sexta-feira, 4 de setembro de 2015

As Tiras de Ouro




Introdução

Dizem que o medo não magoa mais do que um sonho, como a felicidade não chega sem ser convidada. Depois, há os que acreditam que um abraço pode mudar um dia, uma semana, um mês na vida de alguém. Nada disto eu sei, e não parece que importe. Procuro continuamente a minha última esperança, os rostos da minha última luz cada vez que me despeço, e nunca mais me esqueço. De resto, fico acordado à noite, de noite pode dizer-se e ouvir-se qualquer coisa sem que se estranhe.



I

Quando se caminha sozinho na cidade é-se superior a todos os outros, a melancolia absorve os vestígios do desespero e desacredita a dúvida. O Sol não se espreita na fresta dos prédios, mas aquece nos vales cinzentos e dentro das janelas, quando a noite chegar deixando do dia só as brasas, os moradores não adormecem, tornam-se chamas pequenas a arder nos lençóis. E se, a caminhar sozinhos na cidade, vemos o absoluto, ele canta uma negação. 

Numa destas noites como as que descrevo, Lisboa encheu-se de pequenas velas nos parapeitos, seguiram-se oito minutos e uma criança parecida a um apagador subiu ao terraço, contou estrelas e árvores, a imaginar. Deixou-se cair.


II

As suas palavras calavam-no quando o beijavam. Mudo, vestia-se dos milheirais, esquecia-se do que sabia e atava tranças como quem aprende uma canção. Uma menina estava vestida de vermelho, usava rosas na cabeça, depois estava nua, um tornozelo na anca do rapaz, outro no ombro, ele uma espada em brasa. Um dia, a menina era menina e colhia frutos na falésia, o mundo ainda não existia. E possam amar-se, quando, se houver silêncio, adormecerem.


III

Somos estrelas. Caímos e olhamos para cima, para ver as estrelas. Sonhamos e com esse esforço suamos, um ranho a sair dos poros e dos sapatos escaldados, então pensamos: "só o melhor" e rimo-nos de tudo o que não são as estrelas, telefonamos aos nossos pares e separamo-nos. Engordamos, enriquecemos, tropeçamos no amor e sobrevivemos e os que voam morrem. Eu colocarei uma gola de renda ao teu pescoço, branca e frágil, e te agite nua, os teus seios uma alforreca que pulsa, eu trémulo e a largar maçãs. Todos somos fósforos no festival do fogo, e tu seguras um balão de hélio com os pés nus, as ancas levantadas, a profundidade morta.




IV

Alguém te deu memórias e se tornou memória. A beleza consome o pôr-do-Sol como consome os indivíduos, inflama o espírito e o espírito apaga-se, torna-se nas coisas mas já nenhuma coisa existe. Existem olhos nas máquinas fotográficas, olhos tão imóveis e fixos como o que somos quando ninguém vê, e a tua arte afoga-se nos miradouros, ele ganhava asas, não seria bonito ama-lo e seria amado, a sua casa seria um mundo, construída numa ilha sob uma ponte frágil e pisada com temor, a sua alma queimaria o teu corpo que envelhece. Nenhum anjo te pariu e não herdarás o mundo. Um dia talvez alguém te veja e as minhas mãos segurem dois círios.


V

Semicerrava os olhos e as luzes vestiam uma torrente de fantasmas à procura de casa. Então permanecia estóico, uma candeia na noite dos mortos, coleccionava as mãos das estrelas para salvar as estradas. Amarrava a escuridão numa parede branca, aguardava pelo tempo húmido, endurecia e penetrava-a, para que pudesse amar pelo menos o que havia de mais brilhante nos outros. Desabitava-se, e esperava que algum fantasma entrasse para um tinto e assombrasse a habitação com bruxaria nos lábios, mesmo que não ficasse muito tempo, porque as garras lupinas marcadas no chão atrás do caminho não deixam esquecer o tempo, e eu como sempre as flores ao primeiro sinal que murcham. Ao pico da noite descia às praias, não olhava a Lua, punha-se a pensar que lhe conhecia o rosto e todos os outros o cu. Descia às praias, esperava pela maré enchente e punha-se a arder alto, a desafiar as vagas, as palavras a afundarem-se e o crânio em lâmpada. Sim, atirava o coração às gaivotas e as estrelas caiam sobre a estrada. Depois a morte descalçava-se, descia o alcatrão incandescente aos risinhos, oferecia-lhe limões e chovia. Os dois sentavam-se, os vivos começavam a ouvir-se, com as suas lutas, as suas canções.


