Pela espuma da manhã, passam,
Nus, os teus membros.
Saúdo-te, os teus seios pintados
Num poema que do corpo não fala
Nem descreve a sombra alta
Do teu vulto na manhã.
II
A espuma do crepúsculo rende-me
E o corpo,
Despido e vencido
Debaixo daquela manhã
Descreve-te horas a fio com vento
Que me passa na pele, no cabelo,
No papel.
Eu, também, um dia
Fui de Sol, sentia-me a nascer
A luz quente de enternecer.
Morremos, se morremos,
E gloriosa a chama há
Dessa incumbência
A latência da latência
De um dia matar
A solidão de todos
Os outros dias.
Nada passa, nada consome
Mas contra a costa um barco
Enfurece, e tudo em nós
Se torna cântico de nenhuma voz,
Que só ouve... o albatroz.
André Consciência
É alto mar, por vezes, a marinhagem cai
E caça um albatroz, ave enorme e feroz,
Que num voo triunfal, numa carreira assaz
Faz seguir pelo azul a viajante embarcação.
Mas quando o albatroz preso, e suspendido
Nas tábuas do convés, - pobre rei em vão temido!
Que dó nos traz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para os pés!
Rei do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Desproporcional e gentil, ei-lo grotesco e imbecil!...
Ao bico um leva o fumo do cachimbo
Outro mutila a pata da ave inerme.
O poeta é como esta marinha águia
Que desdenha a bússola, e afronta os vendavais;
Exilado em terra, entre escarninha plebe
Não o deixam caminhar as asas infernais!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de André Consciência
Deste ponto a ponto distinto
César vive e espalha a sua rede
De pescar espíritos.
Nos anos trinta, a Queda do Homem,
Na altura eu e tu comíamos pizza
- Em Leiria -
E na televisão os coros apostólicos
Rodavam as nossas cabeças com
Canais da MEO.
Nos anos subterrâneos era tudo
A Palestina, com os super heróis
Mitológico-americanos
A rir-se debaixo da Lua
Dos monhés armados,
Eu fumava na banheira
O cigarro que tu também
Experimentavas em mim o bâton
Que nunca usaste em ti
E com água nos dedos
Lavavas-me lábios.
Nos anos 40, a Casa Branca mudara-se
Para o fundo do oceano, e ali escondia
As suas mentiras; à superfície
As habitações ardiam.
Era a Noite dos Mortos
Eu estava desesperadamente só
E o telemóvel, que me não deixava
Paz.
Quando o Sol desmaiava no horizonte recortado de granito, eu prosseguia. O deserto à minha volta, imóvel, movia-se ameaçadoramente. Tão intenso que mesmo o meu espírito forte se sentia igualado. A minha coluna ondulava como uma serpente ferida pelos filões de rochas negras e pelas dunas de tons verdes, seguindo a estrada antiga, ao longo da qual nenhum viajante se conhecia haver passado.
Quando a noite por fim se levantou sobre mim, o céu ressuscitou com tantas estrelas eclipsantes e a areia do deserto encontrava-se tão brilhante, que do lugar onde eu ia a trezentos passos conseguia ver a estátua da humanidade, longe de todos os homens e de todas as mulheres.
Da tua flor a tintura da vida, da tua canção a sombra fresca na terra. Morre a águia e morre o tigre, e cobrirás a pincelagem primeira, da amizade, da nobreza, do amor fraterno, com a sombra negra da terra.
Uma larga plumagem é o teu coração, e de puro jade é a tua palavra, ó Pai!
Tende piedade de mim e sobre mim pousai um olhar misericordioso, porque será por um momento breve, como, em oferta à Mãe Morte, abrem os frutos azuis os corais de flor e canção.
Blood Gatherer
We shall not for ever die; even the grains of corn we put under the earth grow up and become living things.