quebra-se a cadeira perdida,
Quem me dera que se quebrasse,
A cadeira partida, o cinzeiro de vidro
Onde deito as mãos inertes.
A palavra está morta, eu a escrever
A respiração lenta dos ossos sem suor
Nem rosto que fosforesce, nem espírito
De vapor ou lenda, nem água, nem fronte
Nem dedos. Ilumino-me
Vigilante de mim mesmo em haver morrido
Nada há de mais funerário
Do que aquele que a si mesmo se ilumina
E afugenta os predadores seus semelhantes
Ser um eco sem voz originária
Ninguém nos amar com o olhar, nunca
A nós.
Habito-me, como um pedaço de evidência de um crime
O mundo ilumina-me porque o mundo só ilumina o que passou
Ninguém, do mundo, me ilumina, vejo finalmente,
E vejo só os meus olhos, assassinei-me
Quando estavam tristes
Mas os olhos que os olham
São duas feridas de tubarão.
Amei, fumo a fugir-me embrutecido
E fui surpreso, e fui ridículo,
Porque nada depois da infância foi feito
Para ser autêntico, e eu a minha infância
Não a tenho minha: outra razão
Outro génio habitava então
Este corpo. Os outros não me olham
É impossível que me olhem os outros
Olham os astros, a Terra, a sala, a realidade
E eu não sou astros, nem terra, nem sala
Nem realidade, nem eu. Tive sonhos
Infinitos, ideias, morava-me tudo o que
Da treva se escondia, como é possível?
Quantos sonhos, ideias, memórias?
Quantos deuses e prodígios de invenções?
Um mundo inteiro à minha imagem
Pronto a desabar como um túmulo imprevisto.
A complexidade do mundo toda amealhada
No meu sangue: e julgava então
Haver não, um mundo absoluto
Um futuro absoluto, que o brilho dos astros
Não era o silêncio da sua morte, que as mãos
De um amor, não eram as mãos de um aceno
Para acenar adeus.
O milagre instantâneo ser a falsidade
De o ter vivido, e isso não ser instantâneo.
O corpo escorre-me pelas gotas frias
Do céu quente, tudo o que nasceu,
Tudo o que vi e vivi, nunca nasceu
Lavo as mãos e elas não se apagam
Tenho pena de ter mãos porque ter mãos
É não poder ter mais nada.
Há um luminoso halo de silêncio mineral
Lavo nele as minhas mãos e as minhas mãos
Não se apagam: a porta da sala, o rangido da mulher
Sombra esfumada e fumada, com aroma
A uva seca. Sonha ao meu lado, estende os pés
Ao luar das varandas: passam muitos anos no limiar
Da sua presença: a noite está deslumbrada
E angustiada, porque hoje tomo as tuas mãos
Como as tomava antes da primeira palavra
Ser pronunciada na Terra.
André Consciência
.
Sento-me aqui, e o vazio relembra-me,
Uma sala quente de Verão, uma jarra
Iluminada pela Lua da varanda.
Flores, no quarto de estar.
Na água da velha casa o chão da Lua
Adormece-me devagar
A inacessibilidade da lembrança
É o cedo esquecimento.
O vazio relembra-me, como uma noite ofegante
Enorme e deserta. A minha voz primordial
É o lento respirar de um morto.
A aragem quente não me banha a face.
As quintas dos cães tão escuras…
Os insectos iludidos pelo Sol
Colam-se defuntos no meu corpo
Quebra-se a cadeira perdida,
Quem me dera que se quebrasse,
A cadeira partida, o cinzeiro de vidro
Onde deito as mãos inertes.
A palavra está morta, eu a escrever
A respiração lenta dos ossos sem suor
Nem rosto que fosforesce, nem espírito
De vapor ou lenda, nem água, nem fronte
Nem dedos. Ilumino-me
Vigilante de mim mesmo em haver morrido
Nada há de mais funerário
Do que aquele que a si mesmo se ilumina
E afugenta os predadores seus semelhantes
Ser um eco sem voz originária
Ninguém nos amar com o olhar, nunca
A nós.
Habito-me, como um pedaço de evidência de um crime
O mundo ilumina-me porque o mundo só ilumina o que passou
Ninguém, do mundo, me ilumina, vejo finalmente,
E vejo só os meus olhos, assassinei-me
Quando estavam tristes
Mas os olhos que os olham
São duas feridas de tubarão.
