segunda-feira, 1 de junho de 2009

A Metade Devorada IV





Nós riamos-nos da minúscula criatura canina, porque uma força estranha à sua natureza e à sua constituição o voltava contra a cauda magoando-lhe a coluna, e o lançava num reboliço de tentar caminhar e se confundir por só dar voltas sobre si mesmo. Depois a alva nervura do olho, manchada de um vermelho lustro, e não haviam nele órbitas vazias, havia carne papuda e sangue jorrado, o vulto em tremura, como se risse. Nós riamos-nos. E ele era uma mancha pisada, contra o solo movediço de intransponível: à espera, em todos os passos: a voz da morte. Por isso riamos-nos e tomávamos brindes amaldiçoados, construíamos enredos de vida em seu nome, para diverti-la. O meu corpo encarquilhado, ilusório, observador do ilusionista. A morte dizia: conhecimento. Depois eu era o cão, em todos os tempos para os quais procurasse escapar, procurava correr, confuso, por voltas sobre mim mesmo sempre que apontava para algum sítio. Haviam duendes de faces desfiguradas, e riam-se muito. A ultima palavra.


Todas.

Um vagabundo. Um homem cuja metade devorada criava asas de traças em humidades nauseantes. Mil asas pequeninas de um eclipse psicadélico e de um estrondoso mar em comoção. Abismos do espaço e do tempo. O vagabundo não se interessava, a sua face suja era límpida demais para incógnitas, e por isso era inconcebível. A metade devorada ostentava tentáculos microscópicos de carne cortada, e abraçava todas as coisas com um sufoco e uma avidez sobrenatural.


Antinomianismo: contrariar a corrente de decadência para a qual a criação, deixada a si mesma, tende a escorrer. Que estes sejam ferreiros, quer dizer que são capazes de moldar o mundo através do fogo.

Com luz de ave azul, de ave que caminha nos meandros dos espaços inatingíveis entre as estrelas, emanando sonhos e redemoinhos de renovações invisíveis, ela perscrutava os meus olhos, como se os seus tocassem e explodissem violeta, e quando me apanhava a alma, ia dizendo: “as árvores em que se abriga são o isolamento, mas as palavras que ele não encontra, e que procura, são ele”.
Eu quedava-me em litania: a poesia é feita à imagem do leitor. Deus lê-nos, nós escrevemos. E estamos muito sós, a flutuar e a atravessar muitos olhos, túneis que desembocam em túneis que em túneis vão desembocar. Eu olhava os olhos extraídos das órbitas pela pressão, as janelas abandonadas desde o inicio, daquele frágil cão inutilizado pelo fim. E risos, a sair de bocas ocas em bocas ocas. Torrentes. A tua mão calorífica? Meu anjo? Gratidão.
Depois, aquela parte que não estava devorada arrastava-se pelas linhas de ferro, e vagabundeava sem realeza vagabunda: apanhava os restos que se dividiam em restos que se dividiam em restos: a parte comida era a parte deixada por comer: ser-se devorado.


Reflexos, a sala escura, e o espectáculo de ilusionismo, eram agora um iluminado labirinto de espelhos cristalinos e incorpóreos. Havia glória no canto dos coros, estendida na distância até tudo se tornar distância: os fantasmas desistiam e voltavam aos seus abrigos de esquecimento.

O meu corpo encarquilhado, a crescer contra si mesmo enquanto mirrava, inquebrável porque estático, impossível de derrubar, a observar. O ilusionista era o seu predilecto truque.




7 comentários:

  1. Belo texto.

    P. S. Se fores a Ver HTML na caixa de posts e reduzires a largura da imagem para 402, ela já fica toda visível.

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  2. Olha o Klatuu :)

    Está feito, obrigado pela dica (serve já para posts futuros).

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  3. Desconhecia esta casa ;)
    ainda bem que reparei na imagem do lado direito no Bar.

    Abraço.

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  4. Gosto muito "deste". Tu sabes.

    Beijo grande*

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  5. Gostas muito "deste"?

    Ruela, foi por ausa da imagem bizarra :P

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  6. Estás certamente a referir-te à serie de textos "A Metade Devorada", este foi escrito com base no seguinte:

    Estava numa explanada com um colega, num verão, ha alguns anos (não faço ideia quantos), e veio um cão com a coluna dobrada ao máximo, a cabeça quase a tocar a cauda, tentar pedir-nos comida, mas quanto mais tentava alcançar-nos mais circulos fazia sobre si mesmo, incapaz de se voltar para nós. Nós riamos-nos do cão. Então, saltou o olho ao cão e ele caiu no chão, a jorrar um sangue nojento do olho, depois a alma abandonou-o e ficou só o corpo com tremores fortes e subitos. Eu parei de rir e enquanto olhava o cão e bebia a cerveja entrei em profunda reflexão. "Porque merda me estava a rir?"

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  7. Era a isso que me referia, sim. Desculpa. Ando com comentários meios "monocórdicos". Isto passa.

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