VI

Por vezes a nossa alma abre as pálpebras azuis e encontramos o lugar que os seus olhos habitam. De vez em quando pensamos no futuro, mas o futuro não vai por ali, entretém-se a escapar ao presente. De qualquer modo o Sol fica a brilhar, não é bonito, arde. Quando se põe restam as estrelas, calamos um choro, bebemos vinho, beijam-se as línguas e dançamos debaixo da Lua. Ou talvez olhemos durante muito tempo para um ecrã. Se calhar as mulheres sentam-se a escrever sobre relações. Eu levanto-me com os ossos debaixo do peso das vidas, a casa incendiada para dar melhor lugar à vista, o ouro cai e não é de dia nem de noite, os ossos caem a estalar sob os meus pés, os campos choram e eu colho as desesperadas violetas dos meus pulsos.



VII

Todos os dias, em algum lugar, espero que o céu me alcance, que o seu humor se torne como o meu ao longo do Sol. Por vezes a rádio passa aquela música que diz que alguém esteve comigo, mesmo nunca tendo sido. Afio a memória como se afia uma espada, e quando todos os seus ângulos são de cristal saio do carro de novo menino, colho laranjas, deixo a morte entrar: a erva, o amor, o fogo que ruge no Inverno, de novo a cor do céu.



VIII

Chegará o Outono. O Verão terá morrido bem, antes do tempo. Os adolescentes vão juntar-se no conforto de casa com uma bebida e a ver filmes de terror, a pensar que conhecem filmes de terror. As mulheres vão acender mais velas. Eu talvez arda uma fogueira, mergulhado num mar de folhas. Já não interessa o outro mar, a terra terá engolido o outro fogo e as fadas populado jardins secretos. No banco que abandonei, a tua mão terá caído sobre o meu colo. Num livro, estarei a beijar. E talvez chegue ao Inverno, talvez me livre do presente, com todo o passado, e me encontre exacto como a grande antiguidade.


IX

Quando viajamos, no momento em que encontramos despedimo-nos, por isso nos lembramos com nitidez das viagens. Mas ele apercebeu-se desde cedo. Rodeamo-nos de plantações, colhemos o que semeamos. E se desviamos os olhos dos milheirais, por um só segundo, sabemos que somos nós a colheita. Um raio percorre-nos o corpo, e nós somos o raio. Os outros agarram-se no escuro, à procura de calor, cegos para as ossadas. A ele, lhe fora dada calma, sorria para os homens, cuidava dos escorpiões e emudecia as mulheres.



X

As ruas vazias, o vento gelado a percorrer a cidade, a mulher com a lingerie número vinte e quatro num alpendre de madeira, a flor amarela no umbigo. Estou cansado das vozes no vento, dos objectos que populam as ruas. Há asas em mim e o mundo nas têmporas. Um génio consome-me o corpo. Se pudesse manter uma única memória lembrar-me-ia do Sol, o dossel de penas rasgaria o ar.



Prólogo


Um dia seremos duas pessoas que se conhecem novamente pela primeira vez. Acabaremos por subir à nudez dos sítios altos, voltaremos a pensar que temos mais dias do que restam, mas há sempre o silêncio, as janelas por dentro da cidade, o tempo que parece que mata e apenas morre. Não sei que dia é. Acendo um cigarro.



André Consciência

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