Amei, fumo a fugir-me embrutecido
E fui surpreso, e fui ridículo,
Porque nada depois da infância foi feito
Para ser autêntico, e eu a minha infância
Não a tenho minha: outra razão
Outro génio habitava então
Este corpo. Os outros não me olham
É impossível que me olhem os outros
Olham os astros, a Terra, a sala, a realidade
E eu não sou astros, nem terra, nem sala
Nem realidade, nem eu. Tive sonhos
Infinitos, ideias, morava-me tudo o que
Da treva se escondia, como é possível?
Quantos sonhos, ideias, memórias?
Quantos deuses e prodígios de invenções?
Um mundo inteiro à minha imagem
Pronto a desabar como um túmulo imprevisto.
A complexidade do mundo toda amealhada
No meu sangue: e julgava então
Haver não, um mundo absoluto
Um futuro absoluto, que o brilho dos astros
Não era o silêncio da sua morte, que as mãos
De um amor, não eram as mãos de um aceno
Para acenar adeus.
O milagre instantâneo ser a falsidade
De o ter vivido, e isso não ser instantâneo.
O corpo escorre-me pelas gotas frias
Do céu quente, tudo o que nasceu,
Tudo o que vi e vivi, nunca nasceu
Lavo as mãos e elas não se apagam
Tenho pena de ter mãos porque ter mãos
É não poder ter mais nada.
Há um luminoso halo de silêncio mineral
Lavo nele as minhas mãos e as minhas mãos
Não se apagam: a porta da sala, o rangido da mulher
Sombra esfumada e fumada, com aroma
A uva seca. Sonha ao meu lado, estende os pés
Ao luar das varandas: passam muitos anos no limiar
Da sua presença: a noite está deslumbrada
E angustiada, porque hoje tomo as tuas mãos
Como as tomava antes da primeira palavra
Ser pronunciada na Terra.
André Consciência
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Sombra Fresca da Terra
Gostava que cantasses, mãe
Debaixo da rocha, e na falta que nos faz
Os que partiram estarem.
Gostava que cantasses, mãe
No cruel abandono dos bosques
Onde pernoita o horror
E soltasses de ti
Uma ‘sperança, um fulgor,
Uma luz contínua e escorrida
Que acreditasse o amor.
Gostava que cantasses, mãe
Nas lágrimas, dos macacos-narigudos
Morcegos-raposa e folhas de palmeira,
No rio, que chilreia,
Na cidade com dor-de-peito,
E no solitário que dorme
Sem leito.
Gostava que cantasses, mãe
As palavras de consolo,
De toda a fatalidade, inexorável
Ou me soltasses do mundo
Como o que sou, um projecto
Irrealizável, e que passou.
Gostava que cantasses, mãe
Existir eu, e em mim nem tu
Nem ninguém.
André Consciência
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Estou Aqui...
Sem Título - José Sérgio Holanda
Gosto de respirar, deitado na minha cama, enquanto todos dormem. Só com os momentos que ultrapassaram a morte e fazem parte do silêncio. Imagino que brinco nas névoas da serra, e que me empoleiro nas árvores despidas. Que morri, e que ninguém o testemunhou. Existe só o lago quente no gelo, o vento mudo, e a vida toda que eu já vivi, mas sem continuação, porque sem fim. Pelas janelas embaciadas das casas de pedra, fico a sonhar vultos que se encontram para celebrar o amor que tenho em mim e que não morre. Que chegara finalmente o dia, em que deixavam de haver dias. O meu peito jorra todo em neve que derrete e levanto-me para escrever na certeza segura de que ninguém me alcança através destes vidros.
Horned Wolf
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
sábado, 4 de dezembro de 2010
O Quinto Cavaleiro
Le Blanc-Seine - Rene Magritte
Vem cavalgando em terra albina
O defensor da cavalaria do Sul
Ele traz sete espadas, escudo no braço:
O Anjo que o guia, e se faz seu regaço.
No horizonte escureceu
A luz que se despedia
Vi chegar não sei quem
Acender um livro
Para os cegos.
Para salvar os campos de batalha,
As sereias do mar.
E quem o chama é São Miguel,
Que manda na terra,
Quem está de ronda é Gabriel,
As ninfas do luar.
Por entre os bosques, as dunas
E as serras, passaram as nuvens,
A espuma das ondas,
E ele pôs-se a beber, e ele
Pôs-se a fumar.
Há-de chegar o dia em que as vagas
Pararão de lhe cantar.
Horned Wolf
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