quarta-feira, 22 de abril de 2009

A Metade Devorada III

O primeiro tiro de caçadeira, abafando as coisas em mim como trovão que cega o céu, como o tambor de um deus que abraça e destrói: rio que se despista contra oceano. Não olhei para ele, porque o barulho era tremendo. Trémulo, peguei com toda a força que tinha no meu tambor de latão, como se fosse fazer as pessoas orgulharem-se.


"que o meu pai vai morrer"

Então naquele dia, como em todos os dias, a minha avó pegava em mim pelo braço, com o pulso forte que só as pessoas da sua idade possuem, e levava-me ao largo onde podia comprar coisas frescas dentro da fruta e das suas cores liquidas na boca. Às vezes eu ficava sentado à porta da mercearia, perto do mercado, e observava os meninos de rua com bicicletas e posturas de rua e palavras de rua e aspectos livres e aspectos oprimidos. Quando eu entrava ela fazia-me carregar um leite de pacote, depois uma peça de fruta, e comprava, a pensar em mim, vinho “Pegões” e sobremesas que vinham enroladas em papelão. Então, quando estava na fila:

“Por favor deixe-me passar é que o meu marido tem um cancro, está acamado em casa” e eu sorria, tão compreensivo como enjoado, como se houvesse regalias e prémios de quase-viuvez, ou qualquer coisa que se herda de alguém que não deixou, como se mesmo naquela cama, debilitado, ela o pudesse violar e violar o seu nome e cobrir de espinhos um coração invisível, à espera.



Ele batia no volante e expirava de cada vez que o carro parava porque havia outro carro na mesma rua, demasiado perto; porque os sinais também ficam vermelhos. “Calma…” dizia-lhe ela “ainda te dá um troço” e suspirava às escondidas. Centrava-me em ouvir o batimento que existia dentro do meu peito, como se fosse algo de concreto perante tudo o resto, esquecido que de cada lado existiam os meus irmãos. E pensava que ele não queria chegar atrasado ao inevitável.


como as paredes gigantes do hospital branco




de cabeças baixas, não falando porque nunca houve nada sobre o que se falar, e fingindo que na dor era solidariedade e que na dor não era um adeus mais definitivo que nunca




Então peguei nela, sempre forte, naqueles momentos, e a pretexto de a levar à casa de banho




como se fossem amuletos, eu com uma colecção de livros, de livros que diziam Swami Vivekananda, com capas lisas e de uma só cor, como se fossem mundos que suprimiam os outros mundos numa beleza nova, e ele dizia num quarto clarificado num aquecedor rotativo, do qual por vezes se queixava ou, não se queixando, tremia de frio procurando abafar mil gemidos que se amontoavam. E por vezes dizia que não conseguia engolir, ou arrotar. E outras vezes as suas pernas inchadas e brancas e roxas podiam estender-se ainda no sofá. E ele dizia do seu quarto: “O que é que eu vou fazer agora com eles?” e eu sabia as palavras dos assuntos, mas não sabia responder-lhe, não sabia falar com ele, nem quando, quase, me pedia no seu jeito rude. Não soube falar com ele quando os seus olhos estavam mortos e o seu corpo vivo e sem ver me chamou. Não soube falar com ele no dia em que sufocou e praguejou antes do fim das palavras.



rezamos pela alma que podia estar a partir, que estava a partir, apertou-me com força, e eu era uma luzente torre de força: “é o meu homem! É o meu homem! Meu companheiro! Meu marido! Meu irmão!” e eu a sentir os mil dardos das suas palavras que o feriam, que me feriam quando ela as dizia, penetrarem-na insuportáveis como pregos de ferrugem como buracos irreparáveis no coração.


Eles disseram que ele estava estático e amarelo. O meu tio, alto, corpulento e todo ele animado no seu estilo próprio e pachorrento tinha cara de bebé, e o seu choro era mais indefeso e abandonado do que o do mais pequeno bebé. Se eu soluçava, dizia sempre que era pelos outros. A mim, a morte não me havia de impressionar.



Eu pensava: talvez: como se ela não fosse ter a ultima palavra, como se a sua ultima palavra fosse: talvez: eu.



“Merda!”




Não soube porquê, da primeira vez que me chamou como se eu fosse um qualquer herói, e das outras vezes, porque nunca perguntava, sabia porque me habituava a não saber. E quando deixei a pequena carta no último momento antes do caixão ser completamente um caixão, brincava como quem suplicava que fosse sério, de explicar porque era o meu herói.

O último beijo do meu pai na rigidez daquele desprezível resto de tudo, foi veneno, foi eclipse, foi veneno, como a ultima pazada e as feições duras do coveiro num enterro pobre e desinteressante, como se nada fosse, porque era nada, como se fosse tudo. E invadido por coisas que não pude dominar eu dizia que se chorava, era por ser a ultima vez. E a ultima vez, ali, foi como uma pedra basilar, foi como uma coisa completa, que cobria todas as outras coisas: coisas que foram, muitas, e que me tinha esquecido, coisas que seriam até eu ser esquecimento.


quando as pessoas negras me comprimentavam, eu nunca sabia quem eram


para pintar a casa, para plantar as muitas arvores das quais conhecia toda a ciência, para me falar da índia e dos seus sons e dos seus animais, esmurrar a mesa por causa de uma guerra ou uma tortura que eu não podia sequer imaginar e que tentava alcançar sem forças, porque sabia que o seu passado era o meu. Para guardar a casa, naquele dia turbulento, apoiado à caçadeira e quieto durante horas, coberto pela substância da noite e pelo fogo de céu azul dos seus olhos.






Sei-te como se não existisses fora da minha demência.
Como se existisse fora de mim: e a morte não apagasse de verdade.

2 comentários:

  1. Os textos d' "A Metade Devorada" tocam-me muito. São dos mais fortes e, ao mesmo tempo dos mais "pessoais" que por aqui encontro (se me é permitido dizê-lo). Talvez por isso me toquem mais fundo.

    Deixo-te um beijo grande.
    Não ando bem, mas isto passa.
    Sempre passa :)

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