segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Batismo de Fogo


Oláfur Arnalds - This Place Was a Shelter



I


Branco como a chuva gelada, cor de mel e feito de fogo negro, percorro a floresta nevada que se estende da Rússia de Leste, atravessa a Europa e desemboca nas Américas. Encosto-me ao pinheiro, as lascas secas e escarpadas atravessam-me na luz, as camadas húmidas e bruxuleantes. Uma ave cor de uva bica uma pinha e mistura-se com o ar, vital, e dá lugar ao javali, mas só o corvo ao cimo sabe o nome que pronunciam. 


II


As árvores secas atravessam os vales como rios picados. A neve é o meu nome. E eu procuro-te. Procuro-te no sol frio e boreal. Durante o inverno, os dias são tão curtos e a temperatura tão baixa, que o crescimento fica suspenso. As árvores brancas e pontilhadas de amarelo suportam pouca vida. Mas a terra respira. Os rios. 


III


Os salmões ancestrais elevam-se com a névoa branca e dourada, do azul crispado. Há um canto de águia, intermitente, como uma canção tua que se esqueceu. As águias são agora como borrões negros nos fios albinos e arbóreos. Quando a névoa os começa a amar, também eu estico as asas doridas e magoadas pelo gelo. Um qualquer tronco caído, e uma cabeça de plumagem branca e lança de ouro solta um canto fúnebre. 



IV 


As rapinas nidificam, a neve cai tão abundante que se tornam invisíveis entre escombros. Um vulto triste de reis e rainhas celestes de corpos pesados com a água abismal. Enquanto o inverno avança a precipitação lenitiva torna o tempo descendente e vertical. Também o ar se torna rio nebuloso.



V


Adiante, os ventos trazem ar húmido e quente do Oceano Pacífico, e eu cresço o ano inteiro, impulsionado por um desejo misterioso de regressar à alma que me fez nascer. No fim do verão, o Sol tostou a floresta tão intensamente que está tão seca como palha. Cabelos de fogo irrompem dos castanhos como uma água ruiva e os ramos pendem para baixo num abraço. A terra vomita uma densidade cinzenta. O vermelho sobe aos céus. De repente, o teu semblante na água quente, móvel e ascendente. A tua destruição aparente e a tua bondade plena. As árvores são lanças negras despidas contra a vastidão estelar. E um demónio de pó baila em espiral, uma coluna e um corredor até à nossa morada. O vento, ao varrer o chão da floresta recém exposto, levanta turbilhões de cinza. Ergues-te agora do solo sem vida. Eu vivo em ti, que te lembras, vital.    


André Consciência

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