segunda-feira, 4 de maio de 2015

A Porta Azul




O mundo era natural para mim, eu estremecia e nos não tínhamos conhecido, era natural a morte, as mulheres, a sede e o deserto, as feras que se passeiam na areia indiferentemente próximas ou longínquas. Mas demorava-me nos pormenores e encontrei uma porta azul nas ruelas daquele bairro que fazia meu. Essa porta ainda estava fechada no tempo, no entanto, vi-me junto das retortas do clarão da água, junto de ti que cantavas o mar por lhe sentir a falta, e parecia que nunca tinhas levado ali ninguém. Desconfiado, enquanto fitava o pequeno prédio de fora, aumentei-me imenso, para me poder espreitar a sair pelas janelas como um incêndio. Nascia um teatro honesto, uma vida além da morte em que salões eram montados para receber a última nas suas pálpebras azuis de dia e multicoloridas pela noite. Subi só meio degrau, quase insensível, a confiar na sensibilidade do homem artista e afogado na tua pele que ainda desconhecia. As visões de fora e as visões de dentro todas a colidirem como um pesadelo: Um coelho subia a porta azul e uma chama diante das janelas projectava o Sol, o Sol iluminava igrejas só habitadas pelos gongos e o tinir dos sinos estremecia sobre os vales rochosos onde se movia a sombra do peixe maior. Uma torre enorme erguia-se reunindo avalanches em seu redor e nós nadávamos despidos na neve, com pétalas de rosa a brotar das gengivas encarnadas. 

Retomei o meu percurso. Então reparei, pela primeira vez, que nada se pode dizer sobre os lugares. 


André Consciência

domingo, 3 de maio de 2015

Lá Fora Era Verão




Todos os dias ao passar à porta de mim vejo expostas duas máscaras. Tu antes de mim, e eu, a sorrir como se soubesse que te enganava a minha felicidade. Tu és um anjo e a segunda vive acompanhada num deserto onde se sentam os reis de lábios gretados, com as suas coroas de machado a pesar sobre o bronze dos corpos duros. Nesse deserto sou fera abandonada ao seu sangue, com medo de si mesma e a devorar-te as asas-seio. Tu existires, anjo, e eu não dormir à noite, para verificar se dormirias no escuro um dia e como seria a tua beleza no sono. 

Não foi o mal que me levou a odiar-te, mas o teu bem. Porque quando te viam as formas móveis num lodaçal de serpentes, o corpo a gracejar a glória nos teus bicos de pés, a tua dança a escancarar as portas do silêncio para deixar sair feras com o sangue que contra elas se agita eis-me, a olhar-te como o homem invisível e iluminado que a candeia que deixas arder até ao fim revela. E ao revelares-me sou eu afinal a estátua imóvel com uma chama de pedra, para descobrir o anjo, e revelares-me é morreres para os homens de bronze. 

Comeste a comida das aves, mas o meu trabalho é retalhar as asas e esculpir o vento, fazer a areia dividir-se e receber as estrelas e afasta-te tu, pois degustarei os anjos como um homem que se supera na pedra.

André Consciência