terça-feira, 28 de setembro de 2010

Evocação VI


Bride - Vibha Sahu

Por isso, [Judas Macabeu] pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres das suas faltas (2 Mac 12,46).

És uma pirâmide amorfa com um homem de neve (zelator) a guardar a chama na base do atanor. Espreguiço-me dentro dessa serpente e pingo. Ou os pinheiros que contornavam a escola onde me via espreitar-me do outro lado do tecido da realidade com febre fria. Sobem línguas de fogo que tornam o teu triângulo em círculo. As tuas mãos estão cheias de objectos que eu tinha perdido na floresta e que queimam os olhos. No fundo, lembrar-me de ti é lembrar-me de mim. Dois círculos fechados um no outro são um. Ó gelo do meu arder, ó soltura das estátuas, ó carne das pinturas e silêncio dos dias colados às mãos: cantem-na, cantem-na para sempre, e eu descanso à sombra móvel do céu como o monte que rasga em paz o tempo. Somos máscaras da morte, ninguém nos trespassa. O teu rosto é belo e eu beijo-o com a força dos cometas. Adeus.

Horned Wolf

Evocação V


Paseo por Andalucia - Francisco de Goya

Deus, Senhor de clemência, concedei às almas de vossos servos e servas, cujo aniversário celebramos, um lugar de lenitivo para os seus tormentos, aventura de uma paz inalterável e o esplendor da glória eterna. Por Nosso Senhor Jesus Cristo. (Santo Afonso Maria de Ligório).


Decido fazer a quinta evocação enquanto ébrio. Surges do caos como uma dança árabe. Não tenho pensado nos teus pés até agora. Os teus pés eram o principal. Eles pisavam ao longo da praia. Depois dos teus pés na areia, ou no verde pintado do batelão, os livros que nós líamos e discutíamos. Nem antes nem depois, mas acima, os teus cabelos e os teus olhos de quem despertou demais. O teu sexo só depois das mãos e do pescoço e dos ombros. Do rosto. Contavas-me a história da deusa muitas vezes. Eu não acreditava nenhuma. Essa tua deusa é uma mulher qualquer, não a minha. Não contei a ninguém que morreste, sabes? Não existe ninguém fora de nós.

Horned Wolf

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Evocação IV


L'Arcangelo Raffaele - Autor Desconhecido

Ó meu Senhor! Purifica-os das transgressões; as tristezas, desvanece-lhes e transforma a sua escuridão em luz. Permite que -entrem no jardim da felicidade, purifiquem-se com a água mais límpida e, no mais sublime monte, contemplem Teus esplendores. (‘Abdu’l-Bahá).

Alguém te comeu o estômago. O teu coração palpita descompassadamente e à vista dos olhos de todos. Por várias vezes os comprimidos com que evocavas a morte e que te beberam o sangue. Hoje já não queres partir. Assim, cada pulsar agita as larvas rebeldes que habitam o teu peito, que é para dizer que a tua respiração é um assobio atroz. Contorces-te no triângulo. Queres proteger o peito com as mãos delgadas e isso é um ataque à carne lívida. Eu conhecia um padre que morreu, ficou sem pernas num acidente de automóvel e morreu. Vestia sempre o negro e um chapéu de cowboy. Esse padre depois falava comigo e eu pedia-lhe que te cuidasse. Que te sarasse o peito – e às vezes o teu peito parecia ser só o que era, o leito puro, limpo e perfeito para as minhas lágrimas evaporarem e os meus beijos repousarem. Hoje continuas na mesma escuridão, continuas devorada, como um vampiro rendido. E eu olho-te a partir do meu casebre da arte, as minhas mão começam a sangrar. Se te viro as costas os meus olhos voltam-se para as minhas costas. Deixei de trazer a espada comigo, porque sei que se te olhar tempo o suficiente te matarás de novo. Não. O teu olhar doloroso e inteligente não espera nada de mim. É por isso que a tua carne sensível magoa a minha carne aérea. Uma espuma de heresias sopra do lábio ferido, sem que o movas. Tornas-te macia e suave, como a banha das larvas. Preparas-te para dormir.

Horned Wolf

sábado, 25 de setembro de 2010

Evocação III


Lunáticos - Cordélia Urueta

“A esposa roga pela alma de seu esposo e pede para ele refrigério, e que volte a reunir-se com ele na ressurreição; oferece sufrágio todos os dias aniversários de sua morte” (De monogamia, 10).

Através da única janela no tecto um pedaço de céu roxo condensa-se no triângulo com a velocidade a que a cinza dos incensos cai. És difícil de definir. Um conjunto configurado de uvas azuis ou como eras, excepto que vestida de um olho ciclópico e vulcânico. Todos estamos cansados. E isso lembra-me o mar e o barco quebrado que escolhemos enquanto assombramos o eléctrico alto mar. A sombra da Lua canta magnética. Não temos esperança, e isso agrada-nos hoje mais do que nunca. O barco é só uma desculpa para o naufrágio. Se apenas conseguisses quebrar esta Oroboros... Despimos-nos na Lua, hoje não te guardo rancor. Amo-te. Os teus seios, duas manchas de pus amarelado. Sim... Amo o bem, e o bem não te conhece. Já ninguém te encontra. Não chores.

Horned Wolf

Evocação II


Morte de Abel - Gustave Doré

"O pão duro que o pão tiver purificado e que a invocação tiver santificado, oferecei-o orando pelos mortos” .(Didaqué)

Hoje estás sentada no triângulo com uma saia vermelha (eu nunca te vi de saia vermelha) que cobre o piso axadrezado. É como se metade de ti fosse sangue meu e paixão. O redondo dos teus seios está nu, ou o oásis abdominal. Não estás a pensar em nada, e os teus braços erguem-se, os frágeis cotovelos formando um ângulo recto e dois mamilos de pele lisa. Consigo ver-te os olhos mais limpidamente que ontem, quase como quando estavas. Parecem fixos com mensagens secretas (se a água pudesse ser fixa), serenos e compassionais. Pouso a espada. Amanhã não vais morrer. Mostra-me o outro mundo. Somos crianças ainda. Crianças quase mudas. Não morreste primeiro que eu. A praia era quase a nossa pele. Não sei. A brevidade ondulatória sempre me recordou a eternidade. Não acredito que os mortos amem, muito menos os vivos. A vaga não pertence. Tens uma coroa de fogo e sempre que a pousas prateia. Os teus cabelos estão soltos. Mostra-me o outro mundo. Coisas que se esqueceram. Não sei. Nunca amei ninguém. Não sei. Amor é teres morrido e ficado para sempre com perfume nas mãos, e força de as trabalhar. Se pudesse colocar-me fora da minha eternidade repousaria a cabeça no teu colo e a tua barriga respiraria mais rápido, como costumava, e abriria as bocas de centenas de piranhas cegas para me devorar o pensamento. O pensamento. És tu. Por favor, mostra-me. O Sol chega fundindo as luzes. É o Sol que as tuas mãos chamam. Gelado. Se te embrulhar no meu coração, não morras. Ficavas sempre calada. Os teus olhos como agora. Se eu dizia morte, ouvias Sol. Se eu fosse só um túnel, para os teus passos. Ninguém se lembra da memória. Há seis homens que tremem sem pele e engasgam-se nomes bárbaros. Volto a pegar na espada. És uma miríade de aberrações. Gostava de te decepar os braços e de me rir sozinho sobre as tuas lágrimas.

Horned Wolf

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Evocação I


Le Jour des morts - William-Adolphe Bouguereau


"Que o Senhor lhe conceda a graça de obter misericórdia do Senhor naquele dia".(2 Tm 1,18)

Ela está inerte, no triângulo, de braços pendurados ao longo do tronco e joelhos dobrados. Os seus cabelos ruivos lambem a sua pele rosada e os seus lábios encarnados exprimem tristeza. Há interferências de outras vozes que me aguardam, ela própria está absorvida numa multidão de murmurantes. O hemisfério esquerdo da minha cabeça lateja enquanto se fixa em mim com olhos acusatórios. Afirma que a deixei morta durante todo este tempo, que a abandonei a águas estagnadas. O meu coração sente-se angustiado e o meu peito deseja o acto do vómito. Mostra-me o seu inferno cheio de sombras azuis e negras que se assemelham a mosquitos. Eu dou-lhe um sabão que cai aos seus pés descalços e inertes. De repente dançamos nas miríades de dedos púrpura que se tocam no céu, afogamos-nos nas estrelas e voltamos a emergir na manhã seca de Verão a caminho marítimo de Tróia. São as primeiras chuvas, hoje. O teu inferno tem túneis de esgoto e coisas que eu não sei identificar. Estás sentada sobre as pernas alvas por cima da água celeste e brincamos à eternidade. Mas temos peso demais para não a romper. Eu peço-te que te reveles. Dás-me pedras a comer, no Inferno escuro, cheio de ventres que engolem. A tua pele encarquilhada cai em constância do teu corpo velhaco. Tens mil canções para mim. Os meus poemas. Mas eu defendo-me com o coração e a serpente. Espeto-te com o tridente emprestado de Neptuno. As tuas pernas são como serpentes em redor da minha cintura. O meu pénis uma terceira. Todas se enrolam. O meu corpo é a preguiça. Por hoje despeço-me e fico a ouvir os poemas da torneira a pingar. Há uma cabeça de fogo descendente entre nós, que faz com que nunca importemos.

Horned Wolf