sábado, 25 de setembro de 2010

Evocação II


Morte de Abel - Gustave Doré

"O pão duro que o pão tiver purificado e que a invocação tiver santificado, oferecei-o orando pelos mortos” .(Didaqué)

Hoje estás sentada no triângulo com uma saia vermelha (eu nunca te vi de saia vermelha) que cobre o piso axadrezado. É como se metade de ti fosse sangue meu e paixão. O redondo dos teus seios está nu, ou o oásis abdominal. Não estás a pensar em nada, e os teus braços erguem-se, os frágeis cotovelos formando um ângulo recto e dois mamilos de pele lisa. Consigo ver-te os olhos mais limpidamente que ontem, quase como quando estavas. Parecem fixos com mensagens secretas (se a água pudesse ser fixa), serenos e compassionais. Pouso a espada. Amanhã não vais morrer. Mostra-me o outro mundo. Somos crianças ainda. Crianças quase mudas. Não morreste primeiro que eu. A praia era quase a nossa pele. Não sei. A brevidade ondulatória sempre me recordou a eternidade. Não acredito que os mortos amem, muito menos os vivos. A vaga não pertence. Tens uma coroa de fogo e sempre que a pousas prateia. Os teus cabelos estão soltos. Mostra-me o outro mundo. Coisas que se esqueceram. Não sei. Nunca amei ninguém. Não sei. Amor é teres morrido e ficado para sempre com perfume nas mãos, e força de as trabalhar. Se pudesse colocar-me fora da minha eternidade repousaria a cabeça no teu colo e a tua barriga respiraria mais rápido, como costumava, e abriria as bocas de centenas de piranhas cegas para me devorar o pensamento. O pensamento. És tu. Por favor, mostra-me. O Sol chega fundindo as luzes. É o Sol que as tuas mãos chamam. Gelado. Se te embrulhar no meu coração, não morras. Ficavas sempre calada. Os teus olhos como agora. Se eu dizia morte, ouvias Sol. Se eu fosse só um túnel, para os teus passos. Ninguém se lembra da memória. Há seis homens que tremem sem pele e engasgam-se nomes bárbaros. Volto a pegar na espada. És uma miríade de aberrações. Gostava de te decepar os braços e de me rir sozinho sobre as tuas lágrimas.

Horned Wolf

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