quarta-feira, 22 de junho de 2011

Viagens


Edite Melo


Rodeado de estrelas e pelas oito portas
Apressa-se a sair da aldeia
O velho carvoeiro de corpo inerte
Cuja cabeça se desprende do corpo à noite
Aponta para as papas e para o colchão
O corpo começa a dissolver-se
Os outros esqueletos regressam ao rio
E afundam-se.

Um chifre de marfim é bastante fundo
O sapo projecta a cabeça para a frente
Acesa à porta de uma cabana tosca de pastor
A estrada desaparece num pequeno vale arborizado
Á medida que o Sol se vai escondendo
O céu ganha uma cor de laranja vermelha.

Esperam pelo anoitecer
Para se aproximarem
Do portão escondido.

O pobre homem cai redondo no chão
Sem fazer um ruído.
A monotonia das terras encharcadas pela chuva.
O caminho segue às curvas no meio do nevoeiro.

O louva-a-deus penetra nas chamas.
As cabeças sem corpo começam a gritar:
"Talvez um dia encontres a jovem que seguiste"
Parece melancólica mas conduz-te à sua humilde casa.

Sobes para uma elevação coberta de lodo
Na margem oposta, pingando das profundezas,
Levas a trompa antiga aos lábios e sopras
Com força.


Horned Wolf

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Amor das Almas


Diego Rivera


Não existem portas nesta fortaleza
No entanto, há ladrões que roubam o ouro.

No campo, os olhos amarelos do amor,
A maioria regressa a casa conforme o horizonte
Se vai escondendo no Sol.

Sorriso expandido. Rente chuva de fogo.
Estrelas abertas e rodeadas de espaço.
Aldeia em chamas.

A morte ergue-se do trono e canta
O mar de um lado e as montanhas do outro
Tudo se solta das minhas mãos para as tuas
Não haverá outro dia depois deste.

Passas para os montículos fumegantes,
Cobertos de erva, para as areias intermináveis.
Sob o céu amarelo, um pássaro maior
Do que uma águia.


Horned Wolf

terça-feira, 7 de junho de 2011

Procelária




A encosta com cheirinho a caldeirada de peixe
Oeste nada tem que o assinale, nas saias
De uns montes, cumes escarpados e o trilho vira
A tarde avança, as tonalidades do Sol fazem reflexo
Sobre a pedra cinzenta, o caminho para o império
Das ilusões, bebido no archote das cobras.

Cristalino e brilhante, escuto,
Vai chover. As crianças brincam
Nadando com a electrididade do ar
Lá no alto, o ninho do amor
Cerca o meio-dia, ouves o barulho
Dos risos a bater, um cântico de gemidos
No tufo das árvores.

Segura no Sol, ó Anjo, e brilha sobre mim,
Escala comigo, ó Anjo, e faz-me de marfim,
Conta comigo as almas que caíram, no jardim
Para teu prazer, e desdobraram os lírios
Arrancaram a sombra ao rosto do amor
E as cicatrizes ao corpo do louvor.

Vislumbro a terra dos teus ombros, abençoada
A multidão de fantasmas até ao fim do mar
A sua pele coberta em ouro, e a boca
Onde os homens acabam - as encostas geladas
Do teu corpo - aquecem as embarcações que embarcaram.

Ó príncipe na neve, sento-me sob a tua juba,
Sobre a tua anca, e na minha pele estival repousam
Os amores que tanto ousam.

Aos pés das suas estátuas jaz Deus
A sua carne ciclicamente despedaçada
Nos troncos da alvorada.


Horned Wolf

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Mundo Sem Fim




O anão só com um braço
Fita, do salão sumptuoso,
O porto: Um mar de vinho
Mudo.

As brisas da noite, muito
Antigas, chegaram também
A estas paragens.

As mulheres desapareceram todas
Correm na luz ao longe.

De vestes negras inclina-se
Deus, sobre o corpo de um anjo
Conjura alguma coisa da cabeça
E do coração do cadáver.

Uma aranha com asas fita através do fumo
O leste dilacera-se
O anão encosta o barco à praia
Os penhascos brancos
Acolhem ninhos de amor.

Nunca mais eu terei de conter
Uma gota
Do meu rio.


Horned Wolf

sábado, 4 de junho de 2011

Depois da Chuva


Le Déluge - Léon-François Comerre


Uma multidão de rios passa
Pela fronteira do meu caos memorial
A sombra das vitórias afundadas
A beber sumos de amor
Prevalece sobre as verdades sombrias
Dos destroços
Apaixonados, da solidão.

Raiva, antiga, das companhias serem não mais
Que nada, das loucuras serem tudo
O que é inconsequente. Nesta idade
Nada, chega a alguma coisa.

Eu gostava era de ter uma sombra
Não como eu, mais como tu,
Mas nunca tu mesma, excepto
No longínquo sonhar
Do tempo vertido pelo ralo das manhãs.

Despede-te agora, e não chores
Porque os rios passaram
E não mais sobrámos do que nêsperas
Comidos à dentada, dos desperdícios múltiplos
E da inexistência fragmentada.


André Consciência