segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Niilismo Místico, a Estética e a Beleza





Carpocrates - Gnóstico Alexandrino

De bases platónicas e influências cristãs, ensinava-nos Carpocrates da existência de um primordial, e que anjos, muito afastados desta fonte, contrairam a doença da criação (divisão), numa espiral descendente rumo à decadência. Estes Construtores-do-Mundo aprisionaram as Almas Caídas, o princípio primordial em cada um de nós, em túmulos de carne e osso, e por isso as Almas percorrem a forma e experimentam a metamorfose. O Adversário é o Mensageiro entre o Homem e o Primordial por via do Juíz (o mais alto entre os poderes criadores). O mundo não foi criado por Deus mas é uma sombra da sua Luz e em si mesmo, não é bom nem mau, é totalmente indiferente a e despido de valores. A forma do homem se elevar acima dos seus próprios dejectos é fazer a alma lembrar-se, abrindo os olhos, através das várias experiências que descrevem a vida.



Nikos Kazantzakis e o Niilismo Heróico


"Não espero nada. Não temo nada. Sou livre"
-em grego: Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος

"Eu sou o marinheiro de Odysseus com coração de fogo mas de mente cruel e limpa."
- Toda Raba (1934)

"Sou fraco, efêmera criatura feita de barro e sonho. No entanto, sinto todo o poder do universo a girar dentro de mim."


Do "The Saviors of God" (1927; Versão inglesa 1960):

We have seen the highest circle of spiraling powers. We have
named this circle God. We might have given it any other name
we wished: Abyss, Mystery, Absolute Darkness, Absolute Light,
Matter, Spirit, Ultimate Hope, Ultimate Despair, Silence.
We come from a dark abyss, we end in a dark abyss, and we call the luminous interval life.


A expressão “niilismo heróico” tem sido usada com total aceitação pelos críticos de Kazantzakis, para designar o niilismo activo de Nietzsche aplicado às obras de Kazantzakis. A substituição do termo “activo” por “heróico” deve-se à presença da força dionisíaca na descrença em relação aos valores do mundo. O princípio do niilismo heróico fundamenta toda a peregrinação ascensional do texto de Kazantzakis. O herói, tal qual Zaratustra, empreende um itinerário activo, calcado na auto-superação e na instituição de novos valores auferidos por essa superação. Cada etapa da jornada tem o carácter niilista de não se crer em nada, de escapar das imposições morais e conceituais que dificultam a libertação. Toda a ascese protagonizada por Ulisses é um tratado de libertação de todas as máscaras culturais e valores, sejam metafísicos ou platônicos, pisando nos degraus da não-crença.
O herói é o autor dessa subida, inaugurando um combate perigoso, que o deixa sempre à beira do abismo, por travar a luta entre o mundo socrático – ou ainda cristão – e o mundo dionisíaco. O herói irrompe da própria natureza e concentra em si tudo que é vital e instintivo.
Diante do abismo e pisando nos degraus do nada, o herói ainda combate e não esmorece. O niilismo heróico vê-se nessa vontade de potência, vital, de criar ou recriar o que o herói vai destruindo a passos transvalorizadores.

(...)

Assim, como edificar um novo mundo sem bases para a sua fundação? Como cantar as glórias de um herói que almeja o esquecimento e a perda do seu nome? É deste modo que a epopéia moderna de Kazantzakis, apesar de lançar-se como um canto de restauração do mundo épico perdido, guia-se pela relação entre o cantar (fazer poético) e o pensamento (verdade). Visão subjetiva e criativa, o pensamento é o próprio acto de engendrar e de constituir o discurso da verdade, porém perecível e dissolúvel como a vida. Assim que se dissolvem os laços vitais, apagam-se o pensamento, o mundo, a criação; a verdade constituída pelo poeta (cantor) morto retorna ao nada, e assim alcança ele a real libertação, mais além da necessidade de criação e verdade.

Carolina Bernardes


Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje! — NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, §125.



“Esse ponto de contacto interior, apesar de toda a sua importância, não é, entretanto, mais do que um ponto. Após o longo período de materialismo de que ela está somente a despertar, a nossa alma encontra-se repleta de germes de desespero e de incredulidade, prestes a soçobrar no nada. A esmagadora opressão das doutrinas materialistas, que fizeram da vida do universo uma vã e detestável brincadeira, ainda não se dissipou. A alma que volta a si permanece sob a impressão desse pesadelo. Uma luz vacilante brilha tenuemente, como um minúsculo ponto perdido no enorme círculo da escuridão. Essa luz fraca é apenas um pressentimento que a alma não tem coragem de sustentar; ela pergunta-se se a luz não será o sonho, e a escuridão a realidade. Essa dúvida e os sofrimentos opressivos que deve à filosofia materialista distinguem a nossa alma da alma dos primitivos. Por mais levemente que se lhe toque, a alma soa como um vaso precioso, que se encontrou rachado na terra. É por isso que a atracção que nos leva ao primitivo, tal como o sentimos hoje, só pode ser, sob sua forma actual e factícia, de curta duração.

Salta aos olhos que essas duas analogias da arte nova com certas formas de épocas passadas são diametralmente opostas. A primeira exterior, será sem futuro. A segunda é interior e encerra o germe do futuro. Após o período de tentação materialista a que aparentemente sucumbiu, mas que repele como uma tentação ruim, a alma emerge, purificada pela luta e pela dor. Os sentimentos elementares, como o medo, a tristeza, a alegria, que teriam podido, durante o período da tentação, servir de conteúdo para a arte, atrairão pouco o artista. Ele se esforçara por despertar sentimentos mais matizados, ainda sem nome. O próprio artista vive uma existência completa, relativamente requintada, e a obra, nascida de seu cérebro, provocara no espectador capaz de experimenta-las, emoções mais delicadas, que nossa linguagem é incapaz de exprimir.”

Wassily Kandinsky



Como Expressado em Friedrich Hölderlin

“Ai de mim, perambula na noite e habita como que no inferno, sem o divino, a nossa geração”

A canção de Hyperion


Oh santos génios! Vós caminhais,
lá por cima, em luz, sobre terra suave.
Brilhantes deuses etéreos
Tocam-vos levemente,
Qual os dedos da artista
nas cordas santas

Sem destino, como a criança
Adormecida, os anjos respiram;
Castamente guardado
Em discretos botões,
O espírito floresce-lhes,
Eterno,
E os santos olhos
Vêem em silenciosa
E eterna claridade.

Nós, porém, fomos condenados a errar,
Sem descanso, p’la terra fora.
Ao acaso, de uma
Hora para a outra,
Os homens sofredores
Somem-se e caiem,
Como a água atirada de
Recife para recife,
Ano após ano, na incerteza.




O Poema Conciso

Porque és tão curto? Já não amas, como noutros
Tempos, o cântico? Nesse tempo, ainda jovem,
Quando em dias de esperança cantavas,
Nunca encontravas o fim.

Como a minha sorte, assim é minha canção. Queres-te
banhar, feliz, no pôr do Sol? Já passou! E a
Terra é fria e o pássaro da noite sibila,
Incómodo, perante os teus olhos.





II




“(... ) compreender a negatividade na arte moderna como a expressão mais potente da experiência espiritual a que dá lugar a ausência da experiência religiosa.”
Vega

“o sagrado é uma parte da estrutura da consciência e não um estádio na evolução da consciência. Ou seja, não houve uma época em que as coisas eram mais espirituais do que hoje. (...) Vivemos numa época que não o reflete ou encoraja ou foca da maneira que outras culturas o fizeram no passado onde a religião era dominante. Mas não significa que não esteja lá.”
Mircea Eliade


"O silenciar dos nossos sentidos físicos conduz muito mais facilmente à experiência das coisas espirituais; da mesma maneira, o silenciar de nossas faculdades espirituais conduz a um conhecimento experimental de Deus, tanto quanto este seja possível, através da graça, na vida presente."
A Nuvem do Não-Saber, Anónimo




O Dialecto da Beleza:

Balthazar dizia que a morte era a morte tanto no Mundo como em Deus, no propósito de uma vida plena. Para Balthazar, a Beleza é o todo no fragmento, pensamento interno à lógica da presença da ausência e da ausência da presença.

Para Tomás de Aquino, a beleza brota do jogo entre o efémero, mostrando-se um momento de vida que caminha em direcção à perfeição, e assim de encontro a Deus e à redenção de tudo o que existe. É ao aproximarmo-nos do nada que o tempo se preenche de maravilhas, e quando o mal passa o artista vem mais tarde a encontrar formas belas para o caos e a desordem que o caracterizaram: a beleza mostra-se vitoriosa através do fim.

Para Dostoevsky, é importante desmascarar a beleza do inferno, da degradação, a beleza regozija-se no desespero e o nada revela-se. O niilismo e a redenção unem-se no objectivo da liberdade. O homem é um ser trágico e eterno, entre este e o outro mundo, e a sua única possibilidade de felicidade é a renúncia à liberdade.

O Deus de Raskolnikov mergulhou com o homem no Abismo, e o homem pode, perante a luz negra do niilismo, entregar-se à transparência do amor, ou à inércia.



Exemplificado em Herberto Helder


O Amor em Vista

(...)

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Herberto Helder